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O capitalismo digital

Imagem de rawpixel em Unsplash

Peguem um barco para atravessar o rio. Pode haver duas idosas alegremente aos berros porque surdas, mas o resto é silêncio. Todos estão curvados, o smartphone numa mão, a outra que percorre o teclado virtual.

Comum denominador: o smartphone. E cada smartphone está ligado à internet. “A rede” tem assumido um papel cada vez mais importante na nossa sociedade. Um papel positivo ou negativo? Isso agora não interessa. O que conta aqui é que internet tem mudado as nossas vidas. A mesma internet mudou muito: como será a internet do futuro? Que em boa medida é como parafrasear a pergunta “como serão as nossas vidas no futuro?”.

A partir dos anos ’90 e até recentemente, o clima cultural em volta da internet e da era digital era caracterizado por um positivismo quase acrítico, uma fé quase cega no facto de que a tecnologia poderia ter reescrito, e da melhor maneira, as linhas do futuro. Ainda mais atrás, num filme dos anos ’50 ou ’60: a ciência das maravilhas, computadores que satisfazem qualquer nosso desejo, que facilitam a vida em tudo.

Hoje aquele futuro está aqui connosco e as coisas são um pouco diferentes. Esta atitude quase mística em volta de internet parece estar cada vez mais em crise. Geert Lovink, Director do Instituto das Culturas de Rede em Amesterdão (Holanda) escreveu que o caso NSA, trazido à superfície por Edward Snowden mais de quatro anos atrás, teria marcado o fim simbólico da era “positivista”, forçando a cyber-ingenuidade a enfrentar as políticas internacionais.

No seu livro Platform Capitalism (Luiss University Press), Nick Srníček, professor de Economia Política na City University de Londres, faz um balanço acerca da evolução da economia digital e dos crescentes e preocupantes monopólios representados pelas grandes plataformas de Silicon Valley, tratando destas empresas no contexto geral da evolução histórica do capitalismo. Porque é disso que estamos a falar: o bom velho capitalismo com roupa tecnológica.

As grandes plataformas digitais são os principais agentes económicos dum ecossistema no qual toda a actividade humana produz dados quantificáveis, que é possível supervisionar, conservar e transformar em dinheiro. Porque os dados são informação. E a informação é um dos tesouros mais valiosos. Por isso a recolha das informações sobre os usuários é a base dos monopólios que estão a expandir-se seguindo direcções diferentes e sem uma real possibilidade de concorrência.

Segundo Srníček, os dados jogam um papel-chave nas funções capitalistas que suportam o crescimento das chamadas “plataformas” como Facebook, Google ou Amazon. Estas plataformas são caracterizadas por fornecer a infra-estrutura necessária para mediar entre diferentes grupos de usuários, mostrando tendências monopolistas impulsionadas pelos efeitos de rede. Dito de forma mais simples: estas empresas fornecem os meios, os usuários utilizam os meios e trocam dados que as mesmas plataformas transformam em dinheiro.

Mas tudo isso tem consequências para a estrutura da internet, cujo futuro contará com diferentes direcções possíveis:

Não é exactamente a Internet que esperávamos.

Entrevistado pelo site Il Tascabile, Nick Srníček explica:

Acredito que muitas das manifestações de entusiasmo e glorificação dos projectos de Internet e afins, tais como os open source, indicassem algo real, identificando algumas novas dinâmicas da nossa situação. Ao mesmo tempo, entretanto, subestimaram o poder das hierarquias tradicionais e as estruturas de englobamento que negam essas dinâmicas. Havia, em geral, pouca ênfase no poder. Isto significa que, se algumas dessas previsões teóricas feitas no início conseguiram tornar-se realidade (por exemplo, todos dedicam-se ao trabalho criativo gratuito no tempo livre), foi também bastante ignorado o mecanismo que virou ideal contra si mesmo. Por essa razão, Facebook agora usa os nossos esforços criativos como forma de atrair anunciantes e refinar os seus algoritmos. Está a tornar-se cada vez mais óbvio que o velho modo de produção não desaparecerá sem luta e que […] precisamos construir uma luta colectiva .

Um dos pesadelos que podem tornar-se realidade no nosso mundo digital e real com o monopólio das grandes empresas é a criação dum único acesso à rede. Um problema que vai em paralelo com a recolha de dados: mas enquanto existe uma luta entre as plataformas para conseguir cada vez mais dados do que as outras, o acesso único poderia ser uma solução esperada por parte de todas estas grandes empresas. Tornar-se infra-estruturas indispensáveis para desempenhar actividades essenciais como conectar-se à Internet.

