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O que pensa a elite (a fuga dos psicopatas)

Douglas Rushkoff, definido pelo MIT como “um dos dez intelectuais mais influentes”, foi alugado (pela módica quantia de metade do seu salário anual como professor) para dar uma lição sobre o futuro da tecnologia.

Enquanto estava a preparar-se para subir ao palco, onde já se imaginava a falar com uma plateia de banqueiros e homens de negócios que, pensava, quisessem uma actualização sobre a tecnologia para os investimentos deles. No final, Rushkoff encontrou uma sala verde com um punhado de pessoas, cuja única preocupação parecia ser “quando vai estourar a revolução popular que irá forçá-los a esconder-se e defender-se” e como seria possível “sair imunes disso”.

O tom das perguntas foi “Qual moeda podemos usar para garantir que a nossa segurança privada não nos traia” ou ainda “Talvez exista um sistema para controlar a comida (já que a moeda valerá zero) para manter-se seguro”. Porque no final eles sabem que este sistema não é sustentável, que mais cedo ou mais tarde irá implodir com um barulho que ficará na memória ao longo de século. Todas as sociedades têm no Dna os genes do seu próprio fim: mas a nossa está a ser esticada além dos limites fisiológicos. Acção = reacção: ao ruir, o estrondo será memorável.

Mas voltemos ao membros da elite, que, justamente, estão preocupados. Eis as principais dúvidas:

Evento? Qual evento?

O evento

“O” evento. Esse é o eufemismo com o qual a catástrofe é indicada. Seja o colapso ambiental, uma agitação social, uma explosão nuclear o um vírus que não pode ser travado. Ninguém sabe ao certo qual destes será, portanto é “o evento”. O fim das nossas certezas, o inevitável ponto de viragem.

Os membros da elite sabem que os guardas armados serão necessários para proteger as suas casas das multidões enfurecidas. Mas como podem ser pagos os guardas quando o dinheiro deixa de ter valor? O que poderia impedir que os guardas escolhessem o seu próprio patrão? Na sala, os bilionários consideravam o uso de fechaduras especiais para proteger os estoques de alimentos. Ou coleiras disciplinares para os guardas em troca do refugio seguro. Melhor ainda: robôs como guardas e trabalhadores. Sempre que a tecnologia seja desenvolvida a tempo.

Como explica Rushkoff, aqueles senhores estavam sinceramente interessados ​​no futuro da tecnologia. Por exemplo: ​​no projecto de Elon Musk para colonizar Marte, naquele de Peter Thiel que está a reverter o processo de envelhecimento, ou de Sam Altman (outro inventor e programador) e Ray Kurzweil que planeiam colocar as suas mentes em supercomputadores. Interesse na tecnologia: não para tornar este mundo melhor, só para isolar-se, transcender completamente a condição humana e afastar-se assim de um perigo real e presente. Seja a mudança climática, a subida do nível do mar, as migrações em massa, as pandemias globais, o esgotamento de recursos. Para eles, o futuro da tecnologia interessa só numa vertente: a fuga. Como a tecnologia pode ajudar a fugir do mundo que eles criaram.

Transumanismo para poucos

Depois há o impulso para uma utopia pós-humana. Não é a migração total da humanidade para um novo estado; é a transcendência de tudo o que é humano: o corpo, a interdependência, a compaixão, a vulnerabilidade e a complexidade. Abandonar o nosso corpo, com todas as suas fraquezas, transferir-se para o digital. Não é uma novidade absoluta, tinha sido prevista pelos filósofos da tecnologia há anos: a visão transumanista reduz facilmente toda a realidade aos dados, concluindo que os seres humanos nada mais são que objectos de processamento de informações. A redução da evolução humana até videojogo, algo que alguém ganha ao fugir do nosso mundo doente com alguns amigos. Serão Musk, Bezos, Thiel, Zuckerberg?

