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A América Latina e o preconceito social

Diz Sergio (que muito agradeço desde já!):

Nas palavras do Lula: ” O cidadão do andar de cima, não gostou de ver a ascensão do cidadão do andar de baixo”.

Desagradou a muitas pessoas, ver negro na universidade, aeroporto com jeito de rodoviária, encontrar a filha da empregada no shopping center, ver seus filhos disputando concursos públicos e empregos com outros menos afortunados.

Este descontentamento foi extravasado no apoio ao golpe de 2016 e nas eleições de 2018. Houve outros interesses de forças internas e externas ( que já foi relatado pelo Max, Maria e outros ), mas que , para mim, só se fortaleceram porque encontraram ressonância num sentimento nefasto de uma parte influente da população .

E tenho mesmo que agradecer Sergio, porque esta é uma daquelas coisas que só quem consegue ver um País a partir do interior pode devidamente conhecer e apreciar. Eu, por exemplo, não tinha minimamente considerado este ponto de vista, também porque a realidade portuguesa e italiana são diferentes neste aspecto. Mas acredito que seja um aspecto muito importante e que tenha contribuído para a actual situação brasileira (e, mais no geral, de boa parte dos Países da América do Sul).

Parece-me (posso estar enganado, óbvio) que ainda haja na América Latina uma fractura significante entre as várias classes sociais, em particular uma fractura gritante entre as elites locais e os cidadãos comuns. Não que na Europa ou no resto do mundo esta fractura não exista: existe em todos os continentes. Aliás, boa parte de Informação Incorrecta é dedicado ao choque entre a elite e os povos. Mas na América do Sul a coisa é algo diferente.

No resto do mundo, por exemplo, temos observado o crescimento duma elite supranacional que passou a dominar por completo as decisões não apenas económicas como políticas também. Não que antes esta elite não existisse, existia tal como sempre existiu: mas, sobretudo nas últimas décadas, o seu poder foi acrescido até substituir por completo o conceito de política com aquele de economia globalizada, através da obra das multinacionais. Na América do Sul há esta elite também, mas com uma característica particular: é presente como uma espécie de “aristocracia” que deriva a sua condição de unicidade de razões históricas, nomeadamente da época do colonialismo numa primeira fase e da cumplicidade com as forças armadas numa segunda fase (sem esquecer, como é claro, a obra da CIA e afins).

Contrariamente ao resto do mundo, onde a elite ganhou imensa força ao corromper as instituições democráticas a partir do interior, na América do Sul o poder desta “aristocracia” é algo que conseguiu manter-se mais ou menos constante ao longo do tempo e que encontrou novo vigor com o “livre mercado”, pois nada mais simples para uma multinacional de que aliar-se com a elite local para manter inalterado o controle sobre os principais recursos que devem ser explorados.

Isso não significa que a culpa do actual mal estar brasileiro seja dos portugueses, como já li em tempos nos comentários, assim como os problemas da Argentina ou do Chile não são responsabilidades dos espanhóis. A realidade é um pouco diferente: o sistema foi mantido ao longo do tempo e teve dum lado a resistência desta “aristocracia” perante qualquer mudança e do outro lado a incapacidade das massas (falamos de centenas de milhões de pessoas) em abalar os alicerces deste mesmo sistema.

Isso explica muito bem a existência dum forte sentimento socialista na América Latina. O que Pepe Escobar encara como uma nova via apontada por parte da América Latina, parece mais a velha resposta das massas que encontram na Esquerda clássica as razões e, supostamente, os instrumentos duma “vingança” contra os abusos das elites locais. Este é um problema, porque nenhuma estrutura realmente democrática pode nascer ou sobreviver no meio de exasperações revolucionárias ou de controle “aristocrático”.

O principal problema das “frágeis democracias” da América Latina parece-me este: ninguém quer um verdadeiro sistema democrático, nem a elite, nem boa parte das massas ou dos líderes da Esquerda. O caso de Evo Morales parece-me significativo: após mais de dez anos no poder, uma vez chegada a altura de deixar o cargo, o Presidente decidiu nada menos que alterar a Constituição para manter-se no lugar, chegando ao ponto de ir contra a expressa vontade popular. Pode existir algo de mais anti-democrático?

Com certeza os defensores de Morales podem justificar esta escolha com o facto de que, sem o Presidente, a Bolívia teria sido vítima das interferências da “aristocracia” local e das multinacionais, sobretudo norte-americanas. Provavelmente é verdadeiro, mas também esta justificação é declaradamente anti-democrática: o fim justifica o atropelamento de qualquer regras democráticas.

O que poderia não ser um problema tão grave: é possível imaginar um futuro diferente, desligado do actual conceito de democracia. Não acho haver mal nenhum em tentar novas estradas, desde que a grande maioria da população concorde com isso. Sobretudo numa realidade como a América Latina, onde o conceito de democracia tem dificuldades em vingar, nada mais normal do que experimentar algo diferente. O problema é: qual a alternativa oferecida?

Até agora não é possível encontrar algo “novo”. Na maior parte dos casos, uma vez no poder, os exponentes da Esquerda escolheram aceitar a participação no “livre mercado”, marcando assim o fim da “vingança” e deixando a porta aberta às elites supranacionais. Houve uma altura em que a América Latina era governada por Chávez (Venezuela), Morales (Bolívia), Lula (Brasil) e Kirchner (Argentina), só para citar as realidades principais. Uma conjuntura única, onde a maior parte dos Países tinha uma liderança inspirada nas ideias da Esquerda. O que aconteceu? Aconteceu o seguinte: todos atiraram-se para o ilusório “livre mercado” (lembram-se dos BRICS?). E todos pagaram um preço elevado por esta escolha, como era lógico que acontecesse pois o “livre mercado” não perdoa.

Resultado: o jogo recomeçou, pois as multinacionais de regresso, como primeira coisa, assinaram alianças com as elites locais, mantendo inalteradas as fracturas sociais (aquele que Sergio chama justamente de “preconceito social”), enterrando mais uma vez as eventuais aspirações democráticas. Estaca zero,com Bolsonaro que é um bom exemplo desta aliança.

Obviamente posso bem estar errado, eu vivo do outro lado do oceano: portanto, se acham que algo deve ser corrigido, façam o favor de comentar porque esta é a melhor maneira para todos podermos aprender.

 

Ipse dixit.

Fotografia: IPS News