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Tanto para lembrar: o verdadeiro inimigo

Saltitando levemente pela internet, não é nada raro encontrar um artigo com os seguintes conceitos:

O Neoliberalismo, que é a base económica do capitalismo absoluto moderno (o especulativo e o financeiro), tem que ser absolutamente entendido para enquadrar as dinâmicas sócio-políticas e económicas actuais: de facto, é o fio vermelho e a fonte básica daquele que é chamado “Pensamento Único” (que apoia, entre outras coisas, a primazia da economia sobre a política).

Simplificando, é a doutrina económica (que corresponde, naturalmente, a uma ideologia política inseparável) fonte de todos os nossos problemas […]: simplificando, é o culminar de um projecto de restauração do poder de classe por parte da elite dominante (uma proposição que remonta, no entanto, já aos anos vinte do século XX, mas que começou a surtir efeitos a partir dos anos setenta e da estagflação).

É, portanto, a reacção das elites que haviam perdido tanto em termos de poder e riqueza, naquelas alturas, especialmente no “gloriosos trinta” após a Segunda Guerra Mundial: naquela época, as constituições de inspiração socialista (entre outras ), associadas às políticas económicas keynesianas, trouxeram prosperidade aos povos e fortaleceu as democracias.

Uma condição inaceitável, do ponto de vista elitista dessas classes de ricos, porque é muito horizontal. é suficiente pensar num famoso estudo, intitulado “A crise da democracia”, de 1975, entregue à Comissão Trilateral […] por Huntington, Crozier e Watanuki: nele, falava-se da necessidade da apatia das massas, de despolitização das mesmas e enfraquecimento da união, por causa de um perigoso “excesso de democracia”, a ser conseguido também através da introdução de tecnocracias.

Então, a partir das teorias de Von Hayek e dos estudos de Friedman da Escola de Chicago, foi-se impondo no campo académico este novo pensamento […] que contestava o compromisso keynesiano do liberalismo expansivo com a intervenção do Estado […].

Foram pensadas novas receitas económicas que contemplavam “desregulamentação”, cortes contínuos nos gastos sociais, privatização dos lucros e socialização das perdas, o financiamento da economia, monetarismo, austeridade, deificação do mercado, com o objectivo da definitivia submissão do Estado e da Política aos interesses económicos dos potentados privados.

Tudo funcionou através das redes de propagação unificado do novo credo, através das “categorias previane” do circo dos media, do grupo do clero jornalísticos-académico e da classe intelectual (que, para usar a sintaxe de Bourdieu, sempre foi a classe dominada pelos dominantes). Começou com o “teste piloto”, após o golpe de Pinochet no Chile em 1973 e, em seguida, no início dos anos oitenta, com os governos ocidentais de Thatcher, Reagan, Mitterrand e Kohl, até a obra-prima dos critérios arbitrários de Maastricht (fulcro do ordoliberalismo) e da moeda única europeia com taxa de câmbio fixa e Banco Central independente (e, basicamente, privado).

Desde então, a distribuição da riqueza terá uma reviravolta e será cada vez mais concentrada nas mãos daquela que é, de facto, uma oligarquia financeira, que só leva para frente os programas em seu benefício exclusivo e em detrimento dos povos (os dados sobre o crescimento da desigualdade mostram isso).

O que nós tentamos resumir em poucas linhas deve ser contextualizada no panorama da época: o começo foi dado com a luta de classes após a luta de classes (Gallino), ou seja, a rebelião da elite (Lash); era (e ainda é) o trabalho de um grupo, 1% da população, que fez (e ainda faz) os seus próprios interesses em detrimento de outro, aquele de 99% (como é infelizmente lícito, não certo ético).

O problema foi a falta de resposta das “classes baixas” e dos seus representantes (políticos e sindicais), que não têm sido capazes de interpretar e compreender os factos: sem considerar que eles tendem a não vê-los ou ainda não compreendê-los (alguns de forma parva, outros de má-fé, tanto à esquerda como à direita, com a exaustão da sua dicotomia histórica).

Devemos nos livrar dos mantras que são introjectados: os de “não há alternativa” (Thatcher), o “Fim da História” inevitável (Fukuyama) e “estamos a viver além dos nossos meios”. Na realidade, tudo é o resultado das escolhas políticas e económicas deliberadas e planeadas, o sistema sócio-económico em que vivemos não é um facto natural e irreformável e, como tal, não é necessário ser vítima dele: seria suficiente, numa perspectiva individual e colectiva, pensar e agir de outra forma (uma vez que, parafraseando Einstein, não se pode resolver um problema com a mesma mentalidade que o gerou).

