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O novo modelo chinês, o nosso futuro

O tema da “economia digital”, da “sociedade digital”, do “governo digital”, do “dinheiro digital” e de tudo o que inclui “digital” é cada vez mais presente nos principais meios de comunicação assim como no mundo da informação alternativa: medo e preocupação são acompanhados pelas perspectivas das novas oportunidades trazidas com a introdução da tecnologia da informação (IT, Information Tecnhology).

A rápida disseminação da IT implica riscos significativos: o fortalecimento da exploração humana por parte das empresas, o estabelecimento dum controle rigoroso sobre o comportamento humano, a perda da privacidade. Há o sério risco de desmantelar o que resta do Estado nacional, substituindo-o pelo chamado governo digital, atrás do qual pode ficar um governo mundial que representa os interesses dum grupo muito pequeno de pessoas: na prática, uma oligarquia constituída pelas elites. Alguns autores apontam para termos quais “ditadura digital”, “campo de concentração eletrónico”, “escravidão digital”.

Tudo isso é interessante mas não deixa de ter um defeito: por causa da nossa visão ocidental-cêntrica, é comum a opinião de que o epicentro da revolução digital é e será o Ocidente. Isso enquanto a realidade mostra outra verdade: a China é o líder na construção da sociedade digital. E os planos de Pequim estão aí para demonstrar isso.

China: o modelo para o futuro

A ideologia oficial na República Popular da China refere-se à construção do “socialismo com traços chineses”: na realidade o País está a construir “o Capitalismo com traços chineses”, pois a retórica socialista é apenas um disfarce. Este jovem Capitalismo (ao contrário do ocidental) é criado a partir do zero, num terreno virgem e fértil, onde até poucas décadas atrás reinava a utopia comunista. Arrumados Marx antes e Mao depois, Pequim atirou-se para o mercado, não de forma desconsiderada, mas à moda chinesa: com juízo e um pormenorizado planeamento, onde as mais recentes tecnologias de informação, comunicação e social desenvolvem um papel de grande interesse. Ao ponto que o Capitalismo digital chinês pode, de alguma forma, tornar-se um modelo para o velho Capitalismo ocidental. E temos que acrescentar: infelizmente.

Os chineses são mais abertos quando o assunto forem as inovações técnicas; muito mais aberto de que europeus ou americanos. Assim, os alemães estão muito relutantes em desistir do dinheiro físico, enquanto os chineses de hoje estão prontos para livrar-se dele completamente. Um jovem chinês, que mora numa grande cidade, considera os cartões de crédito e de débito como algo ultrapassado, sendo normal utilizar aplicativos num smartphone ou tablet. Portanto, o volume de negócios do pagamento móvel (pagamento gratuito em dispositivos móveis) na China em 2017 foi de cerca de 5.5 triliões de Dólares. Tanto para comparar: nos Estados Unidos apenas 112 bilhões de Dólares foram pagos com smartphones, quase cinquenta vezes menos, apesar da população dos Estados Unidos ser menor que a da China em quatro vezes. Um dos serviços de pagamento mais populares, o Alipay (do Grupo Alibaba), permite que os chineses morem na cidade sem carteira ou cartão de crédito: paga-se tudo com smartphone, tanto os serviços quanto os bens materiais, como comida no mercado.

De acordo com muitos parâmetros de desenvolvimento do IT, o sistema chinês supera actualmente também os Estados Unidos e os Países do Velho Mundo. E nada é deixado ao acaso: todo o processo está a desenvolver-se de acordo com uma ordem planeada (o que é muito chinês).

TANSTAAFL

“Uma maravilha!” podemos pensar. Mas será mesmo? Como costuma dizer-se nos Estados Unidos: TANSTAAFL, acrónimo de There ain’t no such thing as a free lunch, em bom português “não existe almoço grátis”. E parece não existir mesmo.

