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Pobres, os favoritos do Senhor

Para a Igreja, a opção pelos pobres é uma categoria teológica antes que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus concede-lhes “a sua primeira misericórdia”.

Papa Francisco, Evangelii Gaudium, Cap. IV

 

Papa Francisco, para muitos cristãos fundamentalistas “o Anticristo”, apoiou e indicou os pobres como uma categoria teológica. Nem mesmo no Novo Testamento alguém imaginou um conceito mais absurdo, abstracto e desumano do que isso. Quando Cristo derrubou as bancas dos mercantes no Templo de Jerusalém, comportou-se como um político e não como um religioso: não esquecemos que, segundo os Evangelhos, Ele veio de uma linhagem real, a casa de David, e não-sacerdotal (a linhagem levita). Por isso: completamente secular.

Os pobres uma “categoria teológica” antes que “política”? Esta é uma afirmação grave, cheia de significados.

“Pobre” deriva do latim pauper (que espelha-se no “paupérrimo” português), termo com sentido negativo da condição humana, uma condição material e consequentemente espiritual. “Espiritual” porque, numa condição humana tão negativa, é impossível desenvolver uma consciência que não seja uma forma de reparação (a religião qual “ópio do povos”), apenas um sistema de rituais e criadora de hierarquias. É aqui que podemos encontrar o sucesso das igrejas evangélicas como a IURD: na ignorância filha directa da pobreza.

Quem vive numa condição economicamente desfavorecida, tem como primária preocupação a sobrevivência, o afastamento do “Mal”, e terá mais propensão para aceitar os atalhos oferecidos (aparentemente de forma gratuita) por quem de espiritual nada tem mas deseja explorar o azar do próximo. Tornando esta desgraça uma condição teológica, Papa Francisco eleva a pobreza para uma dimensão absurda, porque a verdade é que a miséria não eleva nem um mosquito.

Mas o que deve interessar aqui é a pobreza como condição teológica “antes que cultural, sociológica, política ou filosófica”.

Também Marx utilizava o termo pauper na frase Pauper ante festam, traduzida e entendida como “pobre antes da festa (orgiástica e canibal do capital). Segundo ele, antes de qualquer contracto há um detentor do dinheiro e um possuidor do trabalho: o dono do trabalho é uma pessoa pobre. Mas ainda antes de Marx, Engels, no seu A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845) critica fortemente a anti-ética da economia política e, mais no geral, da  visão do mercado dos pensadores clássicos.

A economia não é sobre a ética e acima de tudo não menciona o pobre como um erro do sistema, o erro mais grave, aquele que o mercado “auto-regulador” deveria ser capaz de evitar. O pauper nem aparece como um acidente ao longo do caminho do crescimento infinito. Isso porque a economia das cátedras universitárias é destinada àqueles que têm dinheiro e não àqueles que não têm dinheiro.
Na economia, o pobre não passa duma mercadoria sem valor, inútil para os objectivos.

Em Marx, o ponto de partida da sua crítica monumental à economia política não é a luta de classe mas a pobreza e o seu contrário, a riqueza. Na sua meticulosa vivissecção analítica do ensaio de referência dos economistas clássicos da época (A riqueza das Nações de Adam Smith), Marx demonstra que a pobreza não é uma condição natural mas histórica, enquanto a riqueza não é um poder divino e superior, o único capaz de dar direcção e significado à história humana.

Pelo contrário, a Igreja (mas no fundo todas as principais denominações religiosas) assume este princípio “natural” da pobreza que é muito parecido a uma inferioridade de tipo racista: porque a primeira e mais óbvia forma implícita de racismo não é aquela entre brancos e pretos mas precisamente aquela universal que divide os pobres dos ricos.

Para convencer os pobres de que são uma algo natural e não histórico (os pobres não fazem a História), devem ser transformados numa categoria teológica, coisa que induz esta massa de azarados a pensar na inevitabilidade da sua condição de escravos. Prémio de consolação: eles são a categoria favorecida do Senhor.

