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A alegre vidinha nas cidades fechadas (closed cities)

Seversk, Rússia. Fonte: Wikipedia

A vida cultural na cidade de Novouralsk, localizada na parte central dos Urais, é uma das mais gratificantes da sua área.

As suas cinco bibliotecas, duas das quais inteiramente dedicadas a crianças e jovens, são consideradas as melhores da região (e, segundo os cidadãos, da Rússia); a Biblioteca Pública Central, na vanguarda da informatização e do equipamento audiovisual, é um ponto de referência para actividades culturais e reúne cidadãos que organizam centenas de eventos e iniciativas todos os anos entre conferências, competições, exposições, concertos e percursos educativos. A cidade, além dos dois cinemas e do museu histórico da região, abriga um parque de diversões, um teatro de opereta muito famoso na região e o teatro de bonecos “Skaz”, que no ano passado celebrou o seu sexagésimo aniversário. Mesmo no desporto Novouralsk não é mal, com um campo de hóquei indoor (conversível numa área de concerto), estâncias de esqui, piscinas e assim por diante.

Uma apresentação digna duma brochura turística: mas nenhum turista jamais colocará os pés em Novouralsk. Mesmo para os russos que vivem em outras regiões, visitar a cidade não é nada simples. O regime de admissão na cidade é regido pela lei federal russa: a entrada e a permanência são reservadas aos residentes, os parentes próximos, quem possui uma propriedade na área urbana ou quem deve ir lá a convite por razões de trabalho ou outras necessidades sociais e culturais. No passado, era também complicado sair de Novouralsk, até para quem aí morava.

Закры́тое администрати́вно-территориа́льное образова́ние. Para os amigos: ZATO

A razão? Novouralsk é uma cidade fechada, uma daquelas que na Rússia têm o nome de ZATO (Закры́тое администрати́вно-территориа́льное образова́ние, ЗА́ТО literalmente: “entidades administrativo-territoriais fechadas”). Inicialmente o nome oficial de Novouralsk era Sverdlovsk-44, onde o número indicava os dois últimos dígitos do código postal válido na zona onde surge a cidade: isso porque até 1994 Novouralsk não aparecia nos mapas e era-lhe dado o nome da cidade mais próxima, neste caso Sverdlovsk, mais os dois números. Portanto, não era apenas uma cidade fechada mas também secreta, tal como dezenas de outras cidades no território soviético. Mas não só.

Uma cidade pode ser fechada por vários motivos e segundo vários tipos de restrições. Mesmo Meca, tecnicamente falando, é um exemplo de cidade fechada porque o acesso é proibido para aqueles que não podem provar ser fiéis muçulmanos. Mas, em geral, cidades como Novouralsk são lugares construídos ad hoc, muitas vezes de raiz, para servir instalações estratégicas do ponto de vista militar, industrial ou científico, ou ainda cidades localizadas em áreas fronteiriças que são mantidas fechadas por razões de segurança (como Dikson, o porto mais setentrional da Rússia).

Novouralsk serve a indústria estratégica. Os anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial testemunharam uma “explosão” de cidades ocultas como esta, surgidas em lugares remotos, construídas em poucos meses (na URSS com o trabalho dos prisioneiros dos gulags). Após o fim da Guerra Fria, muitas passaram por um período de declínio também demográfico, embora algumas estejam a recuperar ligeiramente.

Novouralsk deu abrigou a uma das primeiras fábricas para a produção de urânio enriquecido, que entrou em função em 1949; hoje na cidade existe o Complexo Eletroquímico Ural (UEKhK), que produz urânio enriquecido em baixa concentração para usinas nucleares e reactores para fins de pesquisa.

Ozyorsk, Rússia. Fonte Wikipedia

Hoje o governo russo reconheceu a presença de 44 ZATO, povoadas por cerca de um milhão e meio de habitantes; acredita-se que existam outras quinze localidades que ainda são mantidas em segredo. Fora do antigo território soviético, encontramos actualmente alguns exemplos de cidades fechadas: nas fronteiras do deserto de Gobi existia uma misteriosa “cidade nuclear” chinesa, indicada pelo número 404; ainda não aparece nos mapas, foi o local das plantas para a primeira bomba atómica chinesa entre os anos ’50 e ’60. Quando a corrida nuclear terminou, após décadas de declínio, a cidade foi declarada insegura por instabilidade geológica e foi esvaziada pelas autoridades em 2005, deixando apenas alguns idosos a passar os últimos anos lá. A documentação oficial é escassa e existem poucos registros de ex-residentes.

