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Curto ensaio sobre a neutralização do idioma português

Enquanto uma falsa pandemia circula pelo planeta e as economias precipitam em buracos cada vez mais profundos, as Nações Unidas tratam de outros problemas, mais graves e preocupantes.

Um tweet mostra o modelo linguístico que todos temos que adoptar para tornar o nosso planeta um lugar mais feliz. Como? Simples: evitando palavras politicamente incorrectas, que podem ferir o delicado ouvinte. Explica o tweet:

O que dizes é importante. Ajuda a criar um mundo mais justo, utilizando uma linguagem neutra em termos de género, se não tiveres a certeza do sexo de alguém ou se te referires a um grupo.

Eis a lista das palavras inglesas politicamente incorrectas, as que fazem sofrer as pessoas mais sensíveis:

O problema é que a maioria destas palavras utiliza o prefixo ou o sufixo -man, que indica um homem. E isso é grave. Pelo que, eis os termos na versão politicamente correcta:

Tudo isso é justo? Sim, é mais do que justo. Em democracia o poder está nas mãos da maioria. Mas dado que não vivemos numa verdadeira democracia, é justo que sejam as minorias a condicionar a atitude da maioria. É neste sentido que procede a seguinte contribuição.

A neutralização do idioma português

Nos Países de língua portuguesa temos sorte: muitas vezes não é preciso substituir por completo a palavra mas apenas modifica-la para torna-la neutra e mais educada. Única obrigação: suprimir o artigo. Alguns exemplos:

Bastante simples. O artigo poderia ser mantido ao utilizar, por exemplo, uma vogal neutra como a “e”, algo que poderia preceder todos os substantivos.

Liga os bombeiros! = Liga e bombeir!

Todavia, a minha ideia é que a modernização do idioma deveria ser explorada para tornar a língua mais prática e directa. De facto, o artigo não é indispensável no âmbito do discurso e a relativa supressão não modifica o sentido do mesmo. Isso sem esquecer a poupança da tinta e, ainda mais importante em termos ecológicos, das páginas: uma poupança óbvia ao apagar de forma definitiva o espaço actualmente ocupado pelos artigos.

Poucas as expressões que irão requerer uma modificação mais profunda:

É apenas uma questão de treino: com o tempo será cada vez mais simples lembrar-se das versões politicamente correctas e económicas.

O problema dos substantivos

Todavia, gostaria de ir além para analisar uma situação que inevitavelmente com o tempo iria apresentar-se. Pegamos no primeiro exemplo:

Aqui o termo “ambulância” foi transformado no neutro ambulânci. É justo porque não se entende por qual razão um meio de socorro tenha que ser feminino: os homens e os gays nas várias declinações são incapazes de prestar socorro? Claro que são perfeitamente capazes. Então aquela “ambulância” é racista. Mais: porque “socorro”, que é masculino? Não há uma evidente contradição? Chamamos uma “ambulância” (feminino) para prestar “socorro” (masculino)?

Isso pode confundir as crianças, que depois crescem com tais dilemas de género que provocam stress e que até podem acabar em patologias do foro psicológico (quando não psiquiátrico). Portanto, é apenas uma questão de tempo antes que esta crise de género se torne uma avalanche que arrasta toda a nossa construção linguística, tornando quase impossível a comunicação.

A chave: “i”

Para boa sorte, há uma possível solução: introduzir um terceiro género, de tipo neutro, tal como existia na língua latina. O ideal seria que os substantivos, todos eles, acabassem em “i”. Neste caso, a grande vantagem reside no facto de que seria possível “neutralizar” todas as palavras do vocabulário português, não apenas as que têm uma forte contextualização do género.

Alguns exemplos:

O plural seria construído, de forma bastante intuitiva, com a duplicação da “i” final:

Nota: esta modifica poderia abranger os artigos também. Neste caso, o e seria a forma singular enquanto ei seria a forma plural.

Mas vale quanto já referido acima: se for para modificar, mais vale optar para uma modernização que consiga juntar o respeito do género com a pragmaticidade, pondo definitivamente de lado os vazios embelezamentos estilísticos em prol da utilidade.

Portanto, vamos ver como seria uma frase normal proferida no âmbito familiar:

Mãe, pego no telemóvel, nas chaves de casa e vou buscar o pai à estação dos comboios. = Progenidori, pego telemóvi, chavii de casi e vou buscar outri progenidori estaci comboii.

Nada que seja impossível de adoptar após um curto e intensivo período de treino.

