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Bíblia: um livro de guerra

O Código de Leninegrado

O Antigo Testamento (A.T.) é um livro de guerra. Não de paz e amor (para isso foi feito o Novo Testamento), mas mesmo guerra. Todo o A.T. descreve as tentativas de aliança entre os Elohim e as várias tribos com as sucessivas batalhas.

Há inúmeras passagens que demonstram esta afirmação, por isso vamos escolher uma que aparentemente nada tem a ver com o assunto.

A bênção

Isaque, em ponto de morte, foi enganado por Jacob que, com um truque, fez-se passar pelo irmão Esaú obtendo assim a bênção (Génesis, 27:1,9). A seguir Esaú volta e pede a bênção do pai (pois ele era o favorecido de Isaque, não Jacob): nesta altura, Jacob entende ter sido enganado.

Eis o diálogo (Génesis, 27: 34-37):

34 Esaú, ouvindo as palavras de seu pai, bradou com grande e mui amargo brado, e disse a seu pai: Abençoa-me também a mim, meu pai.
35 E ele disse: Veio teu irmão com subtileza, e tomou a tua bênção.
36 Então
disse ele: Não é o seu nome justamente Jacob, tanto que já duas vezes me
enganou? A minha primogenitura me tomou, e eis que agora me tomou a
minha bênção. E perguntou: Não reservaste, pois, para mim nenhuma
bênção?
37 Então respondeu Isaque a Esaú dizendo: Eis que o tenho posto
por senhor sobre ti, e todos os seus irmãos lhe tenho dado por servos; e
de trigo e de mosto o tenho fortalecido; que te farei, pois, agora, meu
filho?

Aparentemente esta conversa não faz sentido. Esaú pergunta “Pai, não tens um pouco de bênção para mim também?” e a resposta é “Não, dei toda a bênção ao teu irmão”. Como pode acabar-se uma “bênção”?

Imaginem chegar atrasados numa igreja e pedir ao padre “Desculpe, atrasei-me, pode abençoar-me?” e obter como resposta “Lamento, mas já dei toda a bênção aos que estavam presentes, já não há mais”. Não faz sentido. A não ser que a “bênção” não seja o que entendemos hoje. E de facto não é.

A “bênção” actual é uma elaboração fantasiosa teológica surgida mais tarde: a bênção do A.T. era dar bens materiais. Abençoar um branco significava dar-lhe acesso às fontes de água e aos pastos. Da mesma forma, abençoar um exército significava dota-lo dos meios militares para ganhar: esta é um tipo de bênção que encontramos muitas vezes no A.T. No caso do Isaque, eis explicada a falta de mais “bênção”: ficou esgotada porque foi entregue na totalidade a Jacob, o qual recebeu a herança (os tais bens materiais) que eram destinados a Esaú.

Mas continuemos com Jacob, porque as suas aventuras ajudam a perceber muito acerca da natureza do A.T. e dos Elohim.

Os dois Elohim garantes

Numa certa altura, Jacob decide procurar uma esposa e por este motivo começa uma viagem até a
Mesopotâmia.

Isso acontece porque estas tribos adoptavam os mesmos critérios dinásticos dos Elohim (assunto acerca do qual teremos que falar) e das tradições sumero-acádicas, estas mais bem conhecidas: a ideia era casar uma parente porque através da união com uma parente filha do mesmo pai (mas de mãe diferente) era preservada uma linhagem genética que conservava todas as riquezas.

É algo que continuou ao longo de milénios entre a realeza e a classe aristocrata, até bem depois de Cristo, com resultados muitas vezes exasperantes: hoje bem sabemos quais os problemas da união entre consanguíneos.

Mesmo assim, Jacob segue a tradição, encontra a esposa (em verdade duas) e volta para casa; mas o pai das duas esposas, Labão, fica zangado com Jacob (que também se tinha aproveitado dele: o A.T. acerca da moralidade deixa muito a desejar…) e decide persegui-lo até aquela zona que hoje conhecemos como Cisjordânia. Aqui acontece o encontro entre os dois que, em vez de confrontar-se, decidem estabelecer um pacto: fixam uma marca no chão e juram. Juram várias coisas, entre as quais o facto de nunca ultrapassar o marco com intenções hostis contra o outro. E como garantia (Génesis 31: 53) invocam os Elohim:

53 Que o Deus de Abraão, o Deus de Naor, o Deus do pai deles, julgue entre nós. 

Mais uma vez, a tradução presente nas Bíblias familiares está errada: deixa entender que os dois juraram sobre “Deus”, o mesmo de Abraão, de Naor (que era o irmão de Abraão), o Deus do pais dos dois. Portanto, o único Deus. Mas no original hebraico as coisas são bem diferentes: Jacob e Labão juram sobre o Elohim de Abraão e sobre o Elohim de Naor. Não é o mesmo Elohim: o Elohim que garante Jacob é aquele que dominava a terra de Jacob, enquanto o Elohim de Naor dominava na Mesopotâmia.

