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O egoísmo e a miopia da Alemanha

Shhhhhhhh… silêncio, está tudo bem. Não aconteceu nada. Já hoje é difícil encontrar nos diários do burgo um artigo acerca da decisão do Tribunal Constitucional. Os problemas são as máscaras e o distanciamento social. Não há crise nenhuma, todos vamos ficar bem. E paciência se a Alemanha começou a sepultura da União Europeia: concentrem-se no gel desinfectante e limpem as mãos cantando “parabéns a você” nove vezes.

Os alemães. Pois, sempre eles. Os juízes de Karlsruhe chumbam o direito do Banco Central Europeu de ajudar os Países mais atingidos pelo Covid-19. Dia 5 de Maio: o Tribunal Constitucional que o Bundesbank participe nos programas do BCE apenas na condição da “flexibilização quantitativa” favorecer a Alemanha.

Estamos perante o início do fim da UE? Muito provável. O coração profundo da Alemanha bancária, que se exprime agora através do Tribunal Constitucional, está pronto para tudo: a desafiar o BCE, pretende “parar o processo da integração europeia”, mesmo que isso custe a vida do Euro e da mesma União. Atenção, não que a Alemanha esteja preocupada com a integração: Berlim quer a integração à maneira alemã, isso é, de forma que tudo favoreça a economia de Berlim.

Depois de explorar ao máximo a fixação da taxa de câmbio do Euro, com a qual obrigou os outros a pagar os custos da sua reunificação; depois de explorar a crise económica grega, permitindo que os cartéis alemães adquirissem importantes infraestruturas gregas;  depois de ter imposto à Grécia a reestruturação da Dívida que era inicialmente modesta mas que foi feita aumentar com os programas de “ajuda”; depois do Governo alemão ter intervindo directamente para salvar os bancos alemães que tinham uma enorme quantidade de obrigações tóxicas gregas (contrariando assim a directiva europeia de 2014); depois de tudo isso, em plena crise da Covid-19, o Governo alemão decide que as ajudas à economia europeia, como o Quantitative Easing, não prestam. O que põem em forte dúvida qualquer ajuda para a recuperação continental após a crise do Coronavirus.

A ideia é clara: Berlim não quer comprometer-se na ajuda para os Países em dificuldades. “Desenrasquem-se” é a ideia.

Mas a mesma Alemanha está prestes a lançar um programa de apoio à indústria de um trilião de Euros, que, no entanto, não serve para apoiar a pequena e média indústria (como bares, restaurantes, artesãos, profissionais), mas serve para “dar vida a um grande processo de inovação do sistema industrial”, ao ponto de a própria Comissão Europeia tem apresentado dúvidas sobre a legitimidade da dimensão desta intervenção financeira desequilibrada em relação às intenções das instituições europeias de autorizar os auxílios.

Então é um “Desenrasquem-se e cada um para o seu grande capital”.

Sem sentido do ridículo, o Tribunal Constitucional da Alemanha pede ao BCE uma explicação de como investiu o dinheiro para os programas de compra de títulos, como se isso fosse um segredo. No orçamento do BCE existem 2.189 biliões de Euros de Títulos de Estado dos Países da Zona Euro: 534 biliões são obrigações alemãs, 452 biliões são obrigações francesas e 393 biliões são obrigações italianas. A mais favorecida, ainda uma vez, foi a Alemanha.

Depois há os aspectos jurídicos. O Tribunal alemão viola o princípio da primazia do Direito Europeu. Não só: viola o acórdão do Tribunal de Justiça (C-493/17) de Dezembro de 2018 e viola, por excesso de jurisdição, os artigos 267 e 344 do TFUE, o Tratado de Lisboa. Além disso, acusa o BCE de actuar fora da sua competência de forma infundada. E não entende (ou melhor: faz de conta de não entender) que foram precisamente aquelas decisões do BCE que salvaram o Euro.

Em todos estes anos, a Alemanha tem violado repetidamente os tratados europeus, com os excedentes de exportação e toda a astúcia que pode ser concebida em qualquer sistema, violando o princípio da cooperação leal que vincula os Estados-Membros. Tudo isto tem sido sempre tolerado pela UE por deferência injustificada. Porque Berlim é sempre Berlim. E porque, no caso francês, o abuso sistemático foi tolerado em troca da repetida superação do défice orçamental por parte de Paris.

“Desenrasquem-se, cada um para o seu grande capital e não façam o que eu faço”

Nos últimos dias, um grande analista económico como o alemão Wolfgang Münchau tinha saudado das páginas do Financial Times o plano desenvolvido por Christine Lagarde, actual chefe-suprema do BCE: um programa de ajuda sem precedentes, equivalente a algo como 3 triliões de Euros para ultrapassar a crise económica provocada pela “pandemia”. Em outras palavras: dinheiro atirado do helicóptero, para apagar o falso dogma da escassez de dinheiro, dogma que até agora serviu como base da assustadora austeridade europeia, da qual só a Alemanha e os seus satélites como a Holanda beneficiaram.

Precisamente este plano do BCE deve ter desencadeado a alta sociedade alemã, que agora compromete seriamente o futuro da própria União Europeia. A brutalidade do pronunciamento alemão é a pior das respostas à carta com que Mario Draghi (antigo Presidente do BCE), sempre no Financial Times de dois meses atrás, anunciava a necessidade de uma viragem histórica: basta com o rigor, porque desta vez, sem uma injecção maciça de dinheiro público, desembolsado imediatamente e sem condições, a nossa economia enfrentaria um colapso catastrófico.

Se a Alemanha utiliza hoje o seu Tribunal Constitucional para ser injusta para a Europa, mesmo perante a brutal crise económica provocada pela “pandemia”, é difícil imaginar como o velho quadro europeu possa ser recomposto. Mas a passagem de testemunho entre Obama e Merkel, com a qual a Alemanhã tornou-se o centro político da globalização, tem só um problema: subentende uma Alemanha como jogador principal duma Europa unida, porque no mundo globalizado não há mais espaço para os “pequenos”, apenas para os grandes complexos económicos, os únicos capazes de pôr em cima da mesa um poder contractual suficientemente forte.

A morte do Euro seria a morte do sonho hegemónico de Berlim. Para todos os outros: o acordar dum pesadelo que já dura há demasiado tempo.

 

Ipse dixit.

Imagem: Peter Schrank