…e bla, bla , bla. Neste caso o autor é tal Enrico Gatto, que não conheço mas, considerado o apelido, deve ser meu concidadão. Infelizmente, porque este conjunto de ideias mistura tudo num confuso caldeirão que afinal falha por completo o objectivo principal: encontrar o verdadeiro culpado.

O verdadeiro inimigo

O nosso inimigo não é o Neoliberalismo, não há nenhuma luta de classe por aqui, a não ser que por “classe” seja entendido o 99% da população. O que há é um sistema, eficaz no curto e médio prazo, baseado numa particular ideia de “livre mercado”, substrato do Capitalismo moderno (a partir do 1700 d.C.) e origem do actual Neoliberalismo. Este é o nosso inimigo, o resto é apenas consequência.

Para sermos claros: a sociedade na qual estamos a viver é o lógico fruto de 300 anos de Capitalismo. Que sempre existiu (pelo menos em tempos históricos; em tempos pré-históricos o discurso muda): o pequeno padeiro na Roma imperial era um “capitalista”, assim como o fabricante de cerveja do Antigo Egipto. O que mudou nos últimos 300 anos é o relacionamento entre “livre mercado” e política. Ninguém na Antiga Roma ou no Egipto dos faraós imaginava criar uma empresa tão grande ao ponto de ameaçar a autoridade do Estado. E se isso acontecia, a resposta do Estado era rápida e sem piedade.

O moderno Capitalismo, pelo contrário, evoluiu num espaço de tempo bastante curto até criar uma oligarquia. O que não deve surpreender: a oligarquia é a natural evolução de qualquer livre mercado em que o Estado abdique das suas funções de controle. E, azar nosso, é absolutamente normal que, com o passar do tempo, um moderno Estado abdique das ditas funções. Não acontecia no passado porque:

  1. o Estado tinha mais poder (geralmente de tipo absoluto);
  2. o Estado era muitas vezes apoiado pela instituição religiosa;
  3. os valores da sociedade eram diferentes;
  4. as trocas globais eram dificultadas pelas distâncias, apenas o Estado tinham os meios para regulares contactos com o estrangeiro.

Todos estes pontos foram sistematicamente eliminados na sociedade moderna e hoje é normal que num regime de “livre mercado” (aspas sempre obrigatórias) a força dominante não seja a política mas a economia.

Afirmar que o Neoliberalismo é o nosso inimigo é um disparate: deixa entender que antes do Neoliberalismo o mundo funcionava como uma maravilha, o que é falso. A primeira grande “distorção” do livre mercado data de 1600: no dia de 31 de Dezembro daquele ano, a Rainha Isabel I concedeu o monopólio do comércio com as Índias Orientais a um grupo de 125 accionistas privados por um período de 15 anos. Provavelmente nem a Rainha se apercebeu da monstruosidade que acabava de criar: tinham nascido a primeira multinacional e o monopólio privado.

Num cenário ideal, o monopólio privado é algo que não poderia existir: o Estado tem funções de regulamentação e isso impede que haja uma excessiva concentração de poderes, também económicos, nas mãos de poucos. Se os monopólios privados são uma “monstruosidade”, também os públicos não são nada saudáveis e devem ser limitados a excepções como, por exemplo, a saúde ou a educação. Neste cenário ideal, é a política que estabelece os objectivos com planos de médio e longo prazo, a economia é só um dos instrumentos para alcançar os objectivos.

Num cenário realista, o Estado é submetido aos contínuos ataques das forças económicas e, com o tempo, enfraquece, seja por causa da corrupção, seja por causa das pressões dos agentes privados (que controlam também os órgãos de informação/comunicação). Quando o Estado abdica das suas funções, há a máxima concentração de poder naquelas que definimos como “multinacionais”, conglomerados supranacionais de empresas geridas pela Oligarquia, que acaba por encontrar tácitos acordos para completar a obra e, de facto, assumir o controle monopolista do mercado e também do poder políticos.