Vários anos atrás, a combinação verbal “sistema de crédito social” começou a ressoar na China. Consiste em quê? Foi o Presidente Xi Jinping que explicou ao povo a essência deste sistema:

Para combater o problema da falta de credibilidade, é necessário agarrar-se firmemente à criação de um sistema de avaliação de confiabilidade que cubra a inteira sociedade. É necessário melhorar tanto os mecanismos de incentivo aos cidadãos conscientes e cumpridores da lei, quanto os mecanismos para punir aqueles que violam a lei, privando-os de credibilidade, para que uma pessoa simplesmente não ouse e simplesmente não perca credibilidade.

Traduzindo: um sistema para avaliar a segurança de cidadãos e organizações, usando vários parâmetros que utilizam meios eletrónicos de observação de massa, combinados com a tecnologia de análise de dados (Big Data). Conseguem ver o esquema?

Os parâmetros

Em 2014, o Conselho de Estado da República Popular da China publicou o documento “Sobre o planeamento da construção de um sistema de crédito social (2014-2020)”. Nele são esboçados os seguintes aspectos do comportamento humano que devem ser cobertos pelo sistema:

  1. Histórico de crédito: reflete o histórico de pagamentos e o nível de endividamento do usuário
  2. Capacidade de cumprimento: mostra a capacidade do usuário de cumprir as obrigações contratuais
  3. Características Pessoais: examina as informações acerca das características pessoais do usuário
  4. Comportamento e preferências: revela o comportamento online do usuário
  5. Relacionamentos interpessoais: as características dos relacionamentos online do usuário com parentes, amigos, conhecidos
  6. Histórico judicial

No que diz respeito às pessoas jurídicas, aqui o sistema de avaliação interna do “sistema de crédito social” reproduz os modelos que já foram testados em alguns Países ocidentais. Por exemplo, nos Estados Unidos e na Europa essas estimativas são realizadas há muito por agências de crédito; nos próprios Estados Unidos existem grandes agências de crédito onde está concentrada informação sobre centenas de milhares de organizações comerciais. As agências de crédito também gerem os bancos de dados para indivíduos que costumam utilizar empréstimos bancários. Portanto, até aqui nada de novidade.

Mas em termos de avaliações das pessoas, a China é pioneira. O “sistema de crédito social” envolve o registro de todos os cidadãos, mesmo aqueles que nunca solicitaram empréstimos. E a série de parâmetros avaliados (ao contrário das agências de crédito ocidentais) é extremamente ampla: cada cidadão recebe um certo status social, que varia de acordo com os pontos creditados para determinadas ações. Com base nestes parâmetros recolhidos, um cidadão pode ser classificado como “exemplar” ou como “marginal”.

Eis alguns dos parâmetros listados acima, mas ao pormenor:

As sanções

O documento “Sobre o planeamento da construção de um sistema de crédito social” determina possíveis sanções contra as pessoas físicas e/ou jurídicas que terão baixas qualificações, bem como privilégios para aqueles que terão altas avaliações. O conjunto de penalidades e privilégios são especificados periodicamente. Por exemplo, para indivíduos com baixa avaliação são previstas as seguintes sanções:

E esta é uma lista não completa das punições que aguardam os infratores das regras.

Os dados sobre os cidadãos serão partilhados com as autoridades municipais, agências de aplicação da lei, órgãos judiciais, bancos, organizações comerciais: tudo reunido num único centro de informações. Além disso, haverá também as informações dos sistemas de videovigilância. As cidades chinesas estão envolvidas por uma densa rede de câmaras de vigilância: o País alcançou óptimos resultados neste âmbito, permitindo o reconhecimento duma pessoa no meio da multidão.

Tencent e Alibaba, entre outros

Oito grandes empresas privadas chinesas estão associadas à implementação do projecto: são aquelas empresas que dispõem de poderosos bancos de dados e que estão a trabalhar para melhorar a sua IT. Entre eles temos Alibaba e Tencent. Essas empresas são líderes no campo das tecnologias financeiras, não apenas na China, mas também no mundo: os serviços de pagamento móvel Alipay e WeChatPay representam 90% do mercado de pagamento móvel na China.

A Tencent é conhecida no Ocidente por causa do seu antivírus gratuito (que rouba informações do utilizador: TANSTAAFL) e do desenvolvimento de jogos. Mas a Tencent é muito mais do que isso: possui o sistema de mensagens WeChat, que é usado por 500 milhões de pessoas e que permite não apenas trocar informações de texto, áudio e vídeo, mas também fazer transações monetárias.

