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Efeitos colaterais: morte

Em 2010, o médico John Virapen publicou um livro que fez história: Side Effects: Death. Confessions of a Pharma-Insider (“Efeitos colaterais: morte. Confissões dum gerente arrependido das grandes multinacionais”). Incrivelmente, este livro nunca foi traduzido em português; autor e título nem aparecem na sabia Wikipedia, independentemente do idioma escolhido.

A razão? Side Effects relata factos “indesejados”. Por exemplo, conta como a indústria farmacêutica gasta entre 35 e 40 mil Dólares por ano por cada médico em actividade com o fim de convencê-los a prescrever os seus produtos; explica como os chamados opinion leaders, cientistas e médicos de renome, são corrompidos com viagens, presentes ou simplesmente com dinheiro para falar positivamente dos medicamentos; mostra que 75% dos principais cientistas da área médica estão na folha de pagamento da indústria farmacêutica; e não esconde que a indústria farmacêutica inventa doenças, espalhadas com campanhas de marketing direcionadas para expandir o mercado dos seus produtos.

Não admira que o livro seja alvo de boicote: John Virapen era gerente de topo de uma das corporações mais poderosas e influentes do mundo, a Eli Lilly Inc. e o seu livro é uma denúncia muito pesada que não deixa margem para dúvidas. Virapen foi parte desta máquina ao longo de décadas, pelo menos até o nascimento do seu filho e do medo de que este pudesse acabar num daqueles engrenagens que ele mesmo criou e lubrificou por anos.

É nesta altura que os remorsos de consciência começam a aparecer:

Noite após noite, sombras e fantasmas se juntam ao lado da minha cama. Geralmente ocorre no início da manhã. Acordo encharcado de suor. Indiretamente contribui para a morte de tantas pessoas, os seus fantasmas hoje me assombram.

É uma denúncia que mostra a face mais perturbadora de um poder profundamente enraizado na nossa sociedade, um poder enorme cuja única finalidade é vender, vender e ainda vender medicamentos. Vende-los aos doentes, mas também vende-los a quem não precisa. A única moral tem um nome simples: dinheiro, porque como escreve Jules Romains na sua obra Knock, ou o triunfo da medicina (1923): “Uma pessoa saudável é uma pessoa doente que não sabe que está doente”. A industria farmacêutica tem esta missão: lembrar nos de que estamos doentes, mesmo quando estamos saudáveis.

Opinion leaders

John Virapen fala sobre o papel dos opinion leaders. No mundo científico, existe uma escala hierárquica precisa: os chamados opinion leaders são importantes pesquisadores, médicos, especialistas, barões universitários que a indústria farmacêutica aplaude e tenta de todas as formas. Com enormes pagamentos disfarçados de “prestações” (como a intervenção numa conferência), essas personagens colocam o seu nome em pesquisas, publicações e estudos. Na prática, eles assinam e endossam cientificamente os estudos realizados pela indústria farmacêutica, que muitas vezes nem sequer leem.

O valor de um opinion leader é incalculável: eles são os verdadeiros poderes fortes, tudo o que eles afirmam faz escola, mesmo que factos ou resultados científicos provem o contrário. A informação dispensada pelos opinion leaders é seguida por todos os médicos: são eles os chefes do rebanho, que obedece e segue sem perguntar.

Como é óbvio, o orçamento disponibilizado pelas empresas para conquistar (ou seja, subornar e convencer) um médico de renome é enorme. Mas aqui já entramos numa outra área, onde podemos encontrar não apenas os cientistas famosos mas também os médicos menos conhecidos. Uma vez recebiam flores, livros de receitas, canetas, etc. mas isso é o passado; agora há joias, licores e vinhos preciosos, perfumes de marcas, obras de arte e, por últimas mas não menos importantes, as viagens. Viajar pode fazer com que os freios inibitórios desapareçam, especialmente se o médico viaja sem a sua doce metade.

Porque os médicos são tão importantes para a indústria farmacêutica? A resposta é simples: a maioria dos medicamentos deve ser vendida com receita médica. Portanto, as receitas dos médicos têm um impacto directo no volume de negócios da indústria farmacêutica.

É por isso que a indústria farmacêutica começa a fazer proselitismo entre os médicos quando eles ainda estão na universidade, financiando os estudos para garantir apoio no futuro e influenciar as suas escolhas. Na América, as empresas gastam entre 35 e 40 mil Dólares por ano por cada médico.