De facto, o final da frase não é “julgue entre nós”, mas “julguem entre nós”: verbo plural e portanto, como já sabemos, ou se fala de Deus ou de Juízes. Mas a Bíblia é clara neste aspecto: nada de juízes aqui, fala-se mesmo de Elohim, de “Deuses”. É um trecho que não deixa dúvidas: o A.T. apresenta aqui dois Deuses: o Deus de Abraão (que sabemos ser Jahweh) e o Deus de Naor (aquele que protegia a região da Mesopotâmia).

Dois Elohim, um como garantia de Jacob e outro como garantia de Labão. Interessante, porque demonstra como os Deuses envolvidos (isso é, os Elohim) têm a mesma importância: ambos protegem as respectivas zonas e não há aqui um Elohim (um “Deus”) mais forte do que o outro.

Os Anjos

Mas continuemos. No dia seguinte, Jacob retoma a viagem (Génesis 32) e encontra os “anjos de Deus” (na versão original מלאך, os Mal’akim dos Elohim), que são mensageiros.

O termo “anjo” deriva do latim angelus, por sua vez derivado do grego ἄγγελος (pronuncia: ánghelos), presente no dialecto miceneio do XIV/XII século a.C. come akero, que significa isso mesmo: mensageiro.

É importante realçar como estes Mal’akim (chamados também Malahim) sejam seres em carne e osso: no A.T. há vários trechos que demonstram tal afirmação, mas como exemplo podemos tomar também o livro acerca da estrutura cabalista dos mundos Panim Meirot Umasbirot escrito pelo Rav Yehuda Ashlag Baal Hasulam. Nomeadamente, aqui podemos encontrar o mundo do Homem, formado por quatro níveis:

  1. nível: Imóvel Eichalot  (Templos)
  2. nível: Vegetal Levushim (Roupa)
  3. nível: Animal Malahim (Anjos)
  4. nível: Falante Neshamot (Almas, entendida como tendência caracterial de cada homem)

(nota: a estrutura cabalista é de tipo piramidal e nesta o Homem ocupa um lugar até superior aos restantes níveis: mas isso é um discurso diferente e não se aplica no caso do A.T.).

Pelo que, como vimos, não há dúvida de que os “anjos” sejam na verdade seres materiais não apenas “presenças celestiais”. Para ser mais precisos, os anjos são seres que desenvolvem a função de mensageiro ou de executores de ordens, portanto ficam num nível hierárquico mais baixo em relação aos Elohim.

As tendas de Deus

Prosseguimos com Jacob. Genesis 32: 2:

Quan­do Jacob os avis­tou, disse: “Este é o exército ­de Deus!” Por isso deu àquele lugar o nome de Maanaim.  

Jacob não disse nada disso. O que disse, como testemunha o original hebraico, foi o seguinte: “Mas este é um acampamento dos Elohim!”. Esta é a razão pela qual deu ao local um nome que acaba em -im (plural): em hebraico Maanaim significa “dois acampamentos”. Claro que traduzir como “Este é o exército ­de Deus!” simplifica muito a tarefa da Igreja, mas se o desejo for entender temos que ler a análise de Rashi ben Eliezer (1040 – 1105 d.C.), o máximo entre os exegeses hebraicos (o seu trabalho permanece ainda como peça central no estudo judaico contemporâneo): aí entendemos como de facto Jacob viu não um mas dois acampamentos de Elohim.

Mas estes acampamentos eram o quê? A resposta é simples: eram os Elohim que tinham sido invocados por Jacob e Labão como garantia do pacto. Em outras palavras: eram as tropas que defendiam os confins estabelecidos pelo juramento de Jacob e Labão, um acampamento dum lado, outro do lado oposto da fronteira.

Mais claro é impossível: estas eram tropas militares. E o “aparecimento” dos Malahim faz mudar o percurso de Jacob. É tudo duma simplicidade extrema na versão original, aquela em hebraico: havia dois acampamentos, um por cada lado do confim. Qual o sentido no caso dum só Deus? Dormia uma noite numa tenda e na noite seguinte mudava-se para a outra? Porque, Deus precisava de dormir numa tenda? Obviamente não: como explica a versão original do A.T., havia vários Elohim e Jacob encontrou as tropas deles.