O falso problema dos clássicos

Como é lógico, também as obras literárias deveriam ser modificadas para evitar qualquer tipo de insinuação que possa ferir o sensível Leitor:

Armii e barõii assinaladii,
Que di ocidental prai Lusitani,
Por marii nunca de antes navegadii,
Passaram ainda além Taprobani,
Em perigii e guerrii esforçadii,
Mais do que prometia forçi humani,
E entre genti remoti edificaram
Novi Reini, que tanto sublimaram;

Este verso dos Lusíadas precisou apenas de alguns segundos para ser adaptado às novas regras neutralizantes. Não é descabido imaginar que um inteiro clássico possa ser modernizado no prazo de um só dia. Isso significa que a inteira produção literária lusófona pode requer poucos meses para a completa transformação. E acerca dos efeitos benéficos pode-se ler quanto afirmado de seguida, no paragrafo dedicado aos custos.

O papel das preposições

Voltando à questão gramatical, queria realçar as necessárias modificações dos adjectivos, dos artigos (dos quais já tratámos), que seguem as mesmas regras dos substantivos, e sobretudo das preposições: estas últimas poderiam ser transformadas em forma neutra (exemplo: da = di), mas acho que o resultado ficaria agravado por um excessiva predominância das “i”, pelo que sugiro, quando isso for possível, optar pela completa remoção das mesmas, mesmo tendo consciência da delicadeza do assunto, pois nem sempre é possível eliminar uma preposição sem alterar o sentido duma frase.

No contexto como o seguinte “Vou para o Porto = Vou Porti” a preposição é redundante: não há dúvida de que este frase indique uma deslocação e que a meta final seja a cidade de Porto. Nem é preciso introduzir as declinações de latina memória, pois o sentido da frase é evidente com ou sem a preposição.

Mas há excepções nas quais as preposições desenvolvem um papel fundamental que não pode simplesmente ser apagado, pena a transformação do sentido da frase. Pelo que é lícito optar A) para a total remoção quando o significado da frase não dependa integralmente da preposição e B) para a neutralização da mesma quando o seu papel seja preponderante.

Uma possível alternativa

Até aqui vimos como neutralizar as palavras com a introdução da vogal “i”. Mas existem possíveis alternativas? Sim, existem. Uma solução poderia ser a neutralização do idioma tal como praticado na ilha da Sardenha (Italia), onde a forma neutra foi mantida ao longo dos séculos no dialecto local, não acaso rico em “u” (de evidente origem latina). Exemplo:

Arrubiu chi su fogu (italiano: Rosso come il fuoco) = Vermelho como o fogo

Todavia, a utilização da “u” (comum ao idioma romeno, não acaso com fortíssimas influências latinas) torna a língua menos elegante, muito mais “pesada”. Pessoalmente continuo a sugerir a adopção da “i”, bem mais melódica.

Custos

Falar de “custos” parece-me incorrecto: ao adoptar medidas para a evolução da sociedade no sentido positivo, é mais justo falar de “investimentos”.

Mas, além das questões semânticas, não podemos ignorar os efeitos práticos da mudança: por exemplo, alavancagem económica que as medidas iriam proporcionar. As empresas que trabalham no campo editorial ou da sinalização (estradal, por exemplo) iriam ver as suas encomendas aumentadas num curto espaço de tempo pela quase total substituição dos velhos termos com os novos.

Já citados anteriormente, os clássicos poderiam constituir um forte aditivo no âmbito da produção literária: inteiras bibliotecas deveriam ser substituídas e isso significaria mais receitas para tradutores, editoras, transportadores… a neutralização do idioma português favorece o mundo do trabalho, combatendo eficazmente a praga do desemprego.

Feitas as contas, as modificações introduzidas teriam o efeito de um inesperado aumento o PIB dos Países lusófonos, com consequente valorização dos Títulos nacionais de Dívida e redução do spread.

As razões profundas

Tudo isso, lembramos, não é um mero exercício linguístico mas é parte integrante da construção dum mundo melhor, sem dúvida mais justo, onde cada um pode viver a sua sexualidade sem ser por isso descriminado.

É claro que as presentes notas não passam duma sugestão, cabendo aos académicos a tarefa de aperfeiçoar o que aqui foi apenas esboçado. Mas a direcção não pode ser que esta.

É sabido que o idioma é influenciado pelas nossas ideias; mas também é verdade o contrário: o idioma utilizado influencia a forma como pensarmos. A edificação duma nova sociedade passa obrigatoriamente pela formação não natural dum idioma que ajude o indivíduo a pensar duma forma diferente da actual. Uma evolução artificial da língua é um passo importante para uniformizar o pensamento aos ditames globais, não apenas para respeitar as minorias sexuais.

As Nações Unidas trabalham nesta direcção. E nós com elas.

 

Ipse dixit.