Blockbuster

O termo blockbuster define um medicamento de sucesso que ultrapassa um bilhão de Dólares de vendas anuais. Mas do ponto de vista dos especialistas, um blockbuster é mais do que isso: é um medicamento cujo sucesso não é definido apenas em termos de vendas mas que apresenta uma outra característica também: é vendido a todos, não só aos doentes, mas também aos saudáveis. Na prática: o sonho de qualquer casa farmacêutica. Que o medicamento consiga tratar a doença ou que minimize só os sintomas é um aspecto completamente secundário, também porque as pessoas doentes são um mercado relativamente pequeno. O que interessa é alcançar o máximo de indivíduos.

Atingir o máximo de vendas foi precisamente o objectivo da fluoxetina, mais conhecida com o nome comercial de Prozac. Virapen participou na entrada no mercado de vários medicamentos, incluindo alguns blockbusters, mas o Prozac foi algo especial.

O caso Prozac

A Ely Lilly pagou centenas de milhares de Dólares a uma empresa especializada em branding e comunicação, a Interbrand. É uma prática bastante comum desembolsar um rio de dinheiro para encontrar o nome de um novo produto: cada modelo de automóvel, de iogurte, de sabão, etc. tem que ter um nome apropriado, que atraia o consumidor, que transmita uns conceitos e que ajude as vendas. No caso do Prozac, este nome abstrato combina o prefixo positivo “pro”, derivado do grego e do latim, com um breve sufixo que evoca eficiência.

A fluoxetina pertence à família dos chamados SSRIs (inibidores selectivos da recaptação da serotonina) que, na prática, servem para evitar a reabsorção natural da serotonina no cérebro, porque uma reabsorção excessiva altera o equilíbrio do neurotransmissor. No final dos anos ’80 apenas pacientes em tratamento psiquiátricos assumiam medicamentos semelhantes.

Ao estudar o novo fármaco, foi encontrado um efeito colateral que os líderes da indústria farmacêutica identificaram como muito interessante e potencialmente lucrativo: algumas pessoas perdiam peso. O grande problema era conseguir aprovar o medicamento como uma pílula para emagrecer. A Ely Lilly estava com pressa e não podia esperar, então decidiu pedir a aprovação apenas como antidepressivo. Isso também porque, uma vez que a droga estiver no mercado, é muito mais fácil estender a licença para outros usos terapêuticos, um truque normalmente usado pelas empresas. Na Suécia, por exemplo, um procedimento de aprovação pode durar até sete anos: demasiado tempo para aqueles que têm fome de dinheiro.

Virapen conseguiu subornar o psiquiatra que tinha que escrever o relatório final para a agência de controle. O psiquiatra estava contrário ao Prozac, mas 20 mil Dólares em dinheiro e uma comissão que também abrangia os colegas conseguiram o milagre: a fluoxetina foi aprovada. A palavra “suicídio”, que constava dos documentos preliminares, desapareceu por completo. Porque houve suicídios durante os testes clínicos do Prozac, e nos testes subsequentes (de 1995) a taxa de suicídio até foi seis vezes maior. A Ely Lilly sabia disso? Claro que sim, mas escondia os dados. Os casos de morte durante os ensaios clínicos são armazenados pelas empresas farmacêuticas como segredos comerciais e, por isso, não podem ser divulgados: todo o mecanismo é projetado para proteger a indústria farmacêutica, não as pessoas.

Quantos pacientes experimentaram o Prozac antes deste ser aprovado? Durante quanto tempo? Hoje conhecemos os dados: 286 pessoas foram os tester, 86% dos quais experimentaram o Prozac por menos de 3 meses. Um dos medicamentos mais vendidos do mundo só foi testado por 286 pessoas durante algumas semanas. As verdadeiras cobaias são os pacientes, não os voluntários dos ensaios.

E, uma vez no mercado, começa a procura dos pacientes. Uma mudança de humor torna-se “depressão” e o número de pacientes dispara: dum dia para outro, milhões de pessoas saudáveis e só um pouco “em baixo” são transformados em doentes. O Prozac nem teve que esforçar-se para fazer emagrecer as pessoas: já era um blockbuster como antidepressivo.

