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O mito da carne artificial

Evitaremos o absurdo de cultivar uma galinha inteira apenas para comer o seu peito ou asa, cultivando estas partes separadamente num ambiente adequado.

Winston Churchill, Fifty Years Hence, The Strand Magazine (Dezembro de 1931)

 

Carne sintética? Bill Gates tem esta ideia para combater as alterações climáticas: “todos os Países ricos deveriam passar para 100 % de carne sintética” afirmou numa entrevista com o MIT Technology Review. Mesma concepção por parte de outros bilionários, como Richard Brangon da Virgin: a carne sintética é a solução para combater tanto a fome no mundo quanto o Aquecimento Global. Verdade?

Frontiers, revista peer review gerida por conselhos editoriais de mais de 100.000 investigadores de topo que cobrem perto de 900 disciplinas académicas (1 bilião entre visualizações e downloads), dedica ao assunto seis estudos e um editorial, todos publicados durante os últimos dois anos.

Johannes le Coutre, Professor da Universidade do Novo Gales do Sul (Austrália) e do Imperial College de Londres (UK), não tem dúvidas e no editorial aponta o caminho:

A exploração e a evolução de uma segunda domesticação agrícola não pode continuar a ser ignorada. A humanidade levou 10.000 anos a domesticar macroorganismos multicelulares, tais como plantas e animais. Agora, serão potencialmente necessárias apenas algumas décadas para domesticar os análogos destes organismos em tecido a partir do nível celular. […] Tal como acontece com muitas vagas no desenvolvimento de tecnologias, há solavancos pelo caminho, há becos sem saídas e, no entanto, existe um percurso subjacente lento e estável para avançar. […] Tal compreensão acabará por permitir a aceitação da agricultura celular por parte dos consumidores. Globalmente, estes avanços são o resultado da necessidade global de renovar as nossas abordagens à nutrição e aos sistemas de saúde, no sentido de proporcionar tanto a saúde individual como planetária.

Solavancos? Sem dúvida. E não são coisa pouca, tanto que o optimismo de le Coutre é arrasado por parte do estudo The Myth of Cultured Meat: A Review de Sghaier Chriki e Jean-François Hocquette, respectivamente docentes de Agroecologia e Ambiente na Universidade de Lyon (França) e veterinário na Universidade de Clermont Auvergne (França); um estudo editado por Dietrich Knorr, da Technische Universität Berlin (Alemanha) e revisto por Marcia Dutra De Barcellos, da Universidade Federal do Rio Grande Do Sul (Brasil), Daniel Cozzolino da University of Queensland (Australia) e Joe M. Regenstein da Cornell University (EUA).

Estamos a lidar com algo mais do que simples “solavancos” e talvez seja o caso de perguntar qual a verdadeira razão atrás do “mito” da carne artificial. Não que seja difícil imagina-la…

O estudo é comprido e encara o problema a partir de vários pontos de vista: técnica, saúde, legislação, ética, religião, bem estar animal, mercado, percepção por parte do consumidor. Dado que a carne artificial é apresentada como solução para a questão climática, vamos focar a atenção sobre a parte técnica.

A população mundial, hoje em dia 7.3 mil milhões, deverá exceder os 9 mil milhões até 2050. A Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) previu que serão necessários 70% mais alimentos em 2050 para satisfazer a procura da população em crescimento, o que parece ser um grande desafio devido aos recursos limitados e à escassez de terra arável. Embora o consumo de carne esteja a diminuir nos países desenvolvidos, o consumo global está a aumentar porque os consumidores não estão geralmente dispostos a reduzir o consumo de carne, particularmente em países em desenvolvimento como a China, Índia e Rússia. Estas populações, que pertencem cada vez mais à classe média, procuram produtos de luxo, tais como carne ou outros produtos animais (por exemplo, queijo, produtos lácteos). Os sistemas pecuários irão contribuir para o problema da segurança alimentar e nutricional no mundo.

A criação de gado deve produzir mais carne, leite e ovos de alta qualidade e a preços acessíveis através de sistemas de produção que sejam amigos do ambiente, socialmente responsáveis e economicamente viáveis. Apesar da vasta gama de serviços económicos, ambientais, culturais e sociais locais, regionais e globais prestados pela produção pecuária, hoje em dia uma proporção significativa das espécies pecuárias é criada no modelo de agricultura intensiva.

No âmbito da agricultura intensiva os problemas principais são a contribuição para a produção de gases com efeito de estufa (os GHG), utilização de água, a interacção com o ambiente, o uso de antibióticos, o bem-estar animal e, claro está, a sustentabilidade e as consequências relativas às alterações climáticas.