Uma utopia? Não, uma realidade que avança. Como explica Wikipedia:

Internet.org é uma parceria entre a empresa de serviços de redes sociais Facebook e seis empresas (Samsung, Ericsson, MediaTek, Opera Software, Nokia e Qualcomm) que planeja oferecer acesso a serviços de internet selecionados a países menos desenvolvidos aumentando a eficiência e facilitando o desenvolvimento de novos modelos de negócio em torno da oferta de acesso à Internet. Em novembro de 2016, 40 milhões de pessoas estavam utilizando o Internet.org. O projeto tem sido criticado como violador da neutralidade da rede, e por escolher os serviços de internet que são incluídos.

Neste caso, portanto, podemos observar o aparecimento do acesso único sob forma dum ecossistema virtual fechado e centralizado criado e gerido por Facebook em colaboração com empresas tecnológicas. O risco para já é mesmo este: uma potencial fragmentação de rede, com ambientes fechados e geridos por algumas entidades privadas e monopolistas. Comenta Srníček:

Isso tem a ver com os dados também, porque essas empresas se posicionam como gatekeepers [“guardiões “, ndt] -chave da Internet. Mas o aspecto mais importante é o monopólio do acesso à rede, que está a tornar-se algo fundamental na vida diária em todo o mundo. Ter o controle sobre este acesso significa ter a capacidade de extrair uma quantidade enorme de dados com os quais reabastecer os seus impérios.

Para Srníček o próximo terreno daquelas que no seu livro define como “as grandes guerras das plataformas” será a inteligência artificial, no sentido de aprendizagem das máquinas, que precisa do maior número de dados disponíveis para operar e expandir-se. Com base nessa nova “guerra”, as tendências que caracterizaram a evolução recente do capitalismo digital serão exacerbadas. Ainda Srníček:

A abordagem actual à inteligência artificial depende muito das enormes quantidades de dados. Quanto mais dados uma empresa tiver, mais eficientes serão os seus algoritmos e os seus serviços. O resultado é que esta empresa acabará por atrair mais utilizadores e extrair mais dados, forjando um círculo vicioso que lhe permitirá impor barreiras significativas a qualquer forma de concorrência. Pode ser economicamente barato configurar e administrar uma empresa de inteligência artificial, mas, a menos que você tenha acesso a conjuntos gigantes de dados, essa empresa sempre será fraca se comparada aos principais participantes. Já não é um sector tecnológico marginal, mas algo que organiza e guia cada vez mais a nossa vida. Dado que a propriedade da inteligência artificial é centralizada nas mãos de poucas empresas, torna-se ao mesmo tempo um aspecto generalizado da nossa sociedade.

Num recente artigo muito discutido, publicado pelo Guardian, o mesmo Srníček propôs a ideia de dar às grandes plataformas uma propriedade pública, a fim de recuperar o controle da Internet e das infra-estruturas digitais contemporâneas, afastando assim um futuro monopolista e totalmente privatizado que agora parece inevitável. Perante ao aumento da inteligência artificial, propor regulamentos específicos limitados não vai ajudar muito uma vez que estão em jogo as infra-estruturas fundamentais do século XXI. O problema não é a inteligência artificial, é quem a pode utilizar e quem não pode:

Devemos considerar a propriedade pública como uma questão mais ampla da simples nacionalização simples. Precisamos pensar de uma maneira mais criativa sobre o que significa a “propriedade pública” de uma plataforma. O segundo ponto-chave é a necessidade de construir barreiras legais, políticas e técnicas entre a recolha dos nossos dados e a vigilância destes por parte do Estado. Já conseguimos isso com um sistema de comunicação nacionalizado: o correio. Devemos, no entanto, desenvolver ferramentas e leis que nos protejam da vigilância. E devemos fazê-lo independentemente de quem detém as plataformas.

Actualmente, se os sinais se mantivessem tão fortes, o futuro da Internet parece destinado a uma constante expansão das plataformas capitalistas em qualquer ambiente económico. Algo extremamente diferente de como a rede tinha sido imaginada nos seus primórdios, uma altura em que parecia que internet teria reescrito até mesmo todo o equilíbrio do poder na economia. Aconteceu o contrário: o capitalismo está a transformar internet.

O que é necessário, para não encontrar uma dominação online por parte dos monopólios, é entender que os dados não são apenas a base do modelo de negócios dessas plataformas, mas os seu elementos estruturantes. Um Facebook quase desaparece. O problema dos monopolistas na internet não é apenas uma questão de hipotético ciberespaço destacado da economia e da geopolítica: bem pode ser o futuro global da sociedade do século XXI. Protejam os vossos dados, não os partilhem: defendam a vossa privacidade.

 

Ipse dixit.

Fontes: Il Sole 24 Ore – Nova, Wikipedia (versão portuguesa), The Guardian, Lettera 43, Il Tascabile