Pena que o Prozac tivesse alguns efeitos colaterais: pesquisas feitas pela própria Ely Lilly mostraram que os danos colaterais envolveram 90% dos sujeitos e que, em 15-20% dos casos, os efeitos secundários eram constituídos pela doença que o Prozac deveria ter tratado (a depressão). Para tratar da depressão tomava-se um fármaco que provocava depressão. Depois havia um outro efeito colateral, ainda mais aborrecido: o impulso homicida/suicida. Não é por acaso que a maioria dos massacres ocorridos sem justa causa nas escolas americanas foram realizados por pessoas tratadas com estes medicamentos (Prozac , Paxil, Zoloft, etc). São fármacos que podem arrasar a vontade e a iniciativa dum sujeito, mas podem também provocar pensamentos suicidas e violentos.

Analisando os dados disponíveis, a conclusão é que 250.000 pessoas tentaram tirar as suas próprias vidas depois de tomar Prozac; e cerca de 25.000 conseguiram. E esta é uma estimativa de 1999.

Funcionam? E como?

Problema: as estatísticas. O que significam 25 mil suicídios no universo dos pacientes tratados com Prozac? Significam pouco, muito pouco: apenas uma ínfima percentagem, que não motiva o abandono deste remédio. Apesar de não saber ao certo como é que este tipo de medicamento funcione e apesar de saber que não é tão eficaz como assumido.

Angelo Barbato, pesquisador do Laboratório de Epidemiologia e Psiquiatria Social do Instituto de Pesquisa Farmacológica Mario Negri de Milano (Italia):

Ainda não sabemos exatamente o que está por trás da depressão, há hipóteses: sabemos que os antidepressivos têm efeito em alguns neurotransmissores. Sabemos que são inibidores da recaptação de serotonina ou norepinefrina e isso sem dúvida está relacionado à depressão; mas não é provado que a causa da doença seja diretamente devida a esse mecanismo. Ainda há muitas coisas para entender, e ainda estamos longe de ter entendido como funciona o cérebro de uma pessoa deprimida.

Uma coisa é certa: a pílula da felicidade não existe, e mesmo em pessoas deprimidas os medicamentos nem sempre dão os resultados desejados. Em alguns casos podem induzir melhorias e até remissão, mas nas formas mais leves o efeito é praticamente comparável ao dum placebo. Como vários estudos científicos demonstraram e como já tinha sugerido no final dos anos ’90 o psicólogo americano Irving Kirsch:

Há uma alta taxa de pessoas que por razões não completamente claras não respondem ao tratamento. São 30% ou mais das pessoas com depressão, que fazem terapia medicamentosa sem obter nenhum benefício, provavelmente por motivos individuais . Além disso, uma parte substancial do efeito desses medicamentos é na verdade um efeito placebo; e, finalmente, deve-se considerar que esses produtos são mais eficazes em depressões graves do que nos casos médios e ligeiros. Uma depressão pode ter níveis muito heterogéneos de gravidade e um percurso muito diferente: pode durar muito tempo ou estar ligada a um evento específico, pode comprometer o funcionamento social ou não. Não temos evidências convincentes acerca da eficácia desses medicamentos em depressões abaixo de um certo limiar de gravidade. Em formas mais leves, não é demonstrado que funcionem melhor do que um placebo. Mas são prescritos na mesma, também naqueles condições em que não é provado que possam proporcionar benefícios.

O que está em causa aqui não é a criminalização dos antidepressivos ou dos medicamentos no geral. Os fármacos, se utilizados com os cuidados do caso, têm efeitos benéficos e tratam dos problemas de saúde, combatendo as doenças. Não podemos abraçar uma cultura retrógrada que recusa os avanços da Ciência, porque estes existem e nega-lo é absurdo.

O que deve ser criminalizado é o método de prescrição: o livro de John Virapen não é um acto de acusa contra os fármacos mas contra as empresas farmacêuticas aos olhos das quais o medicamento é apenas o meio para gerar lucros. A doença passa em segundo plano, tal como o bem-estar do paciente: vender o medicamento é o único objectivo. Afirmar que um medicamento ineficaz ou até prejudicial será naturalmente eliminado do mercado pela lei da concorrência significa não entender como funciona o mercado, quais o volume de interesses em jogo e o tamanho dos esforços envolvidos.

A palavra -chave é “lucro”. É em nome do lucro que os médicos são corrompidos; é em nome do lucro que são prescritos medicamentos também nos casos em que não são precisos; é em nome do lucro que são escondidos os resultados de testes que demonstram a perigosidade de determinados produtos farmacêuticos. E é sempre em nome do lucro que Side Effects: Death. Confessions of a Pharma-Insider não está disponível para os Leitores de língua portuguesa.

 

Ipse dixit.

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Fontes: Linkiesta, Uno Editori, Il Corriere della Sera,