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Como Wall Street criou o milagre chinês (história dum rato)

“Wanda” é o nome de um rato da Logitech, uma empresa multinacional com sedes na Califórnia e na Suíça, que vende 20 milhões de unidades de Wanda por ano. Falamos de rato para computador, não rato com quatro patinhas.

Wanda é fabricado num prédio em Shouzou, onde os trabalhadores recebem um salário de 80 Dólares por mês. Nas lojas, o preço de Wanda é de 40 Dólares. Destes, 14 vão para os fornecedores dos componentes: o chip interno vem de uma subsidiária da Motorola (grupo Lenovo, China) na Malásia, o sensor óptico da Agilent (Black Rock, The Vanguard Group, etc., EUA), os restantes de uma subsidiária americana da Cookson Electronics (Reino Unido) localizada em Yunnan (China).

Outros 15 Dólares vão direitinhos nos bolsos de distribuidores e varejistas. Para a Logitech (EUA e Suiça), que imprime a sua marca no rato, 8 Dólares. Os chineses ficam com 3 Dólares por cada rato: eles têm que pagar os 4 mil funcionários, transporte, despesas gerais.

Esta é a situação ideal para o Capitalismo global, cujos campeões estão listados em Wall Street: o material utilizado na fabricação do objecto é pago o mínimo possível, enquanto as margens mais gordas acabam nas actividades tangíveis e intangíveis, como design, royalties, logo, vendas, distribuição e marketing. O triunfo da globalização: para construir um estúpido rato são precisos componentes de empresas da Suíça, da China, da Malásia, dos Estados Unidos e do Reino Unido. Seria mais simples produzir tudo num só estabelecimento, sob licença? Claro que seria, mas assim não haveria a movimentação, que representa o valor adjunto (e poluente) do rato. E tudo isso no contexto da vasta utopia geral que domina os cérebros globalistas: deslocalizar a produção onde os salários são baixos, vender os produtos nos Países com salários altos e obter uma boa margem de lucro. Um paraíso.

Os salários altos começam a desaparecer? Não há crise: o poder de compra que o trabalhador perdeu no salário é oferecido pelos bancos que emprestam dinheiro. Ou seja: o trabalhador fica endividado. Maravilhoso.

Clinton e a WTO

É por isso que a China foi aceite na Organização Mundial do Comércio (WTO): Bill Clinton ouviu os especialistas de Wall Street e empurrou Pequim dentro da WTO. A China não reconhecia as patentes? Pouco mal. A China não abdicou das práticas comerciais injustas e das falsificações? Pouco mal. A China não aceitou a livre flutuação da moeda no mercado? Pouco mal. À China foi permitido operar nos mercados mundiais com a moeda nacional não conversível, ou seja, cujo valor é decretado pelo Estado: moeda fraca, custos de produção artificialmente baixos, salários miseráveis, mais exportações. Uma espécie de Terra Prometida para as multinacionais.

Daquele dia até 2011, de acordo com um estudo do MIT, os Estados Unidos perderam 985.000 postos de trabalho, ou seja 20% do total no sector industrial avançado: alegria de Wall Street, que sempre saudou todas as reduções de pessoal como prova da eficiência das empresas, da sua capacidade de reduzir os “custos”. Até que os EUA estão desindustrializados, a Europa está desindustrializada, amplas fatias do Terceiro Mundo (e não só) vivem uma nova colonização da qual ninguém fala porque falar mal da China não convém. E Pequim já não importa armas, não vende cópias mal feitas mas sim computadores, tablets e smartphones, baterias e ecrãs planos, sem esquecer os carros, que em breve serão elétricos. Os maiores concorrentes dos gigantes mundiais da web hoje têm os nomes de Baidu, Huawei, Alibaba, Xiaomi… E olho que não são lixo. Se o Leitor quiser um bom smartphone a um preço concorrencial, então espreite um Xiaomi, vai ficar surpreendido.

Wall Street enriquece

E Wall Street não previu este cenário? Mas claro que previu. O ponto é que não se importam.

As multinacionais americanas listadas em Wall Street, livrando-se da dependência da força de trabalho dos EUA, acumularam mais lucros do que nunca e ficaram mais poderosas e colossais. Os trabalhadores chineses com baixos salários ajudaram a elevar o valor e os lucros das grandes multinacionais em Wall Street. De facto, enquanto o Ocidente representa uma fatia cada vez menor do PIB global, as suas multinacionais globalizadas tornaram-se mais dominantes e os seus lucros incrivelmente altos. Por exemplo: um estudo de 2014 da International Studies Quarterly, que analisou as primeiras 2.000 empresas do mundo, mostrou que os americanos conseguiram 84% dos lucros do sector dos computadores (hardware e software), 89% no caso dos equipamentos de saúde, 53% no sector farmacêutico e biotecnológico. E nos serviços financeiros ainda pior (ou melhor, pontos de vista): os lucros de gigantes como Goldman Sachs aumentaram mesmo após o colapso da Wall Street em 2008, passando de 47% para ​​66% em 2013. Um bom 42% dos bilionários do mundo são americanos de cidadania e residência, apenas 4% são chineses.

Apesar de décadas de competição global e crescimento em outras partes do Mundo, como a Ásia, as multinacionais americanas continuam a dominar o Capitalismo global, um sucesso que as contas nacionais dos EUA não conseguiram acompanhar. Em suma, o País está em declínio no mercado global, mas as suas multinacionais triunfam e ganham peso (e dinheiro).

A teoria…

O interesse nacional não coincide em nada com o interesse das multinacionais: em todo o Ocidente, palavras como “Nação” e “Bilionários” não rimam.

