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Cesare Battisti confessa

Resumo dos episódios anteriores: Cesare Battisti é condenado à prisão perpétua na Itália por quatro homicídios. Foge para França donde passa para o México. Daí, em 2002, Battisti entra no Brasil com documentos falsos.

Preso no Rio de Janeiro em Março de 2007, recebe o status de refugiado político. Em Novembro de 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) considera ilegal o status de refugiado e permite a extradição, mas declara que a Constituição Brasileira confere ao Presidente poderes para negar a extradição. Em Dezembro de 2010, no último dia efectivo de Luiz Inácio Lula da Silva como Presidente, a decisão: nada de extradição.

Em 2018 cai o governo petista e em Dezembro do mesmo ano o Presidente Michel Temer assina o decreto de extradição de Battisti. Capturado em Janeiro, na Bolívia, Battisti é extraditado directamente para a Itália, e enviado para uma prisão de segurança máxima na Sardenha. Em 25 de Março de 2019 confessa: sim, matou quatro pessoas, aquelas pelas quais tinha sido condenado pela Justiça italiana. Quatro mortos, outra vítima condenada à cadeira de rodas para o resto da sua vida, uma série de assaltos,agressões, raptos, sexo com menores (raparigas de 13 anos), instigação à violência: este o curriculum de Battisti. Mas para a Esquerda ideologicamente refém do mito revolucionário, tudo isso passa em segundo plano. Battisti é um camarada, um de nós, deve ser defendido.

Então foi contado que Battisti era caçado por uma inquisição obtusa e opressiva, que o Estado condenara-o com escassas evidências. Que os direitos da defesa tinham sido atropelados. Que o Estado italiano havia embarcado no caminho da imitação do Chile de Pinochet. Que Battisti não podia ser um assassino. Que entregar Battisti às autoridades italianas significava alimentar com um inocente um Estado sanguinário. Que mobilização e apelo dos intelectuais eram um dever para defender os direitos humanos violados na Itália. Nada disso era verdade.

A frente intelectual

Pessoas como Gabriel García Márquez, Bernard-Henri Lévy, Daniel Pennac, Tahar Ben Jelloun, Valerio Evangelisti e alguns exponentes de Amnesty International rogavam a inocência de Battisti.

A seguir uns trechos dum recente artigo de Brasil de Fato, site de notícias próximo da Esquerda brasileira:

[…] Diante de tudo isso, é importante que os brasileiros realmente comprometidos com a democracia e com os valores humanistas básicos tomem posição em solidariedade a Cesare Battisti neste momento crucial em que se colocam em jogo, ao mesmo tempo, seu destino pessoal e nosso destino coletivo como país (supostamente) civilizado.

Apresento aqui, de forma resumida, cinco razões em favor de que Cesare Battisti possa permanecer no Brasil com sua família, tranquilamente, como lhe é de direito:

1) O mais importante: Battisti é inocente. O episódio  da sua condenação, na Itália, é um escândalo comparável à farsa judicial armada por Sergio Moro contra o ex-presidente Lula. O italiano foi preso, no final dos anos 1970, por sua participação num grupo de extrema-esquerda, e condenado a uma pena de treze anos por vários delitos políticos, como subversão. Fugiu da cadeia poucos meses depois e reapareceu na França, onde obteve asilo político. Só então, as autoridades judiciais italianas, como uma espécie de vendetta, decidiram acusá-lo pelo assassinato de quatro homens (três deles, fascistas envolvidos em diversos tipos de violência). Sem qualquer prova, somente com base em delações premiadas de ex-companheiros que dessa forma conseguiram aliviar suas penas, Battisti foi condenado à prisão perpétua. […]

2) Vamos falar claro: Battisti está sendo perseguido porque é um homem de esquerda. O caso é de alto interesse à ascendente extrema-direita italiana, doidinha para faturar politicamente com o show da extradição. Não por acaso, o político italiano que já está com as malas prontas para viajar ao Brasil e levar o prisioneiro à Itália, algemado, é o vice-primeiro-ministro Matteo Salvini, um notório fascista conhecido pelo seu ódio aos imigrantes. No Brasil, a polêmica em torno do assunto acompanha, em linhas gerais, a clivagem ideológica existente no país. A extradição de Battisti, desde o início, é uma bandeira dos reacionários dos mais diversos matizes, enquanto a esquerda, em geral, tomou partido em sua defesa (com a triste exceção da revista Carta Capital, que optou por engrossar o coro dos linchadores do escritor). Entregar Battisti à Itália favorece a campanha para desmoralizar a gestão presidencial de Lula e significa, na prática, o sinal de largada para um grande pogrom contra os partidos de esquerda, os movimentos sociais e todos aqueles que Bolsonaro chama de “os vermelhos”.

3) Ao pressionar o Brasil, por diferentes meios e até os dias de hoje, o governo da Itália põe em jogo a soberania política do nosso país. Chegou ao ponto de ameaçar com um boicote à Copa do Mundo de 2014, depois voltou atrás e, no final das contas, isso não fez a menor diferença. Na longa novela do Caso Battisti, não faltou nem mesmo um deputado italiano, Ettore Pirovano, que, em 2009, ao criticar o ministro da Justiça Tarso Genro por sua recusa em conceder a extradição, recorreu ao infame preconceito existente na Europa contra as mulheres brasileiras. “O Brasil é mais conhecido por suas dançarinas do que por seus juristas”, ironizou o parlamentar, do partido neofascista Liga do Norte. Entende-se, aí, o que esse elemento quis dizer por dançarinas.

