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Democracia Directa: um sistema possível?

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Num podcast anterior, Os Cinco Erros da Democracia, vimos quais as falhas do actual sistema democrático na óptica dum diário económico, o italiano Il Sole 24 Ore. Fui espreitar outras publicações, como The Economist, e também aí fala-se de “crise da Democracia”.

Saltitando pela internet, encontrei depois um artigo do Huffington Post acerca da Democracia Directa, algo em que estou particularmente interessado. Vou citar os trechos mais significativos.

O periódico começa com uma observação:

A verdade é que não existe uma versão da democracia directa que, além da instituição do referendo de hoje, seja perfeita. O povo soberano tem o direito e o dever de ser representado. Tudo o resto não é democrático.

Portanto: Democracia não é a liberdade de poder exprimir a nossa vontade com o voto, Democracia é o direito de sermos representados. Interessante. Mas vamos em frente.

Antes de tudo, é um problema do funcionamento da própria democracia. Na sua versão “dura”, a democracia directa substituiria completamente aquela representativa, ou seja, o Parlamento dos representantes eleitos pelo povo. A abolição do Parlamento pode ser fonte de algum prazer, mas o facto é que uma solução tão extrema exigiria um fortalecimento qualitativo e quantitativo paralelo da burocracia ou de uma “casta” (seja dito num sentido não depreciativo) envolvida na implementação da vontade popular.

O que não é verdade de todo. Um dos grandes problemas das modernas Democracias é mesmo este: o excesso de burocracia. Não seria preciso criar burocracia nenhuma, os funcionários estatais existem já, e alguns são muito qualificados. No máximo podemos falar de reorganização da burocracia mas não de criação de mais burocracia.

A versão “soft”, por outro lado, não contempla a abolição da mediação e da representação política. A classe política sobreviveria, mas muito reduzida nas suas funções e provavelmente também nas suas dimensões. Basicamente, esta deveria obedecer ao que as pessoas estabelecem de tempos em tempos com o voto, online ou no papel.

De facto, a sua autonomia única se materializaria na escolha de como implementar a vontade popular. […] No entanto, há também uma diferença que a maioria das pessoas subestima: o Parlamento deixado em pé seria um fantoche, pois não seria mais possível, nem faria sentido, identificar uma linha política, ainda que não vinculativa. Não faria sentido ter uma maioria e uma oposição, talvez nem mesmo um governo, porque todas as principais decisões políticas tipicamente pertencentes a uma maioria parlamentar e a um governo seriam substituídas pela consulta popular.

O horror, meus senhores, o horror. Uma classe política que deveria obedecer aos cidadãos. Conseguem imaginar algo mais perverso? Pior do que Sodoma e Gomorra.

Esta imagem do Parlamento como fantoche nas mãos dos cidadãos ditadores é hilariante. O Huffington Post substitui o termo “instrumento” com aquele de fantoche para exasperar o discurso acerca da Democracia. Mas, na verdade, o Parlamento deve ser o instrumento, ou “fantoche”, dos cidadãos, deve respeitar e seguir sempre as decisões populares. Caso contrário, o Parlamento ganharia autonomia ao ponto de ficar desligado das votações. Os programas apresentados durante as campanhas eleitorais não são um “acessório”, são contractos que os partidos propõem aos cidadãos. E, uma vez aprovados, deveriam ser respeitados, sempre. Pelo que, o Parlamento deveria ser, não apenas em teoria, o instrumento nas mãos dos cidadãos e não naquelas da classe política.

Conclui o sábio Huffington Post:

A verdade é que não há versão da democracia directa que funcione.

“Ámen” podemos acrescentar.

Mas o Huffingotn Post não é o único que levanta dúvidas. As objecções mais frequentes são de que não existe a tecnologia para implementar a Democracia Directa; a visão segundo a qual a Democracia Directa pode funcionar apenas em realidades muito pequenas; ou ainda, a ideia de que os cidadãos não têm a preparação suficiente para tomar decisões complexas, o que levaria a uma situação de caos.