Pergunta: os pobres são filhos das máquinas? É a introdução da mecanização que cria a pobreza? Não. As máquinas podem eventualmente aumentar o número total de pobres, mas a verdade nua e crua é que o indigente o produto dum indigente. Máquinas biológicas que produzem outras máquinas biológicas, um produto espontâneo que a genética replica e que o dono do dinheiro pode recolher e utilizar como e nas quantidades que mais satisfazem a sua sede de lucro.

Pelo contrário, o dono do dinheiro sente-se uma espécie de demiurgo, um criador, e é por isso que tenderá o máximo possível a preservar este seu estado, a vincular-se apenas a outros detentores de dinheiro, como se pertencesse a um fórum quase exobiológico, sobrenatural e místico. O exemplo disso está ao nosso redor: enquanto a massa dos pobres luta para conseguir juntar algo para comer, a elite opina acerca da programação do futuro da Humanidade. Mas o facto de ter sido um bom criador de software, no caso de Bill Gates, dá automaticamente a capacidade de escolher o futuro do próximo?

Se o Papa Francisco afirma que os pobres são uma categoria teológica, é porque há uma classe de ricos e super-ricos, de seres deificados, que acreditam ser superiores: tornar abstracto o natural inimigo deles, o pobre, significa ao mesmo tempo criar um recinto e aprofundar as distâncias. Quanto maior for a distância que essas pessoas ricas criam com os indigentes, tanto mais irreal e inacessível será a condição deles. Portanto, a distância física e mental dos ricos em relação aos pobres deve ser assegurada por uma clara separação espacial e temporal, garantida pela tecnologia, pela segurança militar e até pelos princípios religiosos.

E nesta altura surge a óbvia pergunta: por qual razão os pobres não atacam os ricos? Onde está a luta de classe? A luta de classe fica algures, numa prateleira empoeirada, porque a riqueza é o supremo desejo. Como disse, e bem, o economista William Jevons quatro anos após o lançamento de O Capital: “Não é o trabalho a origem do valor das mercadorias, mas é o desejo do comprador”. Com isso, Jevons inverteu a ideia de Marx, mas tinha plenamente razão: trabalho e produto são nada sem que haja um consumidor.

Hoje a produção artificial e ilimitada faz que o pobre (o escravo/consumidor) não deseje eliminar os ricos mas, pelo contrário, que deseje tornar-se parte desta elite: os construtores de símbolos e do consenso comercial, tanto político quanto religioso, transformaram o antigo ódio contra a aristocracia num desejo. Aos pobres é ensinado que a única maneira de não ser um Zé Ninguém reside na eternidade da juventude, na beleza e na imortalidade, algo que só a popularidade (contra o anonimato da vida “normal”) permite.

Aconteceu algo: se uma vez o ser intocável era sinónimo de repulsa e rejeição (os paria indianos), hoje é uma qualidade positiva daqueles “superiores” em termos de poder. O depreciativo tornou-se dom. É por isso que o pobre não quer eliminar a elite: quer juntar-se à ela, quer ter uma possibilidade para entrar no Olimpo.

Solução? Aparentemente simples: uma mudança de paradigma. Fácil, não é? Afinal trata-se de subverter a lógica que está na base da nossa actual sociedade. Um trabalho que pode durar gerações ou até poucos meses. Muitas gerações caso esteja disponível uma classe revolucionária (que agora não há) e a vontade de mudar (idem). Poucos meses no caso dum conflito traumático de proporções globais, que atire forçadamente back to basic, de volta ao básico. Em qualquer caso: a recuperação da socialização física e a destruição da virtualidade dos órgãos de comunicação: aquela mesma virtualidade que espalha o sonambulismo, a mesma que a maioria recusa ver, a mesma que utiliza uma igreja bilionária para afirmar que os pobres são um modelo teológico.

Papa Francisco, ainda no Evangelii Gaudium, Cap. IV:

É por isso que desejo uma igreja pobre para os pobres. Eles têm muito para nos ensinar. Além de participar no sensus fidei, com o sofrimento deles conhecem o sofrimento de Cristo. Todos nós devemos ser evangelizados por eles.

E quando uma frase desta é dita por uma pessoa que chefia uma instituição com cerca de 700 mil complexos imobiliários espalhados pelo mundo, por um valor total de 2 mil biliões de Euros, bom, então deve ser mesmo verdade.

 

Ipse dixit.