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A lista de Orwell

Os media alternativos adoram Orwell. É um ídolo e o seu romance, 1984, um ícone. Mas quantos deram-se o trabalho de tentar perceber quem era Orwell? Por qual razão escreveu aquele livro? Qual ideia queria transmitir? E sobretudo: era uma ideia dele? Era simplesmente uma alerta duma mente visionária, por vezes genial? Ou atrás de Orwell havia alguém? Porque as coisas raramente são tão simples.

Passo atrás: George Orwell, cujo nome verdadeiro era Eric Blair, nasceu na Índia em 1903, onde o seu pai era um oficial colonial britânico. Passou parte da adolescência no elitista Eton College, uma escola onde as classes superiores instruíam e educavam os seus filhos. Aos 20 anos, a admiração pelo Império Britânico levou Orwell a alistar-se na Polícia Imperial, sendo designado para a Birmânia. Em 1927, depois de ter averiguado directamente a natureza das forças repressivas britânicas nas colónias, voltou para Londres, onde tentou o caminho como escritor.

Como resultado da sua experiência birmanesa, onde testemunhou o sofrimento da população nativa, o seu pensamento político tornou-se radical, de esquerda. Embora o seu relacionamento com a polícia britânica e as suas experiências no mundo subterrâneo parisiense lhe fornecessem materiais abundantes para criações literárias, o seus primeiros romances não tiveram sucesso. Em 1936, Orwell viajou para a Espanha e juntou-se ao exército republicano para combater a rebelião franquista. Aquela experiência que, na realidade, durou apenas alguns meses, serviu para escrever “Homenagem à Catalunha”. Durante a presença na Espanha, teve a oportunidade de testemunhar os confrontos entre militantes comunistas e republicanos de um lado e anarquistas e POUM do outro. O drama duma luta fratricida, que Orwell viveu no lado perdedor, iria levá-lo a definir-se ideologicamente um estranho cocktail que combinava anarquismo e uma variante original trotskismo.

O sucesso inesperado

Em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, no contexto da vitória do exército soviético sobre a Alemanha, Orwell escreveu Animal Farm (“O Triunfo dos Porcos”/”​A Quinta dos Ani­mais” em Portugal, “A Revolução dos Bichos” no Brasil)​, um trabalho que consistia numa amarga sátira da Revolução Russa, a caricatura de animais numa quinta. A narrativa, no entanto, teve na primeira edição uma recepção bastante negativa na Inglaterra, onde Orwell conseguiu vender apenas 23 mil exemplares. Uma miséria. Pouco depois, em 1946, em pleno desenvolvimento da Guerra Fria, o romance cruzou o Atlântico. Nos Estados Unidos, os serviços de inteligência foram encarregados de transformá-lo num verdadeiro best seller. O trabalho foi vendido em centenas de milhares de cópias: a CIA influenciou fortemente os órgãos de informação para transformar o livro num sucesso e o elogio foi quase unânime na imprensa norte-americana. O New Yorker, por exemplo, definiu Animal Farm um livro “absolutamente magistral”, alegando que Orwell era comparável à Voltaire.

A CIA cuidou das cosias em Hollywood também, financiando a versão cinematográfica do livro: um exército de oitenta designers assumiu a tarefa de construir as 750 cenas com 300.000 desenhos a cores que a produção exigia. O roteiro foi revisto pelo Conselho Estratégico de Psicologia, que tentou tornar a mensagem favorável aos planos da CIA. O filme teve uma enorme cobertura publicitária e distribuído em todo o Ocidente.

Tudo isso não deve surpreender: a Guerra Fria não fez poupar esforços e os filmes foram um meio privilegiado de propaganda. A CIA promoveu uma película cujo alvo era a União Soviética, que na altura já tinha sido reconhecida como o inimigo do Ocidente: o livro de Orwell era a obra certa na altura certa.

Em 1949, poucos meses antes da sua morte, Orwell publicou o romance 1984. Incentivado pelo inesperado sucesso do livro anterior (lembramos que no Reino Unido Animal Farm tinha sido totalmente ignorado), o escritor inglês também elegeu o anti-comunismo como tema central do novo trabalho.

1984 não é uma obra original: tem uma fortíssima dívida com o romance We (“Nós”) do russo Yevgeny Zamyatin, publicado em 1921. Orwell conhecia bem We pois o tinha lido e publicado uma crítica literária acerca do livro. Mais: tinha utilizado a obra para afirmar que Brave New World (“Admirável Mundo Novo”) de Aldous Huxley era parcialmente devedor das ideias de Zamyatin. Facto curioso porque, oito meses depois de ter lido We, Orwell fez exactamente o mesmo ao iniciar 1984, aliás, no caso de Orwell podemos dizer que o enredo foi alegremente extraído de We.