Como resultado, estão a ser desenvolvidas formas mais eficientes de produção de proteínas para apoiar o crescimento da população mundial, respondendo ao mesmo tempo aos desafios actuais, tais como as questões ambientais e o bem-estar animal.

Entre as várias soluções, aparece a carne cultivada, apresentada pelos seus proponentes como uma alternativa sustentável para os consumidores que querem ser mais responsáveis mas que não querem alterar a composição da sua dieta. […] De facto, desde a primeira publicação sobre carne de cultura em 2008, o número de publicações aumentou consideravelmente (89% do total) após 2013. Em Agosto do mesmo ano, o primeiro hambúrguer feito de carne de laboratório foi preparado e provado num programa de televisão.

Mas quais os prós e os contras do processo de cultivo da carne?

Da célula ao bife

Tudo começa com a tentativa de recriar a estrutura dos músculos animais a partir de algumas células. Pelo que, um animal vivo é biopsiado, um fragmento dum dos seus músculos é dissecado para libertar células estaminais e estas são depois postas num meio de cultura, que fornecerá nutrientes, hormonas e factores de crescimento.

Estas células podem multiplicar-se para formar mais de um trilião de fibras carnosas, fixadas a um “andaime” (scaffold) tipo esponja que as inunda de nutrientes e as estica mecanicamente, “exercitando” as células musculares para aumentar o seu tamanho e o conteúdo proteico.

E aqui aparece o primeiro problema: as células são “alimentadas” com um soro, o melhor dos quais é aquele que contém soro fetal bovino, derivado do sangue de um bezerro morto. Só que é um disparate utilizar um meio feito a partir do sangue de vitelos mortos quando umas das alegadas vantagens da carne artificial é reduzir o sofrimento dos animais.

Além disso, este soro é caro e afecta largamente o custo de produção de carne.

As empresas que produzem carne artificial afirmam que este problema foi resolvido, pelo menos em forma de protótipo. Agora será preciso transferir a solução para a escala industrial. Entretanto temos outra problemática:

No entanto, uma vez que os animais de criação, como todos os mamíferos incluindo os humanos, produzem naturalmente hormonas e factores de crescimento para apoiar o seu desenvolvimento, a cultura celular também necessita de hormonas, factores de crescimento, etc., para apoiar a proliferação e a diferenciação celular. Actualmente, as questões de investigação são: como podemos produzir estes compostos à escala industrial, e como podemos assegurar que nenhum deles tenha efeitos negativos na saúde humana a curto ou longo prazo?

Trata-se duma questão importante dado que, por exemplo, na União Europeia os coadjuvantes de crescimento hormonal são proibidos nos sistemas agrícolas para a produção de carne.

Finalmente, estamos ainda muito longe do músculo real, que é constituído por fibras organizadas, vasos sanguíneos, nervos, tecido conjuntivo e células adiposas.

O resultado é que a fatia de carne tal como a conhecemos ainda não existe na versão artificial.

Fazer um pedaço de carne tão espesso como um verdadeiro bife é ainda um sonho, dada a necessidade de perfusão de oxigénio dentro da carne para imitar a difusão dentro do tecido real. Além disso, é difícil imaginar se os produtores de carne in vitro poderão num futuro próximo oferecer aos consumidores uma vasta gama de carne que reflicta a diversidade de músculos ou cortes obtidos a partir de animais.

O sabor da carne difere não apenas entre as várias espécies animais (porco, aves, ovinos, bovinos, etc.) mas também no interior da mesma espécie, de acordo com raça, sexo, idade, condições de criação e tipo de corte.

Assim, muitos processos complexos ainda precisam de ser controlados para tornar a carne artificial mais atraente para os consumidores.

Vamos pôr de lado as questões organolépticas (cor, odor, textura e sabor) para falar de saúde: a carne artificial é segura?

Saúde e segurança

Uma carne criada em laboratório é por definição mais segura, certo? Talvez não.

Os defensores da carne in vitro afirmam que é mais segura do que a carne convencional, com base no facto da carne de laboratório ser produzida num ambiente completamente controlado por investigadores ou produtores, na ausência de outros organismos, enquanto que a carne convencional provém de um animal em contacto com o mundo exterior, embora todos os tecidos (incluindo músculos) estejam protegidos por pele e/ou membranas mucosas.

