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Ursula, a perseguida

Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia, é boa moça. Só que é azarada. Por exemplo: pegamos no que está a fazer Emillily O’Rey, a Provedora de Justiça da União Europeia, um organismo supostamente independente e imparcial que responsabiliza as instituições e organismos da UE e visa promover a boa administração (dizem eles).

Já uma pessoa que tem como nome “Emililly” é ambígua por definição: ou é Emily ou é Lilly, as duas coisas juntas não. Mas vamos em frente: Emililly, em vez de perseguir os criminosos faz o quê? Quer saber mais sobre as mensagens de texto trocadas entre a nossa Ursula e o CEO da Pfizer, Albert Boula. A notícia das mensagens já tinha sido antecipada pelo malvado New York Times no passado mês de Abril, mas depois a coisa desapareceu. Justamente.

Resumindo: houve troca de telefonemas e mensagens entre a Ursual e Albert mas quando foi feito um pedido formal de acesso aos textos, a Comissão Europeia disse que não tinha registo das mesmas. As mensagens de texto, argumentou a própria Comissão, são geralmente “de curta duração” e em princípio ficam excluídas dos seus registos. Faz sentido. Se um criminoso enviar uma mensagem criminosa escreve o quê? De certeza não apenas “1 milhão” mas algo mais verboso como “Epá, aqui é complicado, há concorrência, temos que falar mal da AstraZeneca, corromper os jornalistas, enviem um milhão tanto para começar depois vamos ver, tá bom?”. Esta é uma mensagem com sentido.

Apesar da explicação repleta de lógica, a recusa da Comissão em conceder acesso aos textos causou insatisfação, resultando numa queixa ao Provedor de Justiça que agora está a debruçar-se sobre o assunto. Inutilmente. Porque as mensagens terão sido algo como “É segura?” ou “Estou preocupada com a saúde dos cidadãos”, coisas assim.

Já tentaram inutilmente lançar sombras sobre a campanha de vacinação na Europa. Apenas há alguns meses atrás, Stella Kyriakidou, a Comissária Europeia para a Saúde, estava no olho da tempestade, com os meios de comunicação social a falar explicitamente de “corrupção passiva” na sequência de um relatório do Tribunal de Contas do seu País natal, Chipre. Qual “corrupção”, qual quê? Tudo porque o marido dela, Kyiriakos Kyriakidou, tinha recebido um empréstimo no valor total de 4 milhões de Euros da Cyprus Cooperative Bank. Não tinha as garantias necessárias? Mas os bancos europeus são assim, acreditam nas intenções do cliente sobretudo se o cliente for uma boa pessoa. E Kyriakos Kyriakou é uma boa pessoa: é Presidente da Comissão Geral de Democracia, Direitos Humanos e Questão Humanitária da OSCE, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa. É tão boa pessoa que até fundou uma empresa (a Faram, ldt) dedicada à saúde global e que por uma questão de comodidade sediou nas Ilhas Virgens Britânicas (Chipre fica bastante perto das Ilhas Virgens), que casualmente são um destino offshore.

Ursula, Stella… sou só eu ou também o Leitor já reparou na insistência com a qual são perseguidas as mulheres que fazem política? Onde fica Me Too quando é preciso?

Mas voltemos a falar da simpática Ursula. Ela tinha sido injustamente acusada já em 2019, após revelações de que um par de telemóveis, considerados como prova chave num escândalo contratual no Ministério da Defesa alemão do qual era chefe, tinham sido “limpos”. Desde 2018, de facto, uma comissão de inquérito organizada pelo Gabinete Federal de Auditoria da Alemanha está a investigar como foram adjudicados contratos no valor de dezenas de milhões de Euros a empresas de consultoria externas. O Gabinete de Auditoria encontrou várias irregularidades na forma como os contratos foram adjudicados e, durante a investigação, dois dos telefones de Ursula foram confiscados, mas os dados de ambos os telefones já tinham sido apagados.

Não admira: eu também, como o Leitor, costumo efectuar a limpeza do telemóvel de vez em quando, apagando a tralha acumulada; e eu também, assim como o Leitor, apago cópias de contratos milionários já concluídos. Imaginemos o cuidado todo alemão que a simpática Ursula terá em manter sempre na máxima eficiência o seu telemóvel. Tentem explicar isso a Tobias Linder, membro da oposição, que apresentou uma queixa criminal contra Ursula, alegando a destruição deliberada de provas relevantes para o caso. Isso tem só um nome: malvadez e ignorância. Que depois são dois nomes.

Portanto, Ursula tem azar e não desde hoje. Em 2015, por exemplo, os investigadores do VroniPlag Wiki reviram a tese de doutoramento dela e repararam que 43.5% das páginas eram iguais a coisas já publicadas. Poderia falar-se em “casualidade” mas a realidade é bem diferente: isso demonstra a imensa preparação de Ursula que, sozinha, tinha chegado às mesmas conclusões alcançadas por vários autores antes dela e até com as mesmas palavras. Notável, sem dúvida. Por isso, enquanto indivíduos raivosos acusaram publicamente Ursula de plágio (como os juristas Gerhard Dannemann e Volker Rieble), a Faculdade de Medicina de Hannover conduziu uma investigação e concluiu em Março de 2016 que, embora a tese apresentasse algo “já visto”, não havia prova nenhuma da intenção de enganar, decidindo assim não revogar o diploma de Ursula. Por mais azar ainda, Ursula conhecia pessoalmente o presidente da comissão universitária que conduziu a investigação, sendo director dela numa associação de ex-alunos, o que poderia ter desencadeado outras suspeitas. Mas é simples imaginar o teor da curta mensagem de texto que ela terá enviado para o colega: “Nenhum favoritismo”.

Basicamente, a simpática Ursual é vitima das circunstancias e isso torna a mulher uma figura incompreendida até aos olhos das massas. Uma sondagem de opinião realizada para o jornal diário Bild indicou que os alemães a consideravam como a segunda pessoa menos competente no governo. E, após ter sido eleita Presidente da Comissão Europeia, apenas 33% dos alemães inquiridos pelo instituto Infratest dimap acreditavam que ela teria dado uma boa Presidente. Muito triste. Ou como diziam os Romanos: nemo propheta in patria, “ninguém é profeta no próprio País”, mesmo para a indicar a dificuldade das pessoas em emergir em ambientes familiares.

Suspeitas, acusações infundadas, incompreensões e azar: tudo isso pode transformar uma das melhores políticas do último século numa vítima do destino. Mas não é sempre assim: há quem não ligue a estas coisas e saiba apreciar o trabalho de Ursula, integrando-a na sua própria estrutura, dando-lhe confiança, partilhando com ela projectos e visões. É o caso do World Economic Forum de Davos. Finalmente um pouco de justiça.

 

Ipse dixit.

Imagem: Reuters/Francois Lenoir via RFI