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As mentiras sobre o Afeganistão

Um artigo de Massimo Fini, um dos poucos jornalistas italianos que pode falar do Afeganistão porque conhece o Afeganistão. É dele uma das melhores biografias do guia espiritual dos Talebans, o Mullah Omar, apesar de Fini ter declarado que não é um simpatizante do Islão radical ou dos Talebans, mas que admira muito as qualidades de coragem e lealdade que animam as sociedades tribais e “pré-políticas” como aquela de onde provém Omar (a etnia Pashtun).

As mentiras sobre o Afeganistão

Todas as notícias negativas que podem vir do Afeganistão devem ser publicadas, enfatizadas e, se possível, exageradas num sentido ainda pior. Esta é a ordem do dia para mostrar que os Talibans não são capazes de governar o país que reconquistaram após vinte anos de luta desigual, kalashnikovs contra mísseis e bombardeiros, colocando o poderoso exército ocidental que os tinha invadido numa fuga precipitada e desordenada.

Segundo uma funcionária da ONU, Isabelle Moussard Carlsen, 23 milhões de afegãos, ou seja, mais de metade da população (38 milhões), estão a morrer à fome. Curioso. Oitenta e cinco por cento do território do Afeganistão é rural e a menos que haja seca – e até agora não houve nenhuma no Afeganistão – os camponeses, vivendo nas suas próprias terras, autoprodução e autoconsumo, não podem passar fome. Na época do Mullah Omar, 1996-2001, ninguém no Afeganistão sofria a fome, nem adultos nem crianças. No entanto, o Afeganistão também tinha passado por doze anos de guerra, dez contra os invasores soviéticos e dois anos de conflito civil entre os “Senhores da Guerra”, guerra que foi terminada pelos “estudantes do Corão” liderados por Omar.

Contudo, seja qual for a verdade, em vez de chorar lágrimas de crocodilo sobre as crianças famintas no Afeganistão, os ocidentais fariam melhor a devolver os 9.5 mil milhões de Dólares do Banco Central Afegão, depositados em bancos americanos e ilegalmente apreendidos. Em todo o caso, casualmente, esquecem-se que se o Afeganistão está no estado em que se encontra, é devido aos vinte anos de ocupação ocidental.

Diz-se e escreve-se que um “número não especificado” de membros das “forças de segurança” do governo de Ashraf Ghani, e antes de Karzai, foi executado. E acredito isso. Não foi em Itália, no final da Segunda Guerra Mundial, que as hierarquias fascistas foram executadas?

Quando se escreve sobre o ataque de 26 de Agosto no terminal do aeroporto de Kabul, que causou 90 mortes, ignora-se o facto de que foi obra de Isis e que nessa altura ainda eram os americanos que controlavam o aeroporto e certamente não os Talibans. E todos os subsequentes ataques foram do Isis porque os Talibans, tendo chegado ao poder, têm todo o interesse em manter a ordem e não em fomentar a desordem.

Em Outubro de 2021, o Independent relatou com grande destaque que uma jogadora de voleibol afegã tinha sido decapitada pelos Talibans. Esta notícia falsa foi negada por uma fonte insuspeita, o director da Tolo TV [a principal emissora televisiva comercial do Afeganistão, ndt], Miraqa Popal, que ainda era director da Tolo na altura em que ocorreu o assassinato da rapariga e que não tinha motivos para defender os Talibans porque tinha sido perseguido pelos Talibans e forçado a fugir para a Albânia. Popal declarou que a rapariga tinha cometido suicídio dez dias antes dos Talibans tomarem o poder. E vamos parar por aqui.

Mesmo o que for bom, no sentido ocidental, e feito pelos Talibans é escarnecido. No tempo do Mullah Omar, como um decreto da polícia religiosa afirma, as mulheres tinham de ser acompanhadas por um membro da família quando tinham de sair de casa “para fins de educação, necessidades sociais ou serviços sociais” (“educação”, por isso não é verdade que o estudo fosse proibido às mulheres por princípio). Agora o novo governo Taliban determina que este acompanhamento é obrigatório se estiverem a 72 quilómetros de distância da sua casa. Pode fazer-nos rir, mas não podemos olhar para o mundo Taliban-Afgão com o olhar dos ocidentais pós-Revolução Francesa. Os Talibans (não afegãos em geral, mas mesmo os Talibans), por mais surpreendente que isto possa parecer, sempre tiveram um grande respeito pelas mulheres. É verdade, limitam os seus direitos, mas as respeitam. Todas as mulheres que foram mantidas prisioneiras pelos Talibans durante os 20 anos de guerra, desde a jornalista britânica Yvonne Ridley até à cooperante francesa Céline, uma vez libertadas declararam que tinham sido tratadas de forma justa e com especial consideração pelas suas necessidades femininas.

A jornalista neozelandesa Charlotte Bellis apercebeu-se enquanto estava no Qatar que estava grávida do seu parceiro, o fotógrafo belga Jim Huylebroek. Como é proibido no Qatar ter um filho sem estar casado, o casal tentou regressar à Nova Zelândia, mas não conseguiu devido às rigorosas regras anti-Covid do país. O casal reparou então na Bélgica, mas também não pôde lá ficar porque a mulher não era residente. Tinham vistos válidos para o Afeganistão, onde tinham trabalhado. Abordaram líderes Talibans que conheciam. A resposta foi: “Estamos felizes por si, pode ficar aqui, não terá quaisquer problemas. Não diga que não é casado, mas se as pessoas descobrirem, venha até nós novamente. Verá que não haverá problema”. Onde as estúpidas e desumanas burocracias ocidentais não chegaram, os Talibans chegaram.

Esta notícia foi noticiada pela ANSA, a agência de imprensa mais conceituada. Mas nenhum jornal, pelo menos em Itália, pegou nela. Porque não se encaixava na imagem que temos dos Talibans, que devem ser sempre “feios, sujos e maus” e, em qualquer caso, hostis às mulheres.

 

Infelizmente, respeitar as outras culturas não é a especialidade ocidental. No caso do Afeganistão é também preciso demonstrar que a ocupação americana era coisa boa e justa, e que após a fuga das tropas ocidentais o País precipitou nas barbáries. A verdade é um pouco diferente: com a saída do EUA no Afeganistão acabou a guerra.

Não gostamos da sociedade dos Talibans? Difícil gostar, sendo tão distante da nossa: governada por uma das vertentes mais ortodoxas do Islamismo, encontra no limitado papel das mulheres um dos pontos mais controversos. Mas não podemos esquecer um pequeno “detalhe”: é a sociedade deles, não a nossa. Então a pergunta tem que ser: quem ou quê autoriza o Ocidente a impor a sua visão?

 

Ipse dixit.

Imagem: Max Pixel, Creative Commons Zero – CC0