De facto, sem órgãos digestivos nas proximidades (apesar da carne convencional estar geralmente protegida), e portanto sem contaminação potencial no momento do abate, as células musculares cultivadas não têm as mesmas oportunidades que a carne de criação para encontrar patogénios intestinais como E. coli, Salmonella ou Campylobacter, três patogénicos responsáveis por milhões de episódios de doença por ano. Todavia, podemos dizer que os cientistas (ou fabricantes) não controlam completamente tudo, e qualquer erro na supervisão pode ter consequências dramáticas em caso de problemas de saúde. Hoje em dia, isto ocorre frequentemente durante a produção industrial de carne picada.

Mas há mais um problema absolutamente fundamental: pode haver consequências na saúde dos seres humanos alimentados com carne artificial? Afinal estamos a falar dum produto de laboratório.

Infelizmente, não conhecemos todas as consequências da carne de cultura para a saúde pública, uma vez que a carne in vitro é um produto novo. Alguns autores argumentam que o processo de cultura celular nunca é perfeitamente controlado e que alguns mecanismos biológicos inesperados podem ocorrer.

Por exemplo, dado o grande número de multiplicações celulares, é provável que a desregulamentação das linhas celulares ocorra como acontece nas células cancerosas, embora possamos imaginar que as linhas celulares desregulamentadas possam ser eliminadas e não se destinem à produção ou consumo. Isto poderia ter efeitos potenciais desconhecidos na estrutura muscular, metabolismo e saúde humana se tal carne for consumida.

Portanto não é correcto afirmar que a carne artificial é menos segura do que a tradicional: simplesmente, não temos dados, não temos um histórico. O que sabemos é que linhas celulares artificialmente multiplicadas podem conduzir a uma desregulamentação das mesmas, com efeitos potencialmente negativos.

Depois temos a questão dos micronutrientes que contribuem para a boa saúde humana: é o caso do ácido ómega 3, do ferro ou das vitaminas):

No caso da carne in vitro, é incerto se outros compostos biológicos, e a forma como estão organizados nas células de cultura, podem aumentar os efeitos positivos dos micronutrientes na saúde humana. A absorção de micronutrientes (como o ferro) por parte das células de cultura precisa, portanto, de ser bem compreendida.

Não podemos excluir uma diminuição dos benefícios para a saúde por parte dos micronutrientes devido ao meio de cultura, dependendo da sua composição. E a adição de produtos químicos torna a carne de cultura um alimento mais “químico” com um rótulo menos limpo.

Ambiente

Depois há a questão ambiental, a razão principal defendida pelos promotores da carne artificial.

Em geral, a produção de carne de cultura é apresentada como amiga do ambiente, pois espera-se que produza menos GHG (o que é controverso até à data), consume menos água e utilize menos terra (este ponto é óbvio) do que a produção convencional de carne, particularmente quando se trata de ruminantes. No entanto, este tipo de comparação é incompleto e por vezes distorcido pelo menos em parte.

No que diz respeito aos gases com efeito estufa (os GHG), é verdade que o gado é responsável por uma proporção significativa das emissões globais, principalmente devido às emissões de metano do tracto digestivo dos herbívoros.

Portanto, a atenuação das emissões de metano (um dos mais potentes GHG) é apresentada como um dos mais importantes benefícios da produção de carne in vitro quando comparada com a pecuária convencional. Sabe-se que a criação de gado está associada à emissão de três GHG (principalmente metano, mas também dióxido de carbono e óxido nitroso). Em contraste, as emissões de carne sintética são principalmente CO2 e devido à utilização de energia fóssil para aquecer as células de cultura.

CO2? Dióxido de carbono, o inimigo público número um? Exactamente, ele mesmo. Mas não há unanimidade sobre as emissões de gases com efeito estufa na produção de carne artificial em comparação com a carne convencional:

Num recente estudo [Lynch JV, Pierrehumbert R, Climate impacts of cultured meat and beef cattle, ndt] foi concluído que inicialmente o aquecimento global pode ser menor com a carne artificial do que com a criação de gado, mas não no longo prazo porque o CH4 [o metano, ndt], ao contrário do CO2, não se acumula na atmosfera durante tanto tempo. Em alguns casos, os sistemas de criação de gado têm um efeito de aquecimento máximo mais elevado do que a carne in vitro. No entanto, o seu efeito de aquecimento irá diminuir e estabilizar-se com as novas taxas de emissão.

Por outro lado, o sobreaquecimento devido ao gás CO2 de longa duração da carne in vitro irá persistir. Também irá aumentar com um baixo consumo de carne, sendo em alguns casos até mais elevado do que com a produção de carne bovina. Concluí-se que a potencial vantagem da carne de cultura em relação à criação de gado em termos de emissões de gases com efeito de estufa não é tão óbvia.