Também 1984 fazia parte da ofensiva da CIA. Isaac Deustcher, teórico trotskista de prestígio internacional, descreveu com um episódio o impacto que o livro provocou sobra a opinião pública norte-americana. Poucas semanas antes da morte de Orwell, um vendedor de jornais aproximou-se de Deutscher numa rua de New York e disse: “Você já leu esse livro? Deve lê-lo, senhor, e vai saber porque temos que soltar a bomba atómica contra os bolcheviques!”. Mas ter escrito dois livros que depois foram utilizados na propaganda da CIA (com o consentimento do autor) não é o pior crime de Orwell.

Ao serviço do império

Durante anos Orwell foi considerado por alguns setores “progressistas” como o autor paradigmático na defesa dos direitos dos indivíduos contra o poder omnipresente do Estado. Paradoxalmente, a realidade revelou que era apenas ao serviço dor órgãos de vigilância norte-americanos. A recuperação de material secreto da época mostra que Orwell denunciou 125 escritores e artistas como “companheiros de viagem ou simpatizantes do comunismo”. Fazendo uso das lições aprendidas na polícia colonial do Império, Orwell dedicou-se a registrar escrupulosamente dados e impressões sobre os intelectuais com os quais entrava em contacto. Na que ele chamou de “pequena lista”, não só incluía os nomes das pessoas relatadas, mas também as observações venenosas que lhe atribuía. A maioria deles nem sequer era comunista, mas liberal ou simplesmente progressista. Num caderno de capa azul, aquele que criou a imagem fictícia de uma super-potência totalitária, escreveu escrupulosamente as suas impressões sobre aqueles que depois teria relatado à CIA através do do Departamento de Pesquisa de Informação (IRD), uma organização de propaganda do Estado britânico.

Por exemplo, do poeta inglês Tom Driberg declarou: “Acredita-se que seja um membro clandestino do Partido Comunista”, “judeu inglês”, “homossexual”. Do músico negro Paul Robenson: “muito anti-branco”. De Kingsley Martin, editor do conhecido semanário de esquerda News Statesman: “um liberal degenerado e muito desonesto”. Malcolm Nurse, um dos pais da libertação africana: “negro, anti-branco”. John Steinbeck, universalmente conhecido: “escritor espúrio e pseudo-brilhante”. Nem Charles Chaplin, nem o romancista JB Priestley, nem Bernard Shaw, nem Orson Welles, nem o prestigiado historiador E.H. Carr escaparam do lápis acusatório de George Orwell. Uma lista parcial das pessoas denunciadas por Orwell pode ser encontrada nesta página de Wikipédia versão inglesa.

A verdade é que George Orwell foi uma criação da CIA, independentemente da opinião sobre a qualidade literária das suas obras. A CIA não esperou para investir fundos na promoção do trabalho dele. Orwell estava ciente do efeito devastador que a mensagem de um suposto representante dos valores da esquerda poderia ter em grandes sectores da opinião pública. Como outros intelectuais deste e daquele período, Orwel sucumbiu à sedução do sucesso fácil e da rápida notoriedade, possibilitando a transmissão de uma mensagem construída pelos criadores da Guerra Fria.

Mas a tragédia da sua memória foi dupla. Por um lado, a abertura de alguns arquivos empoeirados do Foreign Office revelou a sua personalidade fraudulenta. A falta de escrúpulos do escritor inglês era comparável apenas àquela dos mais desprezíveis protagonistas dos seus próprios romances. Finalmente, a História apresentou as contas, colocando Orwell no lugar a que pertence, embora tenham transcorrido mais de cinquenta anos.

Por outro lado, a sociedade sinistra descrita por Orwell parece cada vez mais semelhante àquela que, paradoxalmente, contribuiu para reproduzir. Toda a panóplia orwelliana da “polícia do pensamento” ou da “neolíngua” é reproduzida na imagem que é oferecida pela sociedade de hoje. Que diferença faz para a uniformização do pensamento ser esta conduzida pelo Grande Irmão ou por uma mão cheia de multinacionais que controlam e “purificam” a transmissão planetária do pensamento? Existe muita diferença entre as “Semanas do Ódio” organizadas pelo Grande Irmão e aquelas organizadas por Bush ou Obama, visando a preparação psicológica da população dos Estados Unidos e dos Países aliados para justificar as guerras de conquista no Médio Oriente? Existe uma diferença tão grande entre o “Ministério da Verdade” de 1984, que determina o que o cidadão deve pensar todos os dias, e a esmagadora uniformidade das opiniões que encontramos todas as manhãs na uniformidade dos nossos media?

Curioso como um dos ícones da informação alternativa, um exemplo do futuro que temos que evitar, o mais conhecido aviso sobre os horrores da Nova Ordem Mundial, tudo isso provenha dum indivíduo que alcançou a fama só com os esforços da CIA e que da CIA era um desprezável informador. Curioso ou talvez não.

 

Ipse dixit.

Fontes: The New York Times (1, 2), The Independent, The Telegraph