Alibaba é a maior plataforma de comércio online (AliExpress: vendas anuais de mais de 23 bilhões de Dólares), usada por 448 milhões de chineses. Mas, como no caso da Tencent, Alibaba é muito mais do que isso: é um universo (estive quase para alojar Informação Incorrecta num server de Alibaba… depois arrependi-me e fiquei com os serviços do Velho Continente).

O rating dos cidadãos

Mas voltemos ao sistemas de pontuação. Como funciona? As informações recebidas sobre cidadãos e empresas são enviadas para um único centro onde são processadas usando a tecnologia Big Data. A classificação assim obtida é de domínio público e pode ser alterada de acordo com o comportamento online. A classificação de base prevê 1000 pontos e é atribuída a todos os cidadãos que entram no sistema. Quando o “sistema de crédito social” funcionar a plena capacidade, todos os recém-nascidos receberão os mesmos 1000 pontos. E no momento da morte, todos os chineses terão uma classificação que dependerá da maneira como uma pessoa é acompanhada na última viagem.

O rating dos cidadãos serão mais ou menos como aqueles utilizados hoje pelas agências ocidentais de rating, tais como Standard & Poor’s, Moody’s e Fitch, que avaliam a situação financeira dos Estados:

E as pessoas com rating D são os párias, que não receberão créditos, às quais não serão vendidas passagens de avião, que não serão aceites para muitos tipos de trabalho.

Mas aqui há a boa notícia: um cidadão consciencioso pode aumentar a sua classificação com um comportamento “correto”. Como? Por exemplo com a delação. Um cidadão que informa a agência sobre o comportamento “errado” de um vizinho ou dum colega, recebe pontos. Vice-versa, não reportar o comportamento “errado” é qualificado como “conivência” e é punível com uma dedução dos pontos.

Um chinês ansioso para aumentar a sua classificação deve entender com quem pode ou não pode lidar, e também como lidar: com algumas pessoas é possível interagir, com outras não. Entrar em contacto com uma pessoa que tem o rating D é arriscado, pois no mínimo levanta dúvidas: se a interação de um cidadão com uma pessoa do grupo D for de natureza regular, tal cidadão pode ser enquadrado na categoria de marginalizado.

Possível?

Como é possível que um inteiro País se submeta a um sistema de controle tão apertado e invasivo? É difícil entender este ponto sem considerar a história da China durante as últimas décadas. O País sai duma dura ditadura comunista, durante a qual havia apenas um órgão capaz de tomar decisões: o Comité Central. Esta mentalidade ainda persiste, apesar das notáveis aberturas para o exterior.

Fruto do ponto anterior é o facto dos chineses raciocinarem menos em termos individuais e mais em termos de comunidade: o Comité decide sempre em prol não do indivíduo mas da inteira comunidade. Se uma medida parece deveras invasiva, é preciso lembrar que, na óptica chinesa, ela foi analisada pelos responsáveis que a julgaram como positiva para o País: pelo que o cidadão, como indivíduo, tem que aceita-la para não prejudicar o desenvolvimento da comunidade.

Neste aspecto não é correcto fazer uma comparação com o regime da União Soviética: aí o Comunismo era imposto e mantido com a força, contra a vontade de amplos sectores da sociedade. Na China não é assim: o cidadão sente-se como parte de algo maior, acredita nisso, portanto aceita a vontade do Partido porque acredita que o Partido trabalhe para o superior bem de todos.

Isso fica patente na leitura do Comunicado do Conselho Estadual sobre o Contorno da Construção do Sistema de Crédito Social (2014-2020), distribuído em 2014: os objectivos apontam para uma melhoria da sociedade chinesa como um todo, sem espaço para o indivíduo. Melhor saúde, melhor justiça, melhor segurança para toda a comunidade; mais transparência, mais honestidade, luta à corrupção; um Estado que aconselha as empresas acerca dos preços, que fornece assistência social, justas reformas, habitação a preços acessíveis, padroniza o comportamento no emprego e na mediação profissional, incentiva as empresas a desenvolver relações de trabalho harmoniosas. Educação, comércio, turismo, trabalho rural, desporto, cultura… nenhum sector fica fora do controle do Estado.