Portanto, é verdade que a criação natural de gado provoca uma maior produção de gás metano: no entanto, este não consegue acumular-se na atmosfera ao longo de muito tempo, ao contrário do que acontece com o dióxido de carbono. E, como vimos, a produção de CO2 por parte das culturas de carne artificial não é algo que possa ser ignorado. Qualquer forma de produção necessita de energia e a criação de carne artificial não é uma excepção:

Os respectivos impactos da carne de bovino e da carne cultivada in vitro dependerão da disponibilidade dos sistemas de produção e da produção de energia que forem postos em prática.

Discurso parecido no caso do consumo de água:

Os meios de comunicação social afirmam que são necessários 15.000 litros de água doce para produzir 1 kg de carne de vaca. Na realidade, 95% desta quantidade de água é utilizada para cultivar culturas, plantas e forragens para alimentar os animais.

Grande parte desta água não seria poupada se os animais da quinta fossem removidos dos pastos e da terra. Por conseguinte, métodos diferentes dão resultados muito diferentes para o mesmo produto animal. É agora aceite que a produção de 1 kg de carne de bovino requer 550-700 litros de água. Este é ponto de referência para comparar as necessidades de água para a produção de carne cultivada in vitro. Infelizmente, a comparação foi injusta porque foi feita em 15.000 litros. Deve ser baseada em 550-700 L.

E serão necessários novos estudos, tendo como base a quantidade de 550 – 700 litros por kg. de carne e não de 15.000 litros: a carne artificial também requer água.

Para acabar, há a questão da terra. É óbvio que a carne artificial necessita de menos terra do que a produção convencional de carne. No entanto, isso não equivale automaticamente a uma vantagem.

Com efeito, o gado desempenha um papel fundamental na manutenção do teor de carbono e da fertilidade do solo, uma vez que o estrume produzido pelos animais é uma fonte de matéria orgânica, azoto e fósforo. Além disso, enquanto a produção de alimentos para animais de criação requer 2.5 mil milhões de hectares de terra (ou seja, cerca de 50% da superfície agrícola mundial), 1.3 mil milhões de hectares (de terra utilizada para a produção de alimentos para animais) correspondem a terrenos não cultiváveis que só podem ser utilizados para a criação de gado.

Isso significa que mais de metade das terras utilizadas para a criação natural de animais só pode ser utilizadas para este fim e não transformada em campos cultivados. Conclui o estudo:

O uso da terra é uma comparação distorcida e injusta entre a carne cultivada e a carne convencional. De facto, neste tipo de comparação, os autores não têm em conta a diversidade das actividades e os impactos ambientais dos sistemas agrícolas.

Não há apenas as emissões dos gases com efeito estufa e o consumo de água, há também o armazenamento de carbono no ciclo natural e a biodiversidade vegetal e animal.

Em conclusão, parece claro que os projectos de investigação sobre carne de cultura têm um âmbito limitado, uma vez que o desenvolvimento da carne in vitro está ainda no começo. O produto irá evoluir continuamente com novas descobertas e avanços que irão optimizar produção, qualidade e eficiência da divisão celular. Resta saber se este progresso será suficiente para que a carne artificial se torne competitiva com a carne convencional e o número crescente de análogas soluções vegetais.

Pelo que, não é suficiente falar de carne artificial como uma solução para o problema do Aquecimento Global: é preciso estudar o assunto, submete-lo a análises e comparações, sem nunca esquecer o papel que cada organismo vivo tem no ecossistema natural.

A teoria segundo a qual a carne sintética resolveria a fome no mundo é algo que infelizmente já vimos: a mesma justificação tinha sido utilizada no caso dos OMGs, os organismos geneticamente modificados, com o resultado de que a fome no mundo encontra-se aos mesmos níveis pré-OMG. O risco é que a carne sintética possa seguir o mesmo percurso: tornar o mercado dos alimentos uma realidade controlada por um restrito numero de empresas que operam apenas em nome do lucro, deixando excluídos os que mais precisam.

Também a questão ambiental necessita de particular atenção: além das eventuais recaídas na saúde humana, é preciso verificar que os meios de produção possam conseguir vantagens consistentes e não apenas “de fachada”, tal como acontece com os automóveis 100% eléctricos. Isso sem nunca esquecer os actuais benefícios que o gado proporciona ao ecossistema.

 

Ipse dixit.

Nota: para mais informações é possível consultar a extensa bibliografia presente após o texto principal do artigo, na secção References.

Imagem: Dave Wild/Flickr