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A teoria do bom povo e a consequência: o imobilismo

Olá pessoal!

Tranquilos: o que se segue não é uma provocação mas a tentativa de entender.

Assunto: é lícito falar dum povo “condicionado”, que não decide coisa nenhuma, apenas vítima das decisões dum grupo restrito de indivíduos? Problema sério: tenho lido vários comentários segundo os quais o facto parece ser evidente e até coisa assumida. Mas acho que algo não bate certo nesta versão.

Propaganda vintage

A propaganda, por exemplo: não podemos esquecer que cada período histórico viu a utilização de meios de propaganda, obviamente consistentes com o desenvolvimento tecnológico da época. Antigamente não havia televisões mas não é por isso que os efeitos da propaganda eram mais fracos: tudo deve ser contextualizado e relacionado ao relativo período histórico.

Achar que hoje o ser humano esteja numa condição pior do que no passado seria um erro: mudam os instrumentos, não os resultados. O que hoje é feito com os diários ou online, antes era feito com meios mais limitados mas perfeitamente adaptados às necessidades da altura, porque as distâncias eram maiores e o horizonte de cada pessoa e da relativa comunidade estava mais circunscritos.

Portanto, havia propaganda antes como há hoje. E a propaganda de hoje não é pior daquela de ontem.

Eram propagandísticas as intenções e o significado da Declaração de Independência dos Estados Unidos, uma “obra-prima de propaganda racional”, destinada a cristalizar a opinião pública norte-americana e a justificar a revolução. Eram propaganda os panfletos de Martinho Lutero. Paulo de Tarso foi um dos mais “distintos” propagandistas da história religiosa. Propaganda era o De Bello Gallico, que serviu a César para melhorar a sua reputação em Roma. Era propaganda a Eneida de Virgílio, que tinha claros fins políticos para a exaltação de Roma e do Imperador Octávio Augusto. Era propaganda a oratória de Senaqueribe, rei da Assíria, que tentava convencer a população judaica de Jerusalém em ocasião do cerco da cidade, em 701 a.C.

Ao ir ainda mais atrás podemos encontrar a propaganda utilizada no Paleolítico: símbolos visuais como máscaras, gritos de guerra, fenómenos de “trance”, eram uma propaganda tanto para assustar o inimigo quanto para impressionar o povo. Pois é: o “bom povo”, manipulado desde a época das cavernas, coitadinho.

Sempre houve indivíduos menos empáticos, altamente problemáticos, capazes de explorar as fraquezas da maioria.

O “bom povo”

Mas aqui temos que parar, ser honestos e perguntar: se a propaganda sempre existiu, por qual razão continuamos a ser enganados por ela? Por qual motivo a maioria dos homens são sempre e inevitavelmente forçados a assumir atitudes que não são as deles? Podemos continuar com a história do pobre povo inocente vítima dos maus ao longo de milénios? Possível que este pobre povo inocente nunca tenha tido dois dedos de cérebro, o suficiente para entender que estava a ser manipulado? Milénios de história e nem uma reacção? Um que dissesse “olhem lá, mas não é que estes, por acaso, com a história das máscaras e das trances….”. Tem que surgir uma dúvida: afinal estamos a falar de seres racionais ou de atrasados mentais?

O que traz outra pergunta: por qual razão o “bom povo” nunca escolheu rebelar-se, acabando sempre por aceitar o seu papel submisso? Estamos a falar de alturas em que nem havia Comunismo, Capitalismo, Sionismo, Mercantilismo, Imperialismo. Nem havia a História como é entendida hoje. Havia religiões, isso sim, mas de caracteres não uniformes e na maior parte dos casos adaptadas à realidade local, portanto não instituições com capacidade “internacional”. Não temos noticias de civilizações construídas sem a estrutura das classes (a única excepção poderia ser representada, talvez, pelas sociedades matriarcais pré-Curgã – ou Kurgan – do VI milénio a.C., mas as provas são escassas): parece que o esquema piramidal seja uma necessidade da nossa espécie. E este aspecto deveria obrigar a reflectir acerca do verdadeiro estado evolutivo no qual estamos.

É no topo da pirâmide que se concentram as decisões, antigamente como agora: é aí que encontramos a origem da propaganda. Mas a pirâmide tem uma característica: o topo é pequeno, muito pequeno, enquanto a base é larga. Simples, portanto, pensar na disparidade das forças e imaginar o “bom povo inocente” que se farta e atira pela janela fora os poucos maus da fita. O que nunca aconteceu. Passaram os milénios e ainda estamos aqui a dizer que “eles são maus”; e que “nós somos bons”, mas um bocado paralíticos também.

Imobilismo

Pessoalmente estou um pouco farto de justificar a nossa falta de acção como provocada apenas pela “maldade” dos “outros”. Maldade que existe, que fique claro, mas que não conta tudo. Estou um bocado farto também porque a ideia “dos outros” que têm o poder e controlam tudo implica outro conceito: a salvação não pode partir de nos, só pode chegar duma força exterior, pois o “bom povo” em si não tem capacidades para isso (e a História, de facto, parece demonstrar esta ideia).

O que é um pouco embaraçoso porque a única força exterior ao “bom povo” é aquela dos “outros” (a não ser que alguém espere a chegada duma legião de alienígenas salvíficos): e isso significa que é inútil esperar uma mudança qualquer.

Síntese: o conto do “bom povo” enganado e sem poderes obriga à aceitação da nossa actual condição submissa. É o imobilismo.

