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As revoltas na América do Sul e o FMI

Surpresa: hoje nada de podcast. Voltemos ao antigo, voltemos ao artigo escrito: mas não fiquem habituados porque esta é uma excepção devida a um pequeno problema técnico.

E para este artigo old fashion vamos falar de América Latina. Isso porque a região é varrida por uma onda de protestos e de violência. Outra vez. E tudo desencadeado por um emaranhado de crises económicas, aumentos de custos, tensões sociais e políticas.

No Chile, hoje talvez o País mais rico do continente, o Presidente Sebastian Piñera declarou o estado de emergência, pela primeira vez desde a era da ditadura de Augusto Pinochet. E há vítimas, pelo menos sete até agora, nas manifestações desencadeadas pelo aumentos dos preços nos transportes e por uma crescente desigualdade.

Mas o Chile não é um caso isolado. Vimos nas últimas semanas o caso do Equador, as manifestações que abalaram o governo de Lenin Moreno, manifestações impulsionadas pelo fim dos subsídios aos combustíveis. Temos a Argentina, que na véspera das eleições cruciais de 27 de Outubro se encontra em revolta contra o Presidente Mauricio Macri e as suas políticas de cortes na despesa pública e de controles sobre os movimentos de capitais. Tudo isso sem contar o colapso prolongado da Venezuela sob o regime de Manuel Maduro, Venezuela onde mais de 4 milhões de cidadãos fugiram do País. E depois temos o Brasil que está no centro de batalhas políticas e escândalos de corrupção, enquanto a economia entrou numa espiral descendente com o glorioso líder Jair Bolsonaro.

Assim, a América Latina volta ao centro das preocupações dos observadores, num fenómeno que ocorreu repetidamente e tragicamente durante a sua história. Segundo as estimativas do Fundo Monetário Internacional, o crescimento na região que inclui a América Latina e o Caribe deve fixar-se este ano num imperceptível +0.2% após uma média de +0.6% registrada nos últimos cinco anos. Qual a diferença entre +0.2 e +0.6?A diferença é -0.4%. Parece algo pequeno, não é? Mas não, é um oceano de dinheiro, e agora este dinheiro faz falta.

Este 0.4% em negativo indica a exaustão do crescimento impulsionado desde o ano de 2000 pela venda das commodities, em primeiro lugar do petróleo: e aqui é preciso parar porque temos que realçar aquela que tem sido uma explicação fornecida ao longo dos últimos anos e que agora demonstra a sua fraqueza.

A explicação era a seguinte: o preço do petróleo está em queda porque os Estados Unidos querem tramar a América do Sul e derrotar os governos de Esquerda. Ora bem: os governos de Esquerda foram derrotados em quase toda a América do Sul, nesta altura seria preciso um petróleo mais caro (e commodities mais caras no geral) para ajudar os governos de Direita, mas isso não está a acontecer. Por qual razão? Porque a queda do preço das commodities não foi uma arma apontada contra a América do Sul, esta foi apenas uma leitura ideológica da crise, uma leitura um pouco megalómana até e que tinha com objectivo esconder as falhas dos políticos sul-americanos. A crise tinha e tem raízes bem mais profundas.

E o resultado é que os recentes movimentos conservadores da região não conseguem cumprir as promessas de trazer um novo crescimento ou estabilidade ou transparência com as reformas do mercado. Pelo contrário, hoje correm o risco de agravar o empobrecimento, o colapso das fracas classes médias, os dramas da corrupção e as espirais de protestos exasperados pela ausência de qualquer verdadeira reforma. Mais de 40% da população ainda vive em condições de pobreza ou extrema pobreza, a taxa mais alta dos últimos dez anos.

Portanto, o forte ressurgimento dos riscos políticos e económicos está agora no centro das atenções. Os Presidentes dos vários Países estão presos entre a necessidade de impor mudanças de rumo e a incapacidade de realizá-las. Em quase todos os lugares existem governos impopulares com problemas fiscais que lidam com eleitores furiosos e cansados ​​da corrupção, maus serviços públicos e falta de dinamismo económico.