Esta última objecção é defendida também por aqueles que gostam de definir-se como “democráticos” mas que, na verdade, não acham os cidadãos suficientemente inteligentes e preparados para tomar decisões complexas. Esta ideia não é nada mais de que a teoria apresentada nos últimos meses segundo a qual nem todos deveriam votar, porque há cidadãos “ignorantes”, pelo que os eleitores deveriam superar um exame antes de poder exercer os seus direitos democráticos.

Pessoal, temos que ser claros: a palavra Democracia deriva do grego antigo, δημοκρατία (dēmokratía ou “governo do povo”), termo criado a partir de δῆμος (demos ou “povo”) e κράτος (kratos ou “poder”). Ou reconhecemos ao povo, todo o povo, a capacidade de exprimir a sua opinião, ou não podemos ser definidos como “democráticos”. Qualquer outra forma de voto que elimine camadas de cidadãos do processo eleitoral não pode ser definida como “Democracia”, simplesmente é outra coisa.

Agora, todos estes discurso, a começar pelo artigo do Huffington Post, indicam o quê? Indicam claramente que qualquer País onde funcione a Democracia Directa deve ser uma tragédia, um caos no meio do qual é impossível tomar qualquer decisão, dominado pela casta burocrática. Não é difícil imaginar também os níveis de sofrimento do povo, com pobreza generalizada, um economia em pedaços, desemprego astronómico, até violência nas ruas.

É este o caso da Suíça, único País do mundo que aplica a Democracia Directa. Sendo natural de Genova, conheço bem a Suíça que fica a um par de horas de carro da minha cidade. Passei algumas férias na Suíça ou simples fins de semanas e tenho também parentes que residem em Italia e atravessam diariamente a fronteira para ir a trabalhar na Confederação Helvética. E posso confirmar: a Suíça é um horror, há cadáveres nas ruas, crianças que choram por terem perdidos os País por causa da fome, quando um etíope visita a Suíça chora e deixa uns trocos nas caixas da esmola que podem ser encontradas em cada esquina. Ou talvez não.

Já oiço as dúvidas: Mas a Suíça é um País pequenino, aí é simples fazer Democracia Directa”. Lembro que a Suíça tem 8.5 milhões de habitantes, pelo que não ficamos tão longe dos 10 milhões de Portugal. Pelo que, retomo um velho artigo, publicado em 2012, acerca da Democracia Directa.

O referendo, instituído desde 1848, é um meio utilizado com uma espantosa frequência.

Quando possível, todos os referendos e as restantes consultações eleitorais são reunidas num único dia, pelo que na Suíça vota-se quatro vezes por ano (mas podem ser mais em caso de necessidade).

Qualquer cidadão pode recolher 50.000 assinaturas (tempo limite: 100 dias), pedir um referendo (artigo 141 da Constituição) onde conta a maioria simples.
Mais: 100.000 cidadãos podem pedir a revisão total ou parcial da Constituição (artt. 138 e 139).

Outras medidas são obrigatoriamente submetidas à aprovação popular (art. 140).

Ehhh..mas quem sabe qual o custo…

O custo é reduzido, é apenas uma questão de organização. Claro, num País como Portugal, onde cada votação é uma ocasião para encher os partidos com fundos públicos, a despesa é astronómica. Mas os Suíços, que não gostam de deitar o dinheiro fora da janela, actuam de forma diferente: o voto pode ser expresso de forma tradicional, nas urnas, via correio, via internet ou via sms.

Mais: o Parlamento suíço não é formado por políticos de profissão. As Câmaras Federais costumam reunir-se quatro vezes por ano, ao longo de três semanas: isso permite que os políticos trabalhem entre uma sessão e a outra, em vez de parasitar. A ideia de base é que com parlamentares mais próximos da realidade, seja possível ter também uma política mais realística.

Em cada aldeia, vila ou cidade há um Parlamento, onde todos os cidadãos votam e podem apresentar propostas. Apenas nas cidades maiores existem Parlamentos eleitos. Nestas reuniões dos cidadãos são votados todos os aspectos da vida pública, desde a utilização do espaço público até os financiamentos.

O orçamento da administração pública é decidido pelas Câmaras Federais que, em caso de subida das taxas ou impostos, tem que pedir autorização aos cidadãos com um referendo.

