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Produtividade, tecnologia e Globalização

Em 2018, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) publicou um documento com o título de Definir e Medir a Produtividade. E citava o Prémio Nobel da Economia, Paul Krugman:

A produtividade não é tudo, mas, a longo prazo, é quase tudo. A capacidade de um país de melhorar o seu nível de vida ao longo do tempo depende quase inteiramente da sua capacidade de aumentar a produção por trabalhador.

Este é o mito da produtividade, algo que não é uma exclusiva do Capitalismo: o desenvolvimento das forças produtivas proletárias é um dos dogmas do Marxismo também. Este mito é uma das bases da nossa sociedade na sua eterna procura do crescimento infinito. Não é preciso ser um génio para entender que não pode haver um crescimento infinito, sobretudo numa realidade finita como a nossa: mesmo assim, a ideia continua e todos parecem aceita-la com agrado. Esta aceitação tem razões práticas: mais produção significa mais disponibilidade de mercadorias, concorrência (pelo que: preços mais baixos) e mais lugares de trabalho. O paraíso da ovelha consumidora (e trabalhadora).

Tudo isso até hoje, porque agora o desenvolvimento tecnológico arrisca partir o brinquedo e o futuro apresenta não poucas dúvidas. Primeira entre todas: mas não será que o aumento da produtividade destrói a produção? Parece um paradoxo, mas faz sentido. Infelizmente.

Produtividade e Ludismo

Antes de continuar: o que é esta raio de produtividade? Para simplificar, a produtividade pode ser considerada como a relação entre os produtos produzidos (ou os serviços prestados) e o número total de empregados (ou melhor, o total de horas trabalhadas). Na prática, a produtividade é a quantidade de bens e serviços gerados por cada hora de trabalho: maior produtividade significa maior produção de bens e serviços durante o mesmo número de horas trabalhadas (ou menos horas trabalhadas para o mesmo número de bens e serviços produzidos).

É óbvio que o aumento da produtividade está também ligado ao aumento do grau de automatização e informatização do processo de produção, pelo que o que está a acontecer é que podemos produzir muito mais bens e serviços mas com cada vez menos empregados (ou com cada vez menos horas trabalhadas).

Portanto, com automatização e informatização dos processos de produção seremos capazes de produzir os bens e serviços de que precisamos com menos horas de trabalho. E, consequentemente, com menos trabalhadores. Aqui fica o problema: se o aumento da produtividade for conseguido através da redução do número de pessoas empregadas, quem poderá comprar os bens e serviços produzidos? Com qual dinheiro?

É precisa atenção neste aspecto, pois o risco é aquele de cair no Ludismo, o movimento de trabalhadores ingleses do início do século XIX (nos primórdios da Revolução Industrial) que se opunha ao progresso técnico pelo medo de perder o trabalho e pelas condições de exploração que as máquinas proporcionavam. Temos que ter em conta a História e evitar os erros do passado, mas a actualidade conta com um aparentemente imparável avanço da tecnologia e um desemprego em aumento, cúmplice uma “pandemia” que neste aspecto calhou mesmo “bem”.

Produtividade e ovelhas consumidoras

E há mais um problema: esta velocidade com a qual a tecnologia aumenta a sua presença nas actividades produtivas não segue os ritmos esperados pela “reciclagem” dos trabalhadores. O mundo do trabalho do futuro será diferente do actual e o mercado conseguirá (em teoria) absorver os trabalhadores substituídos pela tecnologia. Mas isso requer tempo e o processo de adaptação não poderá ser considerado completo antes dum par de gerações (no mínimo).

O resultado é que a produtividade é aumentada, mas ao mesmo tempo o poder de compra do quem produz é reduzido porque há mais desemprego. Este é o hoje. Portanto, vivemos num paradoxo onde os preços tendem a cair porque não há procura interna suficiente para comprar todos os bens e serviços que somos capazes de produzir; e também corremos o risco de destruir o nosso tecido produtivo (na minha óptica é este um dos objectivos da actual crise, que responde às necessidades do Great Reset).

Estamos a esquecer que o objectivo da economia é a organização da utilização dos recursos (humanos e materiais) implementados de modo a melhor satisfazer as necessidades individuais ou colectivas. O fim da Economia não pode ser o aumento da produtividade mas a melhoria das condições de vida numa sociedade. Neste aspecto, a observação de Krugman não pode ser aplicada nas actuais condições: a capacidade de um País de melhorar o seu nível de vida ao longo do tempo não depende apenas da sua capacidade de aumentar a produção por trabalhador. O objectivo de qualquer Economia deveria ser, em primeiro lugar, o pleno emprego para que todos possam contar com uns meios de subsistência. O contrário do que assistimos hoje.