Uma falta de dinamismo que interessa até o México, que faz parte do Acordo de Livre Comércio da América do Norte e que recentemente elegeu um governo em teoria inspirado no progressismo. O País vacila à beira de uma recessão e estuda um plano de infraestrutura para evitá-la. Diz o Ministro das Finanças Artur Herrera:

Há uma sensação clara de que é importante garantir algum tipo de desenvolvimento económico que também lide com as desigualdades, desigualdades que bem podem piorar numa fase de desaceleração económica global.

Palavras bonitas. Só que, passados alguns dias, os dramas sociais e políticos do País voltar a ganhar destaque quando o governo foi forçado a libertar o filho do conhecido narcotraficante El Chapo, depois da milícia do cartel das drogas ter derroatdo no terreno os agentes federais.

No resto da América do Sul, a insatisfação dos eleitores foi promovida principalmente pelo aumento de serviços essenciais ou de necessidades básicas num clima económico muito frágil. No caso do Chile, que está a tornar-se o mais dramático desta altura, a polícia e as forças armadas usaram canhões de água contra os manifestantes. Muitas escolas e empresas estão paralisadas. Existem também vários episódios de saques. Nos subúrbios da capital Santiago, o saque de uma fábrica de roupas levou ao incêndio e cinco cadáveres foram encontrados mais tarde entre os escombros. Talvez mais três mortes podem ser contadas no incêndio de um supermercado no passado dia de Sábado, novamente na capital.

O Ministério do Interior contabilizou oficialmente sete vítimas até agora, mas são números que parecem provisórios. Mais de dez mil soldados estão a patrulhar as ruas e 1.400 foram as pessoas presas. O Presidente Piñera, um bilionário conservador, rotulou todos os manifestantes como “criminosos”, como “inimigos implacáveis e poderosos”, e convidou a população a unir-se ao seu governo no combate à “violência criminosa”. Depois da declaração do estado de emergência e depois do recolher obrigatório, pela primeira vez desde o final do regime de Pinochet, os protestos deram lugar a uma verdadeira revolta popular contra o governo de Sebastián Piñera. Entre manifestações e barricadas, o povo chileno aumentou o nível das suas reivindicações, expressando a rejeição de todo um modelo de governação.

O Chile que foi “vendido” como um oásis de estabilidade, como uma ilha feliz segundo as palavras de Piñera, acaba por ser o País com um dos mais altos níveis de desigualdade social do mundo. A proclamação do estado de emergência e a proibição de manifestação, o regresso dos tanques às ruas, tudo isso foi percebido como uma provocação contra as vítimas da ditadura e aumentou a raiva.

Um movimento semelhante de crise e protesto já tinha afectado o Equador como vimos no blog durante as últimas semanas. Oito vítimas, mais de 1.500 feridos. Uma violência desencadeada pela tentativa, depois cancelada, de eliminar os subsídios tradicionais à gasolina como parte de uma estratégia de austeridade para sustentar o empréstimo de 4.2 bilhões por parte do Fundo Monetário.

E depois temos o Brasil, atingido por numa forte recessão que entre 2015 e 2016 registrou um contracção do PIB de 7% e desde então uma fraca recuperação de 1.1%. As perspectivas não são positivas, os analistas reduziram pela metade as previsões para 2019. Bolsonaro está com problemas no seu próprio partido, toda a agenda de reformas parece parada, voam acusações de nepotismo e incompetência.

Entretanto, no Peru, o aumento da crise viu a exasperação da corrupção e do crime, com o presidente Martin Vizcarra que dissolveu o Parlamento e ordenou novas eleições. Mas esta, para já, parece ter sido uma ideia que tem o apoio popular.

Quando o gigante dorme…

Tudo isso é obra dos Estados Unidos? Tudo isso faz parte dum movimento que quer quebrar a resistência da América do Sul? Eu não vivo na América do Sul, portanto nada intendo e sou também um pouco estúpido. Mas a ideia que tenho é que tudo aquilo que está a acontecer não tem a ver com o demasiado interesse de Washington. Pelo contrário: tem a ver com o desinteresse dos Estados Unidos.

A falta de atenção a Administração de Donald Trump (com a excepção dos casos Cuba e Venezuela, por óbvias razões) em nada ajuda na tentativa de resolver os problemas sul-americanos. O lema America First traduziu-se num completo desinteresse dos problemas que vão do Peru ao Equador, do Haiti a Honduras. A política de Washington retirou-se da América do Sul, deixando a estrada livre à Grande Finança internacional que agora domina a economia da região. E o resultado é que, alimentados pelo declínio económico, os protestos, a raiva e os pontos de conflito estão a multiplicar-se porque, mais uma vez, os Países da América do Sul fizeram-se encontrar sem preparação perante as primeiras dificuldades económicas.