Como um condomínio

Outro exemplo de cidade fechada no mundo, desta vez ocidental, é Mercury, em Nevada (EUA); após o desenvolvimento atómico do pós-guerra, Mercury continua a ser um cidade formalmente fechada depois que outras localidades envolvidas no projecto Manhattan (Los Alamos, Oak Ridge) se tornaram acessíveis ao público. A população de Mercury tinha alcançado as dez mil unidades na década de 1960, enquanto hoje flutua em volta de algumas centenas e ninguém mora lá permanentemente; o pessoal autorizado pára no máximo alguns dias para trabalhar em projectos.

Mercury é o principal ponto de acesso ao local ao Nevada Test Site, uma vez terra para testes nucleares, hoje usada principalmente para o armazenamento de resíduos radioactivos de baixo nível e para verificar o funcionamento do antigo arsenal nuclear dos EUA. Segundo as testemunhas, Mercury parece uma cápsula do tempo dos anos ’60 e, há algumas décadas, está entre os destinos do chamado “turismo atómico” nos Estados Unidos.

As cidades fechadas compartilham algumas características com os condomínios fechados, complexos residenciais isolados com um número variável de serviços, nos quais é possível ter acesso ou transitar somente se residente ou se for convidado por um residente. Nos casos mais extremos, os condomínios fechados podem substituir o Estado na supervisão, na construção das infraestruturas e nos serviços essenciais, estabelecendo impostos especiais para a gestão separada dos bens comuns. Os condomínios fechados, no entanto, nascem e são regulados pela iniciativa conjunta de grupos privados, como uma reação de desconfiança nas políticas do País anfitrião, e geralmente se desenvolvem na presença de fortes desigualdades sociais.

As ZATO soviéticas e as cidades fechadas de outras nações, por outro lado, são um produto directo das políticas estatais de pesquisa e desenvolvimento, e estão profundamente impregnadas de um espírito nacionalista. Ainda representam modelos extremos de protecionismo e isolacionismo: oferecem altos níveis de segurança, qualidade de serviços e cuidados das infra-estrutura. Além disso, os moradores das cidades fechadas não precisam de nenhum esforço económico ou organizacional para a gestão do bem comum: é o Estado que cuida deles.

Presos e contentes

Para quem vive as instabilidades provocadas pela crise económica, pelos fluxos migratórios, e têm uma percepção (correcta ou não) de um aumento do crime, pode parecer um sonho viver numa cidade que é sinónimo de segurança, protecção e exclusividade, construída sobre um modelo soviético que tenta organizar a sociedade de acordo com um alto nível de “pureza”. Os mais jovem ficam fora de casa sem supervisão; pessoas como mendigos ou ex-condenados não têm acesso.

Diz Konstantin, morador da ZATO de Ozyorsk:

Quando eu tinha seis anos, fui para outra cidade com a minha família. Foi então que vi pela primeira vez uma mulher que pedia esmolas na rua. Para mim foi uma espécie de choque.

Os únicos estrangeiros que podem entrar nas cidades fechadas são pessoas altamente treinadas e seleccionadas, cujo passado tem sido objecto de um exame minucioso e cujas actividades na cidade são monitoradas de perto. O mesmo conceito de dificuldades económicas e materiais é bastante estranho: apesar da decadência após o colapso da União Soviética, o nível de serviços dentro das ZATO é ainda superior ao resto do País. Na época da Guerra Fria, numa cidade fechada podiam ser encontrados bens materiais e não materiais (como frutas frescas ou actividades recreativas e culturais) não disponíveis no resto do território russo, nem mesmo na capital. A qualidade da educação é levada muito a sério, ainda hoje: muitas ZATO oferecem um programa de formação completo, desde o jardim de infância até a universidade. Além da educação e protecção, o Estado também garante moradia, emprego bem remunerado quando comparado ao custo de vida e assistência médica gratuita, além de estadias em locais exclusivos para trabalhadores de plantas estratégicas. O físico soviético Lev Altshuler, que trabalhava em Arzamas-16 (hoje conhecida como Sarov) para a construção da bomba de hidrogénio, relembra:

Cientistas e engenheiros viviam muito bem. Os pesquisadores recebiam um salário muito alto por esses tempos. As nossas famílias não precisavam de nada. O fornecimento de alimentos e de outros bens era muito diferente [do resto do país, ndt]. Em suma, todos os problemas materiais eram eliminados.

Neste contexto, paredes de concreto, arame farpado e patrulha de guardas armados não são vistos como uma restrição à liberdade ou aos direitos, mas como um elemento essencial de proteção. Obviamente, os privilégios das cidades fechadas nunca foram realmente gratuitos e os moradores bem sabem disso, mesmo que ainda se recusem a falar acerca do assunto; para evitar problemas, mas também porque nas suas mentalidades sempre foi algo aceitável.

