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A privatização não funciona – Parte II

É interessante frisar como em situações de guerra (guerra no nosso território, não as intervenções “pacificadoras” em Países desgraçados, como a Síria ou o Yemen) a mentalidade “privada” e “de mercado” é apenas perturbadora, subversiva e imoral: é preciso fazer funcionar os comboios debaixo das bombas e com eles a logística, a distribuição de energia, a reparação das infraestruturas danificadas, até mesmo a distribuição da correspondências, qualquer que seja o custo é dever do cidadão, do Estado.

O caso extremo é o racionamento estatal dos alimentos: o “livre mercado” é abolido, torna-se um “mercado negro” que merece a pena capital. Não são consideradas as possíveis ineficiências dos cartões de racionamento, o custo do preço ajustado às possibilidades do cidadão: tudo é válido e não contam os prejuízos. Evidentemente, há algo de mais moral e fundamental do que a “liberdade” privada.

O caso Mattei…

Mas mesmo em situações mais normais, é interessante notar como o trabalho do homem do Estado consista em suprimir o mercado ou reduzir o seu impacto. Quando o italiano Enrico Mattei, nos anos ’50 e ’60 do século passado, assinava acordos de dez anos com o Irão ou com a Argélia, subtraia a Itália (mas também o País produtor) às variações imprevisíveis e neuróticas do mercado “livre”: as duas partes estabeleciam um preço médio e justo, conveniente para a Itália mas também para o País produtor, que assim podia contar com previsíveis e certas receitas para os seus planos de desenvolvimento, longe da especulação e da chantagem das Irmãs (o cartel das petrolíferas privadas) e do poder financeiro que sempre as acompanha.

Subtraia o País produtor ao colapso em caso de dificuldades do mercado, prevenia o empréstimo internacional (FMI) que significa dívida, a expropriação dos poços. Obviamente Mattei foi morto num atentado do qual nunca foram encontrados os responsáveis, sinal de que tinha mexido em algo muito delicado.

…e o casamento Tesouro-Banco Central

Os bens essenciais são, quando necessário, removidos do mercado. Voltando ao caso italiano: até 1981 existia um “casamento” entre o Ministério do Tesouro e o Banco da Itália, pelo que este último era obrigado a comprar os títulos emitidos pelo Tesouro eventualmente não vendidos nos mercados. Isso acalmava os interesses exigidos pela usura internacional, poupava o aumento da dívida pública e salvaguardava a autonomia política nacional, permitindo políticas de pleno emprego (ao preço de alguma inflação, claro) e sem que faltassem fundos para programas de infra-estruturas (que o “mercado” nunca faria, sendo exigidos grandes investimentos de longo prazo).

A razão ética na base desta ideia era que o trabalho dos cidadãos (porque é o dinheiro que comanda o trabalho) não pode ser abandonado nas mãos da especulação estrangeira sedenta por lucros imediatos. O que provocou o actual sistema de dependência dos mercados internacionais que “julgam” a dívida pública de cada País; um sistema onde 98% dos bancos estão submergidos na dívida.

É este um sistema mais eficiente? Trinta anos de privatização deveriam finalmente fazer entender que o objectivo da privatização dos serviços públicos nunca foi melhorar o funcionamento dos próprios serviços, mas substituí-los por empresas com o objectivo de obter lucros. E nada mais.

É o Estado que inova

Pelo contrário, sobrevive o mito de que o Estado é burocracia e desperdício, enquanto o capital privado é o único “criativo” e promotor da inovação. O que é verdade é o exacto contrário.

Olhamos para o nosso smartphone que torna todos tão felizes. O aplicativo que permite encontrar uma estrada numa cidade desconhecida, graças a um mapa virtual (GPS), nasce como um aparelho de guia para mísseis de cruzeiro: funciona apenas graças a satélites artificiais geoestacionários em órbitas específicas, que nenhuma empresa privada jamais colocou em órbita.

A câmara digital com a qual podemos tirar selfie e aborrecer todos no Facebook foi projectada para os satélites espiões (isso porque lançar o filme com pára-quedas não era uma grande solução).

A miniaturização que faz com que o nosso smartphone fique no bolso é o resultado de pesquisas para reduzir o volume dos satélites artificiais e de ogivas de mísseis.

Tudo isso, com a própria Internet à qual o smartphone está conectado, foi inventado e concebido não por privados, mas nos laboratórios da DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency, a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada da Defesa), uma instituição do Estado americana que pertence ao Ministério da Defesa. Nenhuma empresa privada teria investido e arriscado os seus capitais no desenvolvimento de tais invenções para as quais, na altura, não havia mercado.

Depois chegaram os vários Steve Jobs e Bill Gates que acumularam milhões explorando os resultados das pesquisas militares para torna-las objectos comercias de sucesso; mas os verdadeiros génios, os que inventaram, são pesquisadores desconhecidos, agora com uma certa idade, que gozam da reforma do Estado. Eles trabalhavam para o Estado, o Estado deu-lhes instruções sobre o que queria, o Estado financiou as suas pesquisas, aquelas bem sucedidas e os fracassos também: o objectivo não era o lucro.

A iniciativa privada não trabalha assim, não tem capacidade: é por isso que Margaret Tatcher privatizou tudo mas não as indústrias de alta tecnologia, eletrónica, aeronáutica e defesa, evitando listá-las no mercado das ações para que não caíssem nas mãos de estrangeiros. A característica destas indústrias de alta tecnologia é de ser sempre umas indústrias do Estado: sempre, também nos casos de aparente propriedade privada. Porque acham que nenhum capitalista chinês ainda conseguiu entrar numa empresa estratégica como a Lockheed, a General Dynamics, a Northrop Corporation?

As industriais cruciais

Por qual razão estas indústrias (todas conectadas à defesa) são cruciais? Em primeiro lugar por causa da função no progresso técnico, ou seja, do investimento no património tecnológico nacional. Depois há o lado da defesa, pois garantes a independência do exterior em algumas áreas vitais. E depois por causa da contribuição para a balança comercial: poucos sabem que a primeira voz na exportação industrial de Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e Rússia é a aeronáutica. Podemos gostar ou não, mas um País que descarta as indústrias de alta tecnologia, principalmente aquelas relacionadas com a defesa (que, como vimos, é uma fonte de inovação), sai do mundo “que conta” e fica dependente dos outros.

O facto da inovação nascer constantemente no âmbito da industria bélica não deve surpreender: a nossa é uma espécie primitiva neste sentido, que vê na supremacia militar um valor prioritário. É algo que obriga a reflectir, mas não deixa de se rum facto. A Rússia, apesar de ter um PIB não particularmente elevado (inferior ao PIB italiano ou brasileiro), não está reduzida ao nível duma Venezuela porque pode contar com as suas indústrias militares avançadas e os seus cientistas integrados nestas indústrias do Estado. Na verdade, é um protagonista geopolítico global.

 

Ipse dixit.

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Fonte: Blondet & Friends