Há anos que neste blog apoio a tese segundo a qual o futuro da América do Sul não pode passar pelo copia/cola: não é possível pegar num modelo como aquele americano ou europeu e implementa-lo no Brasil, na Argentina ou seja onde for. Nenhum destes Países tem a força para aguentar um modelo que já está a falhar nas economias mais desenvolvidas. A maior culpa dos anteriores governos da Esquerda e dos actuais de Direita é o facto de não terem construído nada neste sentido: tem razão Lula quando diz que é com a educação que podemos combater o crime e a pobreza. É verdade. Mas antes é preciso construir aquelas bases que possam continuar a fornecer a educação também nas alturas de crises, caso contrário as conquistas dum governo irão pelo cano abaixo perante as primeiras dificuldades económicas e tudo voltará atrás, até a estaca zero, como está a acontecer nestes dias. Aliás, pior do que estaca zero: porque agora no Brasil há um clone de Trump, um clone que todavia chegou fora do tempo máximo, quando a Casa Branca está em rota de colisão com Wall Street, onde moram os poderes financeiros; e é um clone que não tem nem a força nem a esperteza saloia dum Trump.

Eu tenho muita simpatia por Jair Bolsonaro, aliás, acho que deveria ser preservado, deveria ser guardado com carinho, alimentado e protegido dum mundo que é infinitamente mais inteligente do que ele. Mas é claro que Bolsonaro não pode ser a base para o Brasil do futuro.

Como construir bases sólidas? Eu, como emérito ignorante, continuo a pensar que seja preciso algo novo, algo que não seja um modelo já visto e em crise, algo que seja o espelho das necessidades dos povos sul-americanos. Apagar aquelas ideologias que foram impostas, que não são originárias das vossas terras, como o comunismo, o socialismo, o fascismo e todos os -ismos.

Em vez que olhar para fora, tentar olhar para o interior, espreitar aqueles povos que já ocupavam as vossas terras antes da chegada dos europeus. Pode ser um bom ponto de partida. Ou talvez não. Mas qualquer coisa será sempre melhor do que continuar num mercado doentio que os sul-americanos não podem controlar, tal como não é controlado pelos cidadãos europeus ou norte-americanos.

Quem controla o mercado não são os cidadãos, não são as instituições nacionais. Estamos perante um resultado bastante claro: o resultado da ditadura global das instituições financeiras internacionais, em particular do FMI e do Banco Mundial. Vejam o que está a acontecer no Líbano, por exemplo, com a tentativa de introduzir uma taxa sobre Whatsapp e a sucessiva revolta que está a atropelar o País.

A economia mundial está à beira de uma nova recessão, algo que é reconhecido por parte do FMI e dos outros órgãos financeiros. E a melhor solução encontrada é sempre a mesma: a aplicação de medidas de austeridade, às custas dos trabalhadores nos Países que dependem da dívida e são forçados a aceitar as condições. Não há Esquerda ou Direita por aqui: há o poder da Finança e ponto final.

A única maneira para sair desta escravidão é fortalecer o poder local, poder que foi banido, foi posto num canto, foi tornado impotente. E isso foi feito porque o poder local só pode ser gerido por quem vive o “local”. O poder local assusta porque as grandes instituições financeiras como o FMI não conseguem controlar algo tão pequeno, estas instituições operam através de redes maiores, como por exemplo um conjunto de Estados: a força do FMI e do Banco Mundial está nos grandes números. O que seria do FMI se atrás dele não houvesse a totalidade dos bancos centrais mundiais, a totalidade dos mercados financeiros, dos investidores internacionais? Seria o fim do FMI. E seria o ressurgimento dos cidadãos.

Peguem no caso do Equador. A revolta dos cidadãos e o sucesso deles foi possível porque o governo de Quito tinha um parceiro para o diálogo: a Confederação das Nacionalidades Nativas Americanas do Equador. Ou seja: uma confederação do poder local. Acho que isso deveria sugerir alguma coisa.

 

Ipse dixit.