Cumplicidade

Mas atenção, porque uma vez aceite a ideia do “povo bom”, temos também um problema moral: o que fazer com os “outros”, que são “maus” e que fazem maldades? A resposta é: nada, não temos o poder, nem aquele de escolha. Portanto, o “povo bom” é “obrigado” a fechar os olhos e até ignorar os crimes dos “maus” porque “nada podemos fazer”.

Esta chama-se “cumplicidade passiva”. Não é uma cumplicidade activa, na qual alguém decide conscientemente de partilhar o crime. Aqui a situação é diferente: assumida a falta de poder (mas não de força: o “bom povo” é um oceano se comparado aos poucos “outros”), a escolha é aceitar passivamente o que se passa. Hoje em dia isso significa abrir um jornal ou um blog, ler a lista de maldades cometidas pelos “outros”, dizer “Malandros! Ahi se ainda estivesse aqui o Che!” e depois seguir em frente.

Não será que a teoria do “bom povo inocente” é uma boa justificação que esconde algo diferente? Porque desde quando é possível falar de História, ou seja nos últimos seis mil anos e ainda antes até, o “bom povo” sempre ficou submisso, à mercê dos “maus”, desprovido de qualquer reacção minimamente significativa. E sei mil anos é muito tempo. São cinco mil mais outros mil, conta confirmada com a calculadora.

Temos a certeza de que este “bom povo inocente” exista? Ou que alguma vez existiu? Não será que o “bom povo” afinal é um conjunto de pessoas que vivem numa sociedade da qual retiram o que o presta para as vidas delas, colhendo assim os frutos (os mais pobres) daquela mesma sociedade que desprezam, evitando porém a iniciativa para mudar algo porque isso poderia significar perder o pouco que agora têm? Não é talvez aquele pouco (salário, uma casa, um carro, a escola dos filhos, os medicamentos) que impede uma tomada de posição mais séria? Não são aqueles salários, casa, carro, etc. as correntes que nós impedem de encontrar o poder necessário?

Portanto: temos a certeza de que o conto do “bom povo inocente” não seja uma maneira para aceitar e até cristalizar a nossa condição de completa submissão? Ou será que a nossa sociedade fica baseada também em “valores” (com aspas!) dos quais não gostamos de falar abertamente e que nem conhecemos por completo?

A manada

A atitude assumida pela maioria perante o guerra na Ucrânia é bastante esclarecedora neste sentido: a nossa vertente primitiva toma o controle e gere as nossas reacções.

Na altura do perigo, o indivíduo volta para a manada, assumindo uma postura que disfarce a sua “unicidade”, aquela mesma tão exaltada pela publicidade. Neste sentido, a propaganda derruba uma porta que é só encostada: a massa está pronta para receber a protecção do grupo. E paciência se o nosso “disfarce” obriga a engolir tudo o que de negativo há na nossa sociedade, mais uma vez: este é o preço pedido em troca da protecção e o medo fala mais alto. Os indivíduos altamente problemáticos dos quais falámos antes bem conhecem estes mecanismos primordiais e para eles explora-los é uma brincadeira (afinal a mesma guerra é um instrumento utilizado para exercer o poder e manipular os cidadãos: vejam a alegria com a qual estão destilar dinheiro das nossas carteiras com a desculpa de que “Há guerra, tudo aumenta” mesmo quando nada falta).

Indivíduos manipuladores que conhecem outras características humanas: alergia à responsabilidade, preguiça mental, insegurança.

A alergia à responsabilidade é aquela que faz dizer “Votamos no tal, agora é com ele”, afastando-se de qualquer iniciativa também de controle: uma frase que é possível ouvir nas ruas com uma certa frequência. Preguiça mental é aquela que provoca o nosso abandono na frente duma televisão ao longo de horas, insensíveis perante os gritos dos neurónios que morrem. Insegurança é algo que ninguém está disposto a admitir mas que faz parte do nosso ser e que se manifesta na necessidade duma sociedade baseada nas tais “classes” e de alguém que assuma os riscos ligados às decisões.

Juntamos isso tudo: as correntes, o medo, a alergia às responsabilidades, a preguiça mental e a insegurança. E, claro está, a propaganda. O resultado é o que temos aqui e agora, tal como sempre houve no passado.

Eu, mim e a pergunta

Mas isso não absolve o indivíduo, pois entregar-se ao carrasco não é uma razão para invocar inocência. A falta de acção, de qualquer acção, pesa e determina o juízo sobre cada um de nós. Podemos tentar fugir, dizer que não fomos nós, que não temos poder, que foram “os outros”, que nós desejamos só coisas boas porque somos bons. Podemos até interpelar um dos tantos -ismos e encontrar suporte nele (a literatura da Esquerda representa um clássico deste género e deveria ser vendida como manuais de auto-ajuda). Podemos invocar tudo e todos, mas a falta de qualquer acção é toda nossa e não pode ser apagada.

No final da história, cada um de nós fica sozinho com ele mesmo. E perante a pergunta “O que fizeste tu para evitar isso? Qual foi a tua contribuição?”, que depois são duas perguntas mas paciência, o quê responder? Não há como fugir a estas questões. Mesmo que seja toda culpa dos “outros”, a pergunta continua a fazer todo o sentido. Podemos tentar responder honestamente. Ou podemos ligar a televisão.

 

Ipse dixit.