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Ucrânia: situação e perspectivas

Após oito dias de guerra, vamos tentar fazer o ponto da situação acerca do conflito. Se é que isso for possível, pois as notícias que se encontram nos órgãos de informação podem ser definidas com um único termo: propaganda.

Há a propaganda do Ocidente, segundo a qual a Rússia falhou os objectivos da invasão, o exército de Moscovo não estava à espera de tamanha resistência, Putin está encurralado, a Europa está  incrivelmente compacta, etc..

Há a propaganda de Moscovo (que, obviamente, não chega até nós mas que é possível encontrar com um pouco de paciência, consultando os órgãos de informação russos), segundo a qual a “libertação” da Ucrânia procede sem grandes problemas, com as duas Repúblicas do Donbass no foco da atenção.

Finalmente, há a propaganda da Ucrânia, segundo a qual a Rússia passa o tempo a bombardear  hospitais e escolas, enquanto nas fileiras de Kiev há só heróis que infligem enormes perdas à Moscovo.

Ter uma ideia precisa no meio desta guerra de informação é deveras complicado. Portanto, mais do que relatar episódios pontuais, vamos ver quais poderão ser os futuros desenvolvimentos.

Em primeiro lugar: nas primeiras horas da guerra, as forças de Kiev foram aniquiladas. Era esperável? Diria que sim dada a disparidade das forças no terreno em termos numéricos e de preparação. Mas as primeiras horas, com o cancelamento do exército de Kiev, eram apenas a fase de preparação em vista dos objectivos principais da invasão:

  1. “desnazificar” a Ucrânia, para utilizar um termo russo, eliminando ou prendendo e julgando os elementos nacionalistas radicais que tinham promovido o golpe de Fevereiro de 2014 e que tinham colaborado com os americanos para estabelecer um governo anti-russo com a consequente repressão da população de língua russa em toda a Ucrânia.
  2. desmilitarizar a Ucrânia e estabelecer o seu desenvolvimento futuro como um País oficialmente neutro mas, de facto, na órbita de Moscovo (como acontece com a Bielorrússia).

Nos últimos dias, o Kremlin acrescentou um terceiro ponto: o reconhecimento formal pela Ucrânia da perda da Crimeia e a sua incorporação na Federação Russa.

Em segundo lugar, a nível estratégico, os russos tinham deixado clara desde o início a intenção de fazer uma distinção entre o exército ucraniano propriamente dito e os batalhões nacionalistas radicais, os principais protagonistas no conflito que se desenrolou na linha de demarcação entre as Repúblicas secessionistas do Donbass e a própria Ucrânia, e que em Kiev, desde 2014, têm sido a “força por detrás do trono”, a que realmente decide enquanto os vários presidentes da Ucrânia vêm e vão. De facto, a ambição declarada do Kremlin era fazer um acordo com o alto comando do exército ucraniano, estabelecendo um período de lei marcial durante o qual a chamada “desnazificação” pudesse prosseguir.

Os primeiros dias desta campanha militar lançaram dúvidas sobre a validade dos pressupostos subjacentes a essa estratégia. Torna-se agora bastante evidente que os últimos oito anos de reorganização militar na Ucrânia sob a tutela dos EUA e da NATO restabeleceram a disciplina no seio duma parte das forças armadas, em particular daquelas formações que defendem a capital. Moscovo limitou-se a cercar Kiev e as principais cidades no leste do Pais, evitando um massacre entre os civis e, muito provavelmente, à espera que as chefias das forças armadas ucranianas (aquelas não radicais) tomassem o poder.

Ao trazer um reforço de 80.000 homens, o Kremlin deixa agora claro que está prestes a mudar de táctica. Não houve nenhum golpe entre as forças ucranianas (aquelas que ainda sobram, claro) e sabemos que o cerco foi fechado em torno da cidade de Mariupol, centro nevrálgico pois porto e base naval ucranianos no Mar de Azov, defendido por uma substancial força nacionalista radical (o conhecido Batalhão de Azov): veremos nos próximos dias como o comando russo irá lidar com estes elementos da pior espécie e se as restantes forças do exército ucraniano serão tratadas de forma diferente. Mas, após a tomada da cidade de Kherson, Moscovo parece agora intencionada a acabar com o compasso de espera e passar ao ataque.

Faz sentido também porque as negociações em curso poderiam dar frutos em vista da paz e Moscovo quer apresentar-se ao eventual cessar o fogo numa condição de vantagem no terreno.

Avançar de forma resoluta entre as casas era claramente algo que a Rússia queira evitar. E a explicação é simples: há um relacionamento especial entre os dois povos, ucraniano e russo. De certa forma, o actual conflito é uma espécie de “guerra civil”. Durante os últimos oito anos, vários milhões de ucranianos fugiram do seu País não para oeste mas para leste, estabelecendo-se temporária ou permanentemente na Federação Russa. E estes emigrantes têm parentes e amigos que ainda moram na Ucrânia. Pelo que, lógico que o Kremlin queria evitar qualquer ataque à Ucrânia que tivesse gerado enormes perdas, de combatentes mas sobretudo de civis. Este é um ponto muito delicado que poderia constituir uma eventual ameaça para a estabilidade do governo russo.

Para acabar, um aspecto importante que aqui no Ocidente tem sido totalmente silenciado: os órgãos de informação de Moscovo, desde os primeiros dias da campanha, têm-se focado no avanço das forças militares das Repúblicas Populares do Donbass. Este avanço tem sido realizado apenas com um pequeno apoio da Federação Russa, um ponto-chave tanto para o povo dessas Repúblicas como para a Federação Russa. A ideia é que estas Repúblicas devem reconquistar o seu território através dos seus próprios esforços, e não tê-lo entregue numa bandeja pelas forças russas.

O resultado líquido desta abordagem é, nas intenções russas, um reforço da soberania e do orgulho nacional no seio destas Repúblicas. Além de evitar a necessidade de as anexar à Rússia, algo que Moscovo claramente não quer fazer (já tem o problema do reconhecimento da Crimeia).

É provável que as Repúblicas de Donbass, independentes e amigas da Rússia, serão tomadas como um modelo para o que poderá ser a divisão da Ucrânia em vários Estados separados, dos quais o mais ocidental, com sede em Lviv, poderia ser a casa dos nacionalistas radicais. Seria sem litoral e suficientemente distante das fronteiras russas para que, ao aderir à NATO, não represente uma ameaça maior para a Rússia do que a Eslováquia ou a Polónia. Do outro lado haveria a Ucrânia “russa”, com sede em Kiev: a actual capital poderia ser o centro da nova entidade estadual na órbita de Moscovo.

É este o plano? Não sabemos. A propaganda de todos os protagonistas está centrada na alegada evolução diária no terreno, deixando pouco espaço para um cenário final, que agora não vai além duma “Ucrânia inteiramente libertada” ou duma “Ucrânia inteiramente russa”. Mas uma Ucrânia ainda integra após o conflicto parece uma das hipóteses menos prováveis. A Rússia não irá recuar tão facilmente enquanto não parece ter intenção de ocupar o País todo (coisa que poderia já ter tentado). A divisão da Ucrânia poderia ser apresentada como uma vitória tanto no Ocidente (“travámos os russos, salvámos a independência do povo ucraniano”) quanto em Moscovo (alcançámos os nossos objectivos”).

 

Ipse dixit.