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Antígona

Domingo de manhã, uma esplanada: nem levei o telemóvel comigo, só quero apanhar o sol neste Inverno tão rijo e olhar em volta. Pais que falam, crianças que brincam… falta alguém? Acho que sim. Mas é Domingo de manhã, os jovens estarão ainda a dormir.

Chegam 13:00 horas, altura do recolher obrigatório em Portugal. Não tenho vontade de levantar-me, continuo a olhar em volta e observo os “rebeldes” que como eu decidiram furar o horário: pais, crianças, pais, crianças… continua a faltar alguém. Então começo a pensar nos comentários de Informação Incorrecta, nos que gerem outras páginas assim chamadas “alternativas”, nos que comentam por aí também. Somos velhos. Quarenta, cinquenta, sessenta ou mais anos de idade? Não importa: velhos. Onde ficam os jovens?

Antígona

Antígona era a mais nova dos quatro filhos de Édipo. A sua tragédia fala da desobediência da jovem mulher ao edital estatal que Creonte, governante de Tebas, tinha promulgado: proibição de dar uma digna sepultura ao corpo de Polinices, irmão de Antígona, derrotado na batalha para recuperar o trono de Tebas.

O édito é impiedoso: a pena para os transgressores é apedrejamento público, o cadáver de Polinices tem que ficar exposto à putrefacção e à dilaceração. Antígona, indignada, tenta convencer o novo rei a enterrá-lo, pois quem morresse sem os rituais fúnebres seria condenado a vagar cem anos nas margens do rio que levava ao mundo dos mortos, sem poder ir para o outro lado. O rei é irremovível. Mas também Antígona.

Ela rouba o cadáver do irmão, que estava a ser vigiado, e tenta enterra-lo com as próprias mãos, mas é presa enquanto o fazia. E Antígona morrerá por ordem de Creonte.

Antígona marca um ponto de viragem: o choque entre a lei do Estado e a lei divina. O drama também fala de uma acção baseada no amor e, afinal, daquele que é o verdadeiro crime aos olhos de Creonte: a juventude de Antígona e a força dela. O mito de Antígona fala sobretudo disso e tornou-se o símbolo das leis não escritas que a juventude inventa em cada geração, criadas por energias incomensuráveis e pelo amor. A ordem, qualquer ordem, não entra aqui em jogo porque a juventude é naturalmente feita de sonhos e fantasias, não de disciplina, que é imposta pelos velhos.

Mas onde está hoje Antígona? Onde estão as gerações mais jovens? Porque não se exprimem?
Onde está o espírito antagonista de Antígona? O que aconteceu aos jovens nesta época em que um vírus coroado aprisiona todos dentro das suas paredes? Temos os novos Creontes, temos muitos deles que emitem editos, um atrás do outro. Mas não temos Antígona.

Os territórios considerados outrora como lugares de encontro para jovens estão proibidos ou limitados. Ginásios, estádios, concertos agora não são considerados essenciais mas sim fontes de doença. Cafés, esplanadas, bares, pizzerias… tudo com horários limitados quando não totalmente fechados. A mesma escola, também local de convívio e de amizades, caiu num buraco construído reforma após reforma, um buraco feito de pais, associações, psicopatas e projectos onde o estudante é tratado como um elemento de desconforto e agora de contagio também. As temáticas acerca dos adolescentes são sempre deslocadas para a frente do sofrimento, do desvio, do mal-estar: evidentes projecções dos medos dos mais velhos.

E Antígona? Em silêncio. Ou melhor: numa outra dimensão, numa nova realidade. Os jovens falam e interagem mas no digital. É este o lugar onde tentam esconder-se do Minotauro Covid, um monstro que vagueia no labirinto, esfomeado por carne jovem a ser engolida, regurgitada, remodelada, reeducada. Tentam fugir como podem, no virtual, e com isso enterram-se cada vez mais na toca do monstro. Tolos? Nada disso: fomos nós que ensinámos a não lutar, a não organizar, a ignorar o sabor da conquista após o sacrifício. Os jovens limitam-se a seguir o caminho que os pais indicaram-lhes. Criámos uma geração de velhos, até mais velhos do que nós.

Antígona morreu?

Quando era jovem via os carros da polícia que corriam para travar a “loucura” da juventude. Naquele café ontem foram mortos dois carabinieri, naquelas escalas ainda há o sangue fresco do juiz e da escolta dele, naquele prédio lá no fundo foram mortos quatro “terroristas” e hoje temos uma rusga na escola, há polícia por todos os lados, uma professora foi presa, é uma “deles”. Coisas que testemunhei, que agora trazem de volta um mundo que já não existe: um mundo feito de erros, de ideias mal concebidas, ainda pior executadas e talvez exploradas por quem ficava na sombra. Mesmo assim, um mundo onde os mais jovens não se conformavam, onde rapazes mais velhos do que eu, com 18, 20 ou pouco mais anos, assumiam o seu ponto de vista e arriscavam tudo, até a vida. E é precisa coragem para arriscar a nossa própria vida, seja qual for o ideal em jogo.

Não foram “tempos felizes”, não pode haver saudade de coisas assim. Mas podemos sentir falta de outras coisas: da fantasia, dos sonhos, da vontade de pôr em causa a ordem constituída e de lutar para uma vida melhor. Todas coisas que devem ser alimentadas com a linfa da juventude: este não é um trabalho para velhos.

Haverá excepções? Haverá o silêncio como forma de supremo desprezo? Será que no fundo daqueles jovens corações ainda há a leveza e ao mesmo tempo a profundidade do futuro?

Ou será que o conformismo matou Antígona? Morta porque nós, os velhos, um pouco de cada vez com a corrupção dos costumes, a inversão da verdade e com a podridão institucional (eh sim, o peixe cheira mal da cabeça) conseguimos secar a linfa, atirando os jovens corpos sem paixões para a frieza do digital?

Onde raio está Antígona?

 

Ipse dixit.