Preocupação? Não, não é o caso. Há toda uma teoria económica que explica: está tudo bem, o futuro é risonho. Há uma óbvia conexão na China entre Estado e empresas do Partido, entre o Partido e os bancos estatais que fazem empréstimos a taxas preferenciais? A teoria tranquiliza: a exposição da China e a concorrência global obrigarão a reformar o seu sistema económico; o “mercado”, tal como ensinado nas universidades, conduz inevitavelmente ao pluralismo e dá origem à “democracia”. O liberalismo económico levará as massas chinesas a exigir a liberalização política e, finalmente, um sistema multipartidário competitivo; ao permitir às exportações chinesas, empurramos Pequim para o liberalismo, antes económico, depois político. Esta é a teoria.

…e a prática

Depois há os factos. A casta partidária chinesa segue outra ideologia. Doutro lado, tinha visto e estudado de perto o colapso do bloco soviético: notou os efeitos da repentina passagem da economia estatal para o “livre” mercado, de acordo com a “terapia de choque” recomendada pela Escola de Chicago. Consequências: ruína económica, pilhagem da riqueza do País, queda do regime do partido único. Então o governo chinês não tem nenhuma intenção de abrir mão do controle, muito menos do mercado. A nossa teoria não previu isso? Ohhh, pena.

A liderança de Pequim era confrontada com outro problema existencial: os Países vizinhos, como Japão, Taiwan ou Coreia do Sul, estavam a tornar-se ricos com a globalização, vendendo os seus produtos nos EUA, enquanto a China permanecia pobre e atrasada: portanto, vulnerável à coerção de estrangeiros, um retorno ao pesadelo do “século da humilhação”, da Guerra do Ópio.

A solução foi escolher a globalização protegendo-se do mercados. Possível? Possível. Foi assim que nasceu o Grande Firewall, um instrumento de vigilância e repressão em massa que também provou ser um instrumento eficaz de política industrial. Com uma prudente privatização, Pequim abriu-se cautelosamente às empresas estrangeiras que queriam re-localizar (ou seja, despedir trabalhadores ocidentais) produções de nível baixo. E depois as produções de nível médio. Finalmente, toda a produção, mesmo a mais avançada.

Em 2003, o Partido (com Hu Jin Tao) encerrou a era das privatizações; com Xi Jinping, o Partido regressou explicitamente ao centro da economia e garantiu a estabilidade; o seu controle é mais forte do que nunca com o aperfeiçoamento do sistema digitalizado de “crédito social”, que atribui a cada chinês uma pontuação de “lealdade” e “honestidade”, sem a qual nem se pode pegar um comboio ou um avião, viajar para o exterior.

Made in China 2025

Incrivelmente, Xi vai até Davos, defende a globalização e ataca Trump, acusando-o de “protecionismo”. Mais incrivelmente ainda, os presentes aplaudem.

Trump é contrário ao projecto da Estrada da Seda. Do ponto de vista dos Estados Unidos faz todo o sentido porque a Estrada exclui o continente americano. Pelo contrário, do ponto de vista europeu, a Estrada é o mais lógico dos futuros, é quase fisiológico.

Mas Trump é sobretudo contrário ao projecto Made in China 2025. E aqui não podemos não concordar com o Presidente: o partido chinês propõe conquistar a dominação mundial sobre uma série de tecnologias. Quais? Aeroespacial, robótica industrial, satélites, semicondutores, ferrovias de alta velocidade e… fornos para bolachas. Na prática os chineses dizem: porquê Pequim deveria comprar o avião Boeing quando é capaz de fazer o seu próprio Boeing? O que faz sentido. O que não faz sentido é transferir todas as propriedades intelectuais para as empresas chinesas (que depois significa “para o partido”), porque é disso que estamos a falar. Um só País na posse dos direitos para as tecnologias do presente e do futuro significa um só País que decide para todos. E para nós, que não vivemos nem nos Estados Unidos nem na China, significa passar dum Império para outro.

Mas podemos culpar os chineses? A única superpotência sobrevivente fez triunfar o último partido “comunista” (com muuuuuitas aspas, ver nota abaixo) sobrevivente. O liberalismo totalitário, o “livre mercado” a qualquer custa, vítima das suas contradições internas. Se Wall Street não tivesse exigido a China no âmbito do WTO, se as multinacionais não tivessem decidido o despedimento dos trabalhadores ocidentais, se o lucro não tivesse falado mais alto dos interesses nacionais, hoje não estaríamos aqui a falar destes perigos.

Se, se, se… a História não pode ser construída com os “se”. Mas teria havido a hipótese da China ser obrigada a mudar o rumo, isso sim. Da forma como as coisas foram conduzias, a China continuou o seu percurso sem sobressaltos. E Wall Street também. Mais uma prenda da elite “progressista”. Obrigado.

Nota final: a China é governada pelo Partido Comunista da China (中国共产党 , Zhōngguó Gòngchǎndǎng) desde 1949. Na verdade, de “comunista” a China de hoje não tem rigorosamente nada. Há um governo que escolheu atirar-se para o “livre mercado”, uma escolha que abrange não apenas o mercado exterior como também o interior; um governo que coloniza inteiros Países; um governo que favorece o enriquecimento da sua classe média enquanto mantém ordenados de fome para os trabalhadores dependentes; um governo que favorece e louva a globalização nos moldes capitalistas. Tudo em flagrante contradição com os ideais tanto comunistas quanto socialistas. Portanto: como “classificar” o actual regime político chinês? Não sei. A mim faz lembrar cada vez mais 1984 de Orwell…

 

Ipse dixit.