A passagem do real para o digital é importante porque de facto liberta todos das implicações morais das nossas ações. É como se o reino do digital fosse visto como algo onde impera a lógica, onde as emoções não podem entrar. Então desenvolvimento da tecnologia torna-se menos esforço para a prosperidade geral e mais investimento para a sobrevivência pessoal. Este aspecto não pode ser subestimado porque tem profundas implicações para o futuro. Hoje muitos (ainda) encarariam como uma monstruosidade a ideia de implementar próteses nas crianças para estas poderem aprender e falar várias línguas estrangeiras ao mesmo tempo. Mas atenção: é “monstruosidade” porque ligada a considerações éticas e morais. Uma vez livres destas considerações, qual o limite? Então torna-se normal perguntar se é correcto que os veículos autónomos deem prioridade às vidas dos piões em detrimento dos passageiros; se as primeiras colónias em Marte deveriam ser administradas como democracias? Se mudar o DNA pode prejudicar a nossa identidade. Se os robôs devem ter direitos.

Com estes falsos problemas ético-tecnológicos, os bilionários “deslocam” os problemas para fora da vista deles: e as consequências mais devastadoras do capitalismo digital caem sobre o meio ambiente e os pobres do mundo todo. A fabricação de alguns de nossos computadores e smartphones ainda usa o trabalho de escravos; a extração de metais e terras raras para a nossa tecnologia altamente digital destroem os habitats naturais e humanos, tornando-os depósitos de lixo tóxico. Mas isso não pode interessar quem já pensa além disso, como transferir a sua consciência para um computador: estes são problemas para os que ficam atrás, isso é: o resto do mundo, nós.

Jogo de equipa

Tudo isso está errado? Sim, claro que está. Mas não estamos a lidar com pessoas normais. Estamos a tratar de indivíduos muito particulares, verdadeiros disfuncionais que perderam o contacto com a realidade. Pessoas segundo as quais o futuro humano envolve “naturalmente” a aceitação de que a tecnologia em si será a nova evolução. Ao sair da condição humana, deixam seus pecados na realidade física, não têm mais que prestar contas deles. É uma fuga radical: como membros de um culto gnóstico, desejam entrar na próxima fase transcendente para fugir dum mundo que cai em pedaços mas sobretudo para deixar o corpo atrás, e com ele os problemas e os pecados.

Uma visão de poucos? Nem tanto. Já admitimos que a máquina não erra, que o ponto fraco reside no homem. Admitimos que a manipulação genética pode tornar todos “melhores”, menos doentes, menos idosos, mais inteligentes. A condição “normal” do ser humano é o verdadeiro bug. Mas há um problema. Porque há sempre um problema.

O problema dos bilionários é ter de admitir que são incapazes de influenciar o futuro. Então, simplesmente, aceitam o mais sombrio de todos os cenários: fazem planos para fugir, para enfiar todo o dinheiro e tecnologia num foguete para Marte.

E nós? Os que não têm biliões? Felizmente, temos opções melhores de que negar a nossa humanidade. Por exemplo, podemos nos lembrar do facto de que o homem verdadeiramente evoluído não faz tudo sozinho. Somos animais sociais: ser humano não é uma fuga individual. E, como animais sociais, temos que jogar em equipa.

No entanto, a partir de hoje temos mais uma esperança: que Elon Musk consiga criar o tal foguete e que possa levar consigo todos estes bilionários psicopatas. Desde já, se for possível: não é preciso esperar “o evento”. Ofereço-me com o carro para acompanha-los até o ponto de partida. E só bilhetes de ida, s.f.f..

 

Ipse dixit.

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Fontes: Douglas Rushkoff via Medium, S. Spiekermannis – P. Hampsonis – Charles M. Essis – J. Hoffis – M. Coeckelberghis – G. Franck: The Ghost of Transhumanism &the Sentience of Existence (ficheiro Pdf, inglês), Evening Standard