Assim, se queremos resolver o paradoxo, não basta aumentar a nossa capacidade de produzir bens e serviços, que são necessários para satisfazer as necessidades individuais e colectivas: devemos aumentar a capacidade de despesa das pessoas, caso contrário muitas entre elas não poderão comprar os bens e serviços de que necessita. E numa situação de descrescimento (induzido ou natural, não vamos aprofundar mais) como a actual, o imperativo não é aumentar a produção mas sim a oferta de trabalho.

Say

Infelizmente não é esta a base da nossa actual economia. A referência é à dominante Lei de Say, do economista francês Jean Baptiste Say (1767 – 1832) que formulou a ideia segundo a qual é a oferta que impulsiona a procura. Aumentar a quantidade de produtos, segundo esta lei, é sempre sinónimo de vendas garantidas (interessante notar como ainda ainda hoje estamos a ser condicionados por ideias com 200 anos de idade…). Isso significa que aumentar a produtividade significa aumentar a procura: quanto mais produtos houver, tanto mais a ovelha consumidora irá gastar.

Com todo o respeito, a Lei de Say é estúpida. O objectivo dum dono dum café não é produzir mais café mas vender mais café. O incentivo para investir, na óptica dono, para melhorar o processo de produção através da tecnologia e novas técnicas de trabalho só pode vir de uma maior procura de café. Só então a empresa (estimando um aumento das vendas a curto e médio prazo) assumirá o risco de investir dinheiro para modernizar a sua cadeia de produção. E não é esta a realidade que podemos encontrar nos dias actuais. Se não houver dinheiro em circulação, o dono não irá vender café: não apenas não irá investir como até terá que fechar a loja. Esta é a realidade hoje.Falta oferta? Bem pelo contrário: procurem um telemóvel novo, há dezenas de empresas produtoras,  cada uma com uma gama constituída por vários modelos para todos os bolsos. A procura é escassa e presumivelmente não irá melhorar até o fim da “pandemia”. Ainda assim, será preciso tempo para reabsorver as legiões de desempregados: a retoma não será tão rápida e, considerando que os investimentos só dão fruto no médio e longo prazo, a procura dos bens será determinante, não a oferta.

Depois há outros aspectos que devem ser considerados:

  1. o Capitalismo utópico de Adam Smith, no qual uma “mão invisível” regula o mercado, já não descreve a sociedade de hoje, na qual duas classes (elite e resto do mundo) com interesses opostos confrontam-se diariamente. Os preços, portanto, não podem ser atribuídos a simples variações nos níveis da oferta e da procura, mas dependem fundamentalmente do custo da mão-de-obra, das matérias-primas e das politicas dos produtores. O utópico “mercado livre” de Smith e dos nossos liberalistas em molho neoclássico não existe: a sociedade é dominada por cartéis e monopólios, não porque o Estado e a burocracia interfiram nas “leis naturais do mercado” (a auto-regulação), mas exactamente porque a própria dinâmica das sociedades neo-capitalistas torna tudo alienado, destrói os laços sociais e o sentido comunitário da vida. Ao considerar isso, é evidente que pensar que ao aumentar a produtividade os capitalistas (a classe dominante) decidam baixar os preços parece bastante ingénuo. A realidade fala da vontade para um lucro crescente, não para um preço decrescente.
  2. a procura, especialmente em períodos de depressão (como o período que estamos a viver), é realmente sensível às mudanças de preços? As provas empíricas dizem-nos que não. É suficiente observar o que se está a passar na Europa: o Velho Continente está preso numa espiral deflacionista (queda dos preços), mas a procura de bens e serviços continua a cair drasticamente. Podemos concluir que a relação entre a procura e os preços é muito ténue, e ainda tende a diminuir em períodos em que a economia nacional está particularmente deprimida.Se depois considerarmos um futuro cada vez mais tecnológico, as legiões de desempregados não irão desaparecer tão facilmente e uma maior oferta não conseguirá estimular o mercado dado o limitado poder de compra.

Henry Ford & Keynes

Como resolver? Como muitas vezes acontece, a solução pode ser encontrada no passado.

Em Janeiro de 1914, Henry Ford aplicou entre os funcionários da sua fábrica de automóveis nos Estados Unidos a redução do turno de trabalho diário de 9 para 8 horas e o contemporâneo aumento do salário diário de 3 para 5 Dólares. Ford não era propriamente um comunista, não apreciava muito os soviets russos, no entanto fez funcionar o cérebro:

Resolvemos pagar salários mais elevados para criar uma base sólida sobre a qual construir o negócio. Cinco Dólares por um dia de trabalho de oito horas foi uma das estratégias mais eficazes de redução de custos que alguma vez implementámos.

Mais tempo livre para a ovelha consumidora, mas dinheiro no bolso dela: isso significa mais tempo para gastar em compras. Simples, não é? John Maynard Keynes, o economista ao qual Paul Krugman afirma inspirar-se, previa já em 1930 que dentro de cem anos a semana de trabalho teria diminuído gradualmente para 15 horas, permitindo às pessoas tempo para paixões, lazer e saúde.