E os resultados justificam a confiança do cidadão no partido: lentamente (mas nem tanto) o padrão de vida chinês cresce (nas cidades; nas regiões mais agrícolas o discurso muda) e hoje estamos perante a formação da primeira classe média chinesa. Algo impensável até pouco tempo atrás num País onde, ainda nos anos ’60, as pessoas morriam de fome (46-60 milhões as vítimas entre 1957 e 1961). Hoje a China é uma das maiores potências globais, até a primeira a julgar pelo volume das trocas comerciais, um País na vanguarda no sector da alta tecnologia. Como pode o cidadão criticar o partido?

Os sucessos autorizam agora a nomenclatura de Pequim a avançar com mais um passo ousado: transformar a China (um híbrido pseudo-socialista projectado no livre mercado) em algo novo, onde o papel do Estado fica enormemente fortalecido até obter um controle total sobre todos os cidadãos, marginalizando e reduzindo à impotência as vozes dissonantes.

Início: Maio de 2018

De acordo com o plano, o sistema deve ser implementado em toda a China até 2020, após uns experimentos piloto. O projecto foi lançado em 2016 com o slogan “Garantir a credibilidade para as pessoas que merecem com vantagens em tudo e limitar quem não merece credibilidade”. Que como slogan não é lá grande coisa: algo como “1984”  teria sido mais curto e adapto.

O “sistema de crédito social” está a enfrentar o teste final em várias cidades. O primeiro lote inclui Hangzhou, Nanquim, Xiamen, Chengdu, Suzhou, Suqian, Huizhou, Wenzhou, Weihai, Weifang, Yiwu, e Rongcheng. Esta última é a mais conhecida (faz parte da província de Shandong) e tem uma população de 670 mil habitantes. Nesta cidade, um único centro de informações recolhe dados de 142 instituições, analisando 160 mil parâmetros diferentes. Para aqueles que já fazem parte do banco de dados do “sistema de crédito social”, a partir de 1º de Maio de 2018 entrou em função o sistema de multas e privilégios. No mês passado, os chineses que receberam “a marca da Besta”, a letra D, já tinham sido privados de acesso a aeronaves e comboios rápidos.

O resto do mundo observa com muito interesse a experiência do “sistema de crédito social”. Nos próximos dois anos, o sistema envolverá toda a China: se funcionar, porque não exporta-lo? Já agora, as promessas do novo sistema parecem aliciantes: um Estado mais transparente, políticos mais honestos, preços mais justos, casas e saúde para todos, comércio e bancos mais sinceros… não parece um Paraíso?

Resistência por parte dos cidadãos? Claro, haverá: numa realidade como aquela europeia, por exemplo, introduzir um sistema de rating para cidadãos não será coisa simples. Mas não estamos a falar de medidas que serão introduzidas dum dia para outro: a realidade ocidental impõe medidas de amplo respiro, espalmadas num prazo bem mais alargado, numa escala que abrange gerações.

Não percam de vista o modelo chinês, porque o passar do tempo e uma boa dose de paciência fazem milagres, em qualquer lugar do mundo.

 

A integridade social é a base para a construção de um sistema de crédito social: somente os membros do sistema podem tratar uns aos outros com sinceridade e confiança, só assim podem formar uma relação interpessoal harmoniosa e amigável, para promover a civilização, o progresso social, alcançar a harmonia social e uma estabilidade a longo prazo.

(Conselho Estadual sobre o Contorno da Construção do Sistema de Crédito Social 2014-2020)

 

Ipse dixit.

Fontes: Professor Doutor Valentin Catasonov, Presidente da Sociedade Económica Russa S.F. Sharapova, em Fondsk; Concelho de Estado da Republica Popular da China: Comunicado do Conselho Estadual sobre o Contorno da Construção do Sistema de Crédito Social (2014-2020) (chinês); China Copyright and Media: Planning Outline for the Construction of a Social Credit System (2014-2020); National Development and Reform Commission – Lista do primeiro lote de cidades de demonstração para a construção do sistema de crédito social (chinês)