Portanto, e para resumir, o nosso inimigo deve ser o livre mercado na altura em que este trabalha para sobrepor-se ao Estado. Traduzido em datas, vimos qual a origem (31 de Dezembro de 1600); depois houve a fase da teorização (Adam Smith, final de 1700), a grande aceleração ao longo de 1800 e, com a Grande Depressão de 1924, o aparecimento dum novo actor, a Grande Finança, que desde os finais do séc. XX domina incontrolada os mercados apoiada pelas teorias Neoliberalistas.

Pelo que, o Neoliberalismo não pode ser analisado como um fenómeno isolado: todo este é um percurso perfeitamente lógico onde o nascimento das multinacionais e da Oligarquia é a natural consequência da evolução dum “livre mercado” sem controle estatal. Aqui podemos falar de Marx, da luta de classe, da esquerda, da direita, da Comissão Trilateral, do Neoliberalismo, de Thatcher, Reagan e Rato Mickey, mas tudo é secundário: tudo não passa do lógico fruto duma árvore que já no nascimento continha em si os germes da dissolução e que só o controle por parte dum Estado forte pode limitar. Não pode haver um sistema eticamente justo no âmbito do “livre mercado” sem regras, temos que afastar esta ilusão duma vez por todas; e temos que reconhecer o papel fundamental do Estado porque num “livre mercado” deixado à mercê só dos privados tudo há um preço, não há nada que não possa ser vendido. E se numa primeira fase do Capitalismo ainda pode haver a herança dos tempos passados, sob forma de valores que limitam a mercificação total, com o passar do tempo novos valores são impostos (pelo mercado, desta vez, como no caso do Pensamento Único ou do igualitarismo forçado) e as barreiras éticas e morais vacilam até desaparecer. Nesta altura, o predomínio da economia sobre o Estado é total.

Para ter uma ideia do ínfimo nível já alcançado, aconselho visitar o site da SEC, a Securities and Exchange Commission (Comissão de Valores Mobiliários), agência federal dos Estados Unidos que tem a responsabilidade pela regulação do sector de valores mobiliários, das acções, das opções de câmbio e doutros mercados de valores electrónicos nos Estados Unidos. A SEC é composta por cinco comissários nomeados pelo Presidente dos Estados Unidos e trabalha com várias organizações auto-reguladoras como NYSE (a Bolsa Valores de New York) e NASD (o mercado de acções automatizado norte-americano).

Na página de pesquisa do SEC podemos encontrar uma miríade de empresas, públicas e privadas originárias de todo planeta: são as empresas listadas na Bolsa de Valores. O que o Leitor talvez não espera encontrar é um inteiro País, talvez o seu. Mas está lá. A República de Portugal é a empresa nº 0000911076 do catálogo, a República Federativa do Brasil é a nº 0000205317, a Italia é a nº 0000052782, etc. Estados como corporações, assim como uma Microsoft, uma Procter and Gamble, um Facebook. Somos isso: empresas no imenso mercado global. Ainda algumas dúvidas acerca da supremacia do mercado sobre a política? Acho que não.

A saída? É complicada, muito complicada. Mas existe: deve-se devolver aos Parlamentos nacionais a supremacia sobre a economia. Complicado mas não impossível. Afinal trata-se de dar um passo atrás: implementar uma série de leis que blindem a política, que limitem a concentração do poder económico e que permitiram que o Estado desenvolva um papel activo no mercado (isso é: como regulador e como actor participante). Não a solução ideal, mas é já algo; sobretudo, é possível sem atrapalhar por completo a actual estrutura económica e política.

Possível também porque as Constituições ocidentais, sobretudo aquelas nascidas logo após a Segunda Guerra Mundial, já tinham uma componente social (e não “socialista” como no artigo) importante, que depois foi alegremente enterrada. O tipo de economia era orientada na direcção do ensino keynesiano e os resultados foram óptimos durante um par de décadas: sobretudo demonstraram que é possível ter um Estado de bem estar social (welfare) sem comprometer a funcionalidade da económica. Quem hoje ataca aquela concepção, afirmando ser um modelo não sustentável, esquece que foi isso que permitiu a rápida recuperação no pós guerra, porque se na altura tivessem aparecido o FMI ou a Escola de Chicago com o dogma da austeridade, ainda estaríamos com os destroços nas ruas.

 

Ipse dixit.

Fonte: perdi a fonte do artigo de Gatto 🙁