4) A extradição de Battisti é uma completa aberração do ponto de vista jurídico. Como bem lembrou o jornalista Celso Lungaretti no seu blog Náufrago da Utopia, “a sentença que a Itália quer fazer valer não só prescreveu em 2013 (trocando em miúdos: também está extinta), como se trata de uma condenação à prisão perpétua, ao passo que as leis brasileiras proíbem a extradição de quem vá cumprir no seu país de origem uma pena superior a 30 anos de reclusão”.

5) Finalmente, a extradição de Cesare Battisti representa uma grave violação ao princípio da segurança jurídica. A decisão de Lula, que negou o pedido de extradição em 2010, foi confirmada no ano seguinte pelo STF. Sim, depois de tudo, o decreto de Lula ainda foi submetido ao STF, que o aprovou no dia 11 de junho de 2011, por seis votos contra três. Os seis juízes que votaram a favor da decisão de Lula e pela rejeição das queixas da Itália foram Fux (impressionante!), Lewandowski, Marco Aurélio, Carmen Lúcia, Ayres Britto e Joaquim Barbosa. Em suma: assunto encerrado, julgado em todas as instâncias possíveis muito além do que seria imaginável. Desde então, Battisti já não é mais um refugiado político, e sim um imigrante com residência permanente, condição que mantém até o presente momento. Aceitar sua prisão e entrega a um governo estrangeiro significa admitir que as garantias jurídicas já não valem mais nada no Brasil, que qualquer cidadão ou cidadã pode a qualquer momento ser vítima do arbítrio do Estado, exatamente como ocorreu durante os 21 anos da ditadura militar – os tempos da tirania, que os fascistas estão tentando implantar novamente, mas não conseguirão.

Quando a ideologia ultrapassa a razão, um artigo como este torna-se a normalidade: qualquer dúvida é suprimida, quem pensa como nós não pode errar, é preciso fazer quadrado, defender os princípios contra os ataques de quem erra. E quem erra são todos os outros (todos fascistas), nós nunca.

O que dirão agora estes senhores? Reconhecerão o facto de terem defendido um assassino, alguém que matou Antonio Santoro, guarda prisional? Que matou Lino Sabbadin, um talhante que tinha-se oposto ao assalto da própria loja? Que matou Pierluigi Torregiani, dono duma loja, e feriu o filho Alberto, desde então paralisado? Que matou Andrea Campagna, agente do anti-terrorismo? Que participou em vários assaltos a bancos e lojas (“expropriações proletárias” para seguir o dicionário da Esquerda)? Haverá uma admissão de culpa por parte destes defensores dum assassino?

Os depositários da verdade absoluta

Nem por isso. Aliás, já podemos antecipar qual será a posição assumida por estas almas bonitas nos próximos tempos: Battisti confessou por causa dos brutais métodos utilizados nas prisões italianas, onde guardas corruptas actuam sob a ordem do governo fascista que quer vendetta; uma confissão provavelmente obtida com tortura, ameaças, espancamento, em total desrespeito das mais elementares normas jurídicas e humanitárias (normas que, é bom lembrar, são respeitadas apenas nas prisões durante o governo petista). Se calhar Battisti nem confessou: está a ser vítima dum esquema internacional onde o imperialismo americano quer reduzir a soberania brasileira com a cumplicidade dos fascistas italianos e do Presidente Bolsonaro.

Masturbações ideológicas que não mudam os factos: Cesare Battisti é o cordeiro sacrifical para uma Esquerda que à falta de conhecimento da realidade italiana (ou acham que o “você não mora aqui” vale só para mim?) soma a falta de argumentos e de vergonha. Cesare Battisti é um assassino que o PT encobriu e defendeu ao longo de anos.

Quando uma ideologia, seja ela qual for, toma conta do nosso cérebro e controla o fluxo dos pensamentos, consegue transfigurar até as mais simples relações causa-efeito; a construção de supraestruturas deterministas obrigam a vítima a interpretar a realidade segundo uma óptica distorcida que se auto-alimenta, criando um substrato mitológico que, paradoxalmente, encontra nos seus próprios erros a melhor justificação da sua existência e a prova da sua infalível justeza.

Antídotos contra as ideologias? Só um: cultivar a dúvida, em particular perante os depositários da verdade absoluta, aqueles que nunca têm incertezas, que “sabem como estão as coisas” e que espalham os seus dogmas para dobrar as mentes. A seguir um par de exemplos.

Links: vídeo 1, vídeo 2

Agora Battisti confessa. Se tivesse havido a coragem de assumir as suas responsabilidades, sem esconder-se atrás do intelectualismo e das amizades esquerdistas, poderia contar com o respeito devido a quem decide lutar assumindo as consequências. Mas assim… e paciência se com este artigo o blog irá perder mais uns Leitores. Quem não está pronto para assumir os factos é bom que se mude para outros pastos, o autor agradece.

 

Ipse dixit.

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Fontes: Brasil de Fato