Os pequenos problemas

Na idade de ouro da energia nuclear, não apenas a liberdade de movimento era limitada, mas era absolutamente proibido que os cidadãos mencionassem de onde vinham; o governo verificava a lealdade dos cidadãos através de espiões e eventuais infratores eram punidos severamente. E com o total segredo das actividades duma cidade fechada eram também encobertos os problemas de saúde e as mortes causadas por acidentes militaresou nucleares.

Checkpoint de entrada em Sevensk, Rússia. Fonte: Wikipedia

Exemplo disso é a planta em Mayak, que em 1957 foi palco do terceiro incidente mais grave que já ocorreu na história da energia nuclear. O conseguente fallout resultante da libertação de materiais radioactivos na atmosfera chegou a contaminar uma área de aproximadamente 20.000 quilómetros quadrados do nordeste da zona, mas teve que passar uma semana antes que as autoridades, sem explicação, começassem a evacuar os moradores de Ozyorsk e os primeiros detalhes apareceram na imprensa ocidental apenas seis meses depois. O incidente foi oficialmente tornado público só em 1989 e até 1994 ainda era chamado de “desastre de Kyshtym”, em homenagem à cidade mais próxima da região, já que nem Mayak nem Ozyorsk existiam nos mapas. Estima-se que, desde a sua abertura, cerca de 170 acidentes envolvendo contaminação ocorreram na fábrica de Mayak, alguns dos quais nunca foram confirmados pelas autoridades soviéticas e russas. Entre os últimos acidentes, provavelmente também está o caso que, em Setembro passado, causou a disseminação de uma nuvem radioativa na Europa e para o qual a agência atómica russa (Rosatom), depois de ter realizado formalmente uma investigação interna, negou qualquer envolvimento.

Algumas estimativas falam de cerca de 8.000 mortes causadas pelo acidente de Kyshtym precipitação radioactiva mas, dado que a população de Ozyorsk sempre foi exposta a níveis perigosos de radioactividade, é difícil distinguir quais as vítimas são directamente atribuíveis ao acidente de 1957. Um dos quatro bonitos lagos que cercam a cidade, o Karachay, é também chamado de “lago do plutónio” porque a usina tem o hábito de aí descarregar o lixo radioativo. Nas décadas passadas, os padrões de segurança da fábrica eram muito menores do que hoje e não era incomum lidar com radionuclídeos sem qualquer proteção; hoje os riscos derivam principalmente da obsolescência de diferentes reactores e das políticas da Rosatom que impedem qualquer controle esterno. Ainda hoje, cinquenta anos depois do acidente mais grave, há sinais de trânsito que encorajam aqueles que transitam a fechar as janelas e as entradas de ar do automóvel enquanto passam por estas áreas ainda fortemente contaminadas.

Para os cuja saúde foi danificada por causa da exposição a radiação, é difícil obter tratamentos médicos especializados ou compensações; os pacientes são simplesmente informados de que a condição deles não é provocada pela radioatividade. Além disso, há obstáculos ligados à burocracia russa: os moradores das cidades fechadas nascidos antes de 1994 estão numa espécie de limbo legal, já que segundo os arquivos não nasceram nas cidades onde moram (pois tais idades “não existiam”). Torna-se, portanto, difícil demonstrar a relação com qualquer contaminação radioactiva que tenha ocorrido no passado na área.

Apesar disso, a expectativa de vida nas ZATO sempre se manteve acima da média nacional: obviamente, os serviços básicos gratuitos e a qualidade destes fazem a diferença. Os seus habitantes consideram o pertencer a uma cidade fechada como uma forte fonte de orgulho nacional; sentem-se orgulhosos da confiança que o governo deposita neles e aceitam os efeitos colaterais como parte desse privilégio. Na verdade, em 1989 e em 1999, o governo pediu oficialmente aos moradores de Ozyorsk se eles desejassem desistir do status do ZATO: os cidadãos optaram por manter a cidade fechada.

City 40

A seguir o trailer de City 40, o documentário que explora a realidade das cidades fechadas da Rússia. É muito interessante e é mesmo por isso que não há uma versão portuguesa. City 40 existe só nas versões em idiomas russos e inglês.

As cidades fechadas no mundo

Eis uma lista das cidades fechadas ainda existentes no mundo.

Ipse dixit

Fontes: Wikipedia, Atomic Heritage Foundation, Science, Atomic Tourism, China Org, Resolução do Governo da Federação Russa de 5 de Julho de 2001 Nº 508 : Aprovação da lista de entidades administrativas e territoriais fechadas e assentamentos localizados nos seus territórios (Web Archive, idioma russo), Novouralsk: Public Library, City 40 (documentário completo em idioma russo).