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O futuro? Está atrás

A economia na forma do livre mercado, juntamente com toda a sua parafernália, domina totalmente a nossa sociedade e a discussão pública.

O mercado livre está baseado na iniciativa privada e tem no centro a figura do empreendedor, tanto mais apreciado se for particularmente qualificado. A esse respeito, deve-se enfatizar um elemento ao qual é dada pouca atenção: a iniciativa privada não é a mesma coisa que a propriedade privada. A propriedade privada é perante a iniciativa privada a mesma coisa que a força física é perante a possibilidade de usá-la: em nenhum momento alguém já negou o direito de possuir uma força física maior pois esta é uma dádiva da Natureza e quem a possuir, fica com ela.

O problema nasce na altura de estabelecer limites para o evitar o uso indiscriminado desta força superior, um problema que nasceu muito cedo na nossa civilização, na prática desde que o homem começou a viver em comunidades suficientemente organizadas. Originalmente, o Direito nasceu para impedir que indivíduos fisicamente superiores usassem a força para prejudicar os outros ou subjugá-los. A maior força física deve ser reduzida de alguma forma até torna-la igual à dos outros.

Incrivelmente, parece que este critério não deve ser aplicado a outro presente de Natureza, como a habilidade económica. Na sociedade pré-industrial, pré-liberal e pré-democrática, a propriedade privada nunca foi de modo algum questionada, mas era questionada a possibilidade de que o indivíduo usasse esta sua habilidade superior no campo económico para prejudicar os vizinho ou para subjugá-lo. Todo o esforço da Escolástica, o método de pensamento crítico dominante no ensino das universidades medievais europeias entre os séculos IX e XVI, foi uma luta contra o lucro e o interesse (o tempo é de Deus e, portanto, de todos e não pode ser monetizado, dizia o escocês Duns Scotus no séc. XIV), foi a elaboração dos conceitos de “justiça comutativa e distributiva” e dos princípios aos quais deveriam ser submetidos os atos de troca “para se adequar a um critério de justiça” e para não permitir uma dominação ilimitada: foi uma tentativa bem sucedida por muitos séculos de impedir que a violência da força física fosse substituída por uma maior habilidade económica, uma iniciativa privada implantada sem limites em detrimento dos mais ingénuos, dos menos capacitados ou dos desinteressados.

A democracia liberal e liberalista, juntamente com toda uma série de outros factores precedentes, concomitantes e subsequentes incluindo a revolução científica, a Reforma e, acima de tudo, a Revolução Industrial, quebrou esses limites e contribuiu para lançar as bases do actual modelo de desenvolvimento, onde a Economia está no centro de tudo (junto com a sua serva, a Tecnologia) e o Homem é simplesmente uma variável dependente (e manipulável).

Se a democracia liberal teve muitos inimigos insidiosos, o modelo actual de desenvolvimento não tem nenhum, seja de Direita ou de Esquerda. O conceito-base, inquestionável e irrevogável, comum aos liberais mas também ao marxistas é que o mundo moderno, mesmo com todas as suas contradições e lacerações, é infinitamente mais habitável do que era no passado; este último hoje é descrito como um mundo de fome, de miséria, de arrogância, de falta de liberdade, de sangue e de morte. Este é um ponto que poderia ser amplamente discutido, mas não é o que interessa agora.

Agora interessa realçar como a convergência de Direita e Esquerda, de liberais e marxistas, sobre esta ideia fundamental do passado é total e legitima toda a modernidade, juntamente com as suas doutrinas políticas. Legítima a modernidade porque o conceito que fica na base é simples: pode não ser tudo perfeito mas é o melhor que alguma vez tivemos (portanto: atrás não se volta). A convergência de liberais e marxista nisso é absolutamente coerente e compreensível: ambos são filhos da Revolução Industrial. Liberalismo e marxismo, nas suas várias formas, são na verdade dois lados da mesma moeda: ambos são modernistas, iluministas, progressistas, otimistas, racionalistas, materialistas e, sobretudo, economicistas; ambos têm o mito do trabalho, ambos são feitos dum industrialismos que pensa que a indústria e a tecnologia conseguirão produzir uma tal cornucópia de bens ao ponto de tornar livres todos os homens (Marx) ou, para os liberalistas, um grande número deles.

O problema é que esta utopia de duas faces fracassou redondamente. Antes do lado marxista, que revelou ser industrialmente ineficiente e, portanto, perdedor; depois o outro lado da medalha também, aquele do liberalismo “democrático” que, sobretudo através dos processos de globalização que exasperam todos os vícios do Capitalismo, provou ser outro fracasso. Mas nem os liberalistas e nem os marxistas podem questionar a modernidade porque significaria cortar com a essência deles, com as suas raízes, uma vez que da modernidade nasceram e na modernidade floresceram.

Este é o “pensamento único” de que tanto ouvimos falar, sem saber muito frequentemente o que é: é obrigatório sermos todos modernistas, iluministas, progressistas, otimistas, racionalistas, materialistas e, sobretudo, economicistas. Como vimos recentemente, até a Democracia hoje é vista apenas em função dos resultados económicos. Crescimento? Significa Democracia que funciona. Nada de crescimento? Então a Democracia está a falhar. Esta ideia, que deveria horrorizar qualquer pessoa dotada dum mínimo de discernimento, hoje é tranquilamente vendida nas páginas duma das revistas mais difundidas no planeta. Os poucos que se atrevem a criticar este pensamento são rotulados como nostálgicos, incuráveis ​​e ridículos.

Num ensaio de há algum tempo, uma espécie de resumo do pensamento modernista, o historiador francês Pierre Milza escreveu:

É nosso dever explicar que o perigo de morte das civilizações só existe quando estas se tornam rígidas na contemplação estéril do seu passado.

É engraçado observar como os idolatras, liberalistas e marxistas, de Direita ou de Esquerda, maníacos da mudança porque duma mudança nasceram, não entendem que “rígidos na contemplação do passado” são eles: eles são os tradicionalistas porque eles estão sentados em cima das categorias de pensamento do século XIX, velhas de dois séculos e já incapazes de explicar a realidade. Direita e Esquerda hoje não conseguem entender as exigências do homem contemporâneo, exigências que são só aparentemente económicas: as causas do sucesso do assim chamado “populismo”, na Europa e nos Estados Unidos, estão todas aqui.

É preciso ter a coragem de observar de forma crítica quanto acontecido nos últimos dois séculos (no mínimo) para entender que este modelo já deu tudo o que tinha para dar: continuar significaria exacerbar os vícios daquele que uma vez era conhecido como Capitalismo e que hoje nem nome inequívoco tem. Acontecerá? Provavelmente não, porque quem detém o poder não tem nenhum interesse para que isso aconteça. Ao contrário: exacerbar os ditos vícios do antigo Capitalismo é o único objectivo de médio e longo prazo. “O sono da Razão gera Monstros”, como pintou Francisco Goya, mas também o sonho tem o mesmo efeito. Por isso a nossa sociedade (ou melhor: quem a governa) continuará a ser modernista, iluminista, progressista, racionalista, etc. Só que depois não será mais possível queixar-se da expansão do “populismo”.

 

Ipse dixit.