A democracia directa existe já e tem um nome: Suíça.
Funciona? Ou será que a Suíça é uma País de pobres desgraçados que vivem no caos e na miséria?

Decida o Leitor:

  • Desde 1515 a Suíça não participa em guerras
  • Desemprego 3,9%
  • Inflação +0,7%
  • O rendimento pró-capita na Suíça é de 63.536 Dólares/ano. Maior do que nos Estados Unidos, Dinamarca, Holanda, Emirados Árabes…
  • Segundo uma investigação do The Economist, entre as primeiras 10 cidades onde melhor é a qualidade de vida, duas (Genebra e Zurique) são suíças. Segundo a investigação Mercer, as cidades são três (Genebra, Zurique e Berna).
  • Crime particularmente baixo: a Suíça encontra-se nos primeiros dez lugares da classificação dos Países menos violentos do planeta.
  • E quanto às medidas impopulares: a proposta dos sindicados para aumentar os dias de férias (de quatro para seis semanas/ano) foi chumbada no passado mês de Março com 66,5 dos votos contrários. Era a terceira vez que a proposta era apresentada e, tal como em 1985 e em 2002, não passou o referendo.

Esta é a democracia directa, sem representantes parasitas.

Além disso é preciso acrescentar o seguinte: os resultados de um referendo federal não implicam a obediência a uma lei referendada por um cantão que tenha votado contra. Por exemplo se um cantão votar contra uma lei e em todos os outros cantões fora aceite, essa lei não entra no cantão que tenha votado efectivamente contra. Pelo que, esta forma de Democracia Directa limita um dos problemas da Democracia, a assim chamada “ditadura da maioria”, na qual todos têm que obedecer às decisões da maioria, mesmo que não estejam de acordo.

Pessoal, a Democracia representativa é apenas uma das formas democráticas possíveis, não a única e nem a mais eficaz. A Democracia representativa é fraca, é um alvo fácil para quem deseje implementar um regime oligárquico, sobretudo numa altura como esta, onde a Democracia representativa deve conviver com um sistema económico particularmente agressivo.

Pessoalmente sinto-me cada vez mais distante das ideias democráticas, cada vez mais vejo a Democracia como “ditadura da maioria”, acho que a solução deve ser algo que tenha em conta alguns princípios da Anarquia, um sistema político este acerca do qual a ignorância é soberana: é suficiente pensar que o termo de “anarquia” é hoje utilizado como sinónimo de “caos”. Curioso, porque “caos” é também a forma como o Huffington Post define a Democracia Directa, pelo que parece que qualquer sistema político diferente da actual Democracia Representativa tem necessariamente que acabar no caso total.

Seja como for: por enquanto estamos a viver em regimes democráticos onde as votações são a entrega dum cheque em branco ao partido político que ganha. Porque sejamos honestos: se o partido vencedor não respeita os pactos, hoje o que podemos fazer? Não vota-lo nas eleições seguintes? Sim, mas entretanto teremos que esperar anos. Mas a coisa pior, aos meus olhos, é que esta Democracia representativa nem é capaz de assegurar o pluralismo das ideias. Hoje, na maioria dos Parlamentos, há apenas partidos que defendem o actual sistema de mercado “livre” no âmbito da Democracia Representativa.

Pergunta: que raio pluralidade é esta?

Para acabar: eis um vídeo dum cara (à brasileira!) que diz coisas interessantis. Não concordo com muitos pontos de vista, no caso da Democracia Direta diz coisas contrárias ao que eu digo, mas o cara raciocina, né?, então vamos ouvindo e vendo e reparem que ele tem outros mídias que a galera pode seguí no canau Youtubi dele (Ideias Radicais).

 

Ipse dixit.

Fontes: Huffington Post, Informação Incorrecta: Os Cinco Erros da Democracia, Da democracia representativa e da alternativa

Múicas: Burt’s Requiem by Alexander Nakarada, https://www.serpentsoundstudios.com, Music promoted by https://www.free-stock-music.com, Attribution 4.0 International (CC BY 4.0), https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/