Claro está: esta interpretação é contrária a tudo quanto explicado pela Igreja, tanto Católica quanto as outras variantes cristãs. Mas o que esta série de artigos faz é duma estupidez extrema: simplesmente mostra o que está escrito na Bíblia original, sem interpretações ou interpolações. É um pouco como pegar num livro qualquer e lê-lo em duas versões: uma original, tal como foi escrita pelo autor, e outra que é a interpretação da primeira escrita segundo as ideias dum comentarista.

A escolha é do Leitor: prefere saber quais as ideias e os factos descritos na versão original ou prefere limitar-se às interpretações? Para responder é preciso ter em conta também as consequência que a “interpretação” até hoje apresentada provocou ao longo dos séculos.

O verdadeiro nome de Jesus

Tanto para ter uma ideia da importância das coisas acerca das quais estamos a falar: por qual razão hoje se fala de “Cristianismo”? Porque o termo deriva do nome Jesus Cristo, parece resposta óbvia. Mas há dois pormenores: em primeiro lugar Cristo não era o nome Dele. Cristo é um adjectivo que deriva da palavra grega Χριστός (Khristós) que significa Ungido.

E o segundo pormenor? É relativo ao nome de Jesus. Cujo nome não era Jesus mas Josué (יהושע בן נון).

Porque os Pais da Bíblia decidiram mudar até o nome do Messias? Por uma razão de marketing: Josué era um nome demasiado comum na Galileia da altura, era preciso distinguir o Messias. Então Josué foi definitivamente apagado e substituído com a sua versão latinizada Jesus, nome que em Roma ninguém utilizava. Escolha inteligente, sem dúvida, mas que apaga a realidade até do Messias.

“…quer no céu, quer na terra”.

S. Paulo

E já que falamos de Novo Testamento, vamos espreitar o que escreve S. Paulo em Coríntios (1:8, 5-6):

5 Pois, mesmo que haja os chamados deuses, quer no céu, quer na terra (como de facto há muitos “deuses” e muitos “senhores”),

6 para nós, porém, há um único Deus […]

Paulo utiliza aqui o termo theoi (Θεοί) que é o correlativo do hebraico Elohim. E Paulo utiliza mesmo o plural, “Deuses”. Pelo que, Paulo afirma que “de facto há muitos Elohim”. Não é um acaso.

Paulo era um fariseu, tinha uma sólida formação cultural e religiosa, conhecendo os livros da Tanakh (o equivalente ao nosso A.T.), a tradição oral depois confluída no Talmud e os 5 livros da Torah. Portanto, Paulo bem sabia como interpretar o termo Elohim presente nas Escrituras originais, conhecia o verdadeiro significado do termo: mesmo assim, decidiu afirmar que há muitos “Deuses”.

A Igreja explica que o sentido das palavras de Paulo é outro: ele entendia dizer que há muitos alegados “Deuses”, ídolos, mas que na verdade apenas um é original. Explicação que choca com as mesmas palavras de Paulo: se ele tivesse desejado referir-se aos falsos Deuses, portanto aos ídolos, nunca teria afirmado “quer no céu, quer na terra”: um falso Deus não pode estar no Céu, mas só na terra, sendo criação exclusiva do Homem. Repetimos: Paulo tinha uma sólida preparação religiosa, conhecia os antigos textos e o significados dos termos utilizados.

E lembramos que este é o Novo Testamento, o livro sagrado inspirado por excelência, do qual os fieis não podem contestar nem uma vírgula. Um pouco como com os 10 Mandamentos, que qualquer bom Cristão tem que respeitar. Ok, na verdade os originais não eram 10 mas um pouco mais. Quantos mais? 613. Nada de importante, pequenas imprecisões como veremos no próximo artigo desta série.

Nota final:
Não respondo aos comentários provocatórios de quem ignora e quer continuar a ignorar. Se o Leitor é um fanático, ao ponto de recusar tomar em consideração a versão daquele que considera ser “o” livro sagrado, de aceitar a visão alternativa do próximo, e se assim deseja continuar a ser, o problema é dele, não meu. Viva na ignorância e seja feliz, pois eu tenho coisas mais importantes para fazer.

Mas há algo que cada Leitor interessado e legitimamente duvidoso pode fazer: procurar alguém que conheça o antigo hebraico e
fazer perguntas. Ou, coisa talvez um pouco mais complicada, tentar
encontrar uma Bíblia original em hebraico, possivelmente comentada por
alguém capaz de entender o significado do antigo idioma. O que
encontrará? As mesmas coisas que encontra aqui, mas será sempre mais uma confirmação. O que é muito importante.

Ipse dixit.

Bíblia: os Elohim
Bíblia: o livro do qual nada se sabe 
Bíblia: a cópia de Gilgamesh