Reduzir as horas de trabalho, mesmo sem aumentar o salário, parece uma solução banal, mas quando for proposta a um neoliberal… horror! É como falar de sexo com uma puritana. Mas se o desejo for enfrentar o problema de forma séria, analisando esta hipótese não só de um ponto de vista neoliberal, as coisas fazem todo o sentido.

Os custos do desemprego

Muito esquecem-se de que o desemprego tem custos e estes não são pequenos:

Pelo que: custos enormes. Vice-versa, o que aconteceria com uma significativa redução do horário de trabalho? Obviamente o contrário de quanto descrito acima:

Obviamente, a redução do horário de trabalho pressupõe uma significativa redução da carga fiscal das empresas para compensar o aumento imediato dos custos. Haverá para o Estado uma receita fiscal mais baixa, que será compensada pela redução dos custos enumerados acima e pelo aumento das receitas derivantes da retoma do mercado.

Mas há também vantagens para as empresas, porque uma redução do horário de trabalho aumenta a produtividade do trabalhador, porque lhe permite manter uma maior concentração e reduzir o stress relacionado com o trabalho.

Redução do horário de trabalho ? Lololol….

Pelo que, considerados os prós e contras, a pergunta é simples: pode ser implementada já uma redução do horário de trabalho? A resposta também é simples: não, não pode. E não será implementada tão depressa.

O facto é que todo o raciocínio exposto até aqui é valido numa economia de nível nacional, com um horizonte limitado. Deixa de ser válida num mundo cada vez mais globalizado, onde a competitividade é feita com Países que exploram os trabalhadores em troca de salários miseráveis. A China é o principal exemplo disso: jogando com uma moeda cujo valor é mantido artificialmente baixo (para favorecer as exportações) e com uns salários de fome (para favorecer a produtividade), os bens de Pequim chegam em todo o mundo e arrasam qualquer concorrência.

Já as empresas ocidentais têm imensos problemas agora por causa disso, podemos imaginar o que significaria um aumento dos custos de produção: muito antes de começar o “círculo virtuoso” provocado pela diminuição do desemprego, muitas das empresas seriam obrigadas a fechar.

Paralelamente, os indicadores económicos dum País iriam piorar com evidentes recaídas no spread, por exemplo: o Estado teria cada vez mais problemas em financiar-se, o custo da Divida Pública iria disparar e todos os serviços públicos entrariam em sofrimento.

Estes são apenas dois exemplos mas já são suficientes para anular a quase totalidade das vantagens que seria possível conseguir através da redução do horário de trabalho. Mais desemprego e queda no nível de vida.

Isso significa que afinal Paul Krugman tem razão? Na prática, a produtividade é tudo? Sim, neste sistema distorcido, completamente anti-natural, Krugman tem razão: a qualidade de vida num País depende da capacidade produtiva. O aumento da produtividade aumenta o desemprego mas uma queda da produtividade cria ainda mais desemprego.

Mais: no actual sistema, os grandes conglomerados privados (como as multinacionais) descarregam os custos sociais no Estado, ficando apenas com os lucros. Quer lá saber a Volkswagen se a unidade de produção de Palmela (a Autoeuropa, aqui ao meu lado) despede pessoal: os desempregados ficam como um problema do Estado português, os lucrosa vão para a Alemanha. Isso acontece com as multinacionais em todo o planeta.

Tudo isso não apenas não resolve os nossos problemas como até deixa vislumbrar um futuro cheio de incógnitas: com as continuas inovações tecnológicas, a produtividade pode atingir novos patamares mas à custa do número de lugares de trabalho. Não é preciso ser um ludista para observar que muitos trabalhos uma vez manuais hoje são automatizados: pensamos nas portagens das auto-estradas onde hoje somos recebidos por uma voz metálica que dita o ritmo das nossas acções. E no futuro haverá cada vez mais do mesmo.

Soluções? Para já uma: reconhecer e combater o verdadeiro inimigo. Que tem um nome: Globalização.

No âmbito económico, na óptica dos trabalhadores e de todos os cidadãos: qualquer partido ou movimento que não ponha no topo da lista a necessidade de travar este processo é alguém que não faz os interesses da comunidade. Qualquer figura pública que elogie ou simplesmente assuma a Globalização como um processo irremediável é alguém que trabalha para prejudicar os cidadãos. Qualquer partido ou sindicato que (alegadamente) promova a redução do horário de trabalho sem antes erradicar o fenómeno da Globalização está a mentir ou, no mínimo, trata os cidadãos como deficientes.

Isso para já. E no futuro? Outra vez: lolololol…

 

Ipse dixit.