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A Nação e as mentiras da globalização

O futuro globalizado prevê a extinção de determinados conceitos, entre os quais há aquele de “nação”. Pelo que, não admira que a “cultura” dominante tente erradica-lo do pensamento das pessoas. O “progressista” New York Times, por exemplo, publicou há algumas semanas um vídeo cuja função é explicar a razão pela qual a ideia de identidade nacional é uma mentira. Com êxitos penosos. Eis um excerto do texto:

A nacionalidade é um conceito muito poderoso. Nós lutamos pelo nosso país, o apoiamos no desporto e dele retiramos os nossos valores. É um dos principais critérios para nos definir. Mas nem sempre foi assim. Até recentemente, a nossa identidade derivava de elementos que estão muito mais próximos de nós. Clã, religião e família. Se você pensar sobre isso, a nacionalidade é um conceito estranho. A ideia de que podemos nos sentir próximos de milhões de estranhos apenas de acordo com as fronteiras geográficas é bizarra. Isso porque, na realidade, a identidade nacional é inventada.

A identidade nacional é o mito por trás do mundo moderno. Mas é também o elemento que nos impulsiona em direção à ditadura, ao racismo e ao genocídio. Hoje alguns lutam para proteger a identidade nacional. Para entender porque, devemos perceber que é uma ideia nova. […] A identidade nacional criou a ideia de que um país é formado pela combinação de raça, fronteiras e língua. Os governos não podem admitir que a ideia de nação é inventada, portanto criaram uma mitologia para sustentar que a nação sempre existiu. A era moderna trouxe quatro mudanças que criaram a identidade nacional.

  1. As pessoas mudaram-se em massa do campo para as cidades, criando a necessidade de uma linguagem comum.
  2. As novas tecnologias, como impressão e trens, fizeram os países parecerem menores e mais interconectados.
  3. As guerras tornaram-se um fenómeno novo e devastador. Os países precisavam de pessoas que estivessem tão ligadas à nação para lutar e morrer em massa pela bandeira.
  4. Os governos começaram a desafiar a religião para a conquista do poder. […]

Esses quatro elementos deram origem a uma era de revoluções na democracia. Mas também criaram os conceitos de nacionalismo, militarismo e adoração de líderes.

O ataque contra a nação não é novo: já Marx tinha interpretado a nação como um projecto da classe burguesa, que, propondo-se como classe dominante, ganha o controle do Estado, do seu aparato legal e produtivo em detrimento das velhas classes feudais e aristocráticas. A nação, portanto, não constitui uma totalidade homogénea, sendo os proletários excluídos dela. Como produto burguês, a nação está intimamente ligada à dinâmica do sistema capitalista e, como tal, fracassará com a superação do capitalismo. A nação na óptica marxista é uma realidade histórico-política contingente.

Marx e New York Times do mesmo lado: o de nação é um conceito novo e falso, um instrumento nas mãos dos governos burgueses, um mito tipicamente capitalista.

A ideia “nova” tem 2.000 anos

Marx e o New York Times estão errados e entende-lo é simples. Observamos a palavra “nação”: qual a sua origem? Se o conceito for recente, o termo utilizado para defini-lo será recente também: pode existir a palavra que indica um conceito antes que este seja inventado? Por exemplo, na época de Marx não existiam termos quais “computer”, “telefones” ou “internet”.

Com surpresa descobrimos que a palavra nação tem cerca de 2.000 anos, pois deriva do latim nātĭo, termo que tem vários significados, todos bastante interligados: raça, linhagem, género, espécie, qualidade, tipo, ordem, povo, tribo, nação. Mas o conceito não foi inventado pelos Romanos: a Bíblia descreve a ideia de nação como “uma das grandes divisões naturais da espécie humana, saída das mãos de Deus criador, expressão da diversidade visível da sociedade humana na terra”. As nações são o resultado da divisão da humanidade em linhagens e povos, como fruto da superação da unidade original da raça humana.

O Gênesis fala da transição desde um primitivo universalismo para uma dispersão de povos (os três filhos de Noé, a Torre de Babel) e a Apocalipse de São João roga-se uma restauração do antigo universalismo com a eliminação das divisões entre os povos. A nação de israel nasce como uma “liga sagrada” entre as várias tribos judaicas, com bases na etnia e na religião. Será essa união cultural que mantém o povo de Deus unido, mesmo na ausência de uma forma política estável: portanto, o conceito de nação não está ligado ao de Estado e nem àquele de política.

Apesar das muitas traduções gregas que sofreu a Bíblia, os antigos gregos não importaram o termo “nação”, preferindo utilizar ethnos que, entre os vários significados, tem também aquele de “nação”. O termo ethnos indica não tanto “uma população dispersa por uma grande área, que vive em aldeias e unida por laços de sangue” mas um todo etnicamente homogéneo, com identidade política baseada essencialmente no elemento territorial. O evento que mais do que qualquer outro uniu os gregos num sentimento “nacionalista” foram as guerras persas. Sócrates distingue entre a rivalidade interna, que define como “discórdia”, e a ameaça vinda do exterior, que chama de “guerra”. A superioridade cultural e política dos gregos sobre os bárbaros promove um sentimento de união não apenas de sangue, mas também política e cultural, que serão perpetuados além da contingência persa, mesmo nunca chegando à realização de uma nação no sentido próprio, livre de conflitos internos e visando o expansionismo externo.

É no mundo romano que aparece o termo nātĭo, tal como é utilizado hoje: no princípio, o seu sentido imediato lembra a origem e o nascimento (nātĭo, nação, tem a mesma raiz de natāles e de nativitas, isso é, “nascimento”), a comunidade a que pertencemos por laços de sangue. Mas no uso romano, nātĭo é também a terra em que uma pessoa nasceu, o lugar de origem, de proveniência.

Todavia, os Romanos acrescentaram ao termo uma particularidade: a nātĭo não previa a presença de um sistema político complexo e duma civilização superior. É por esta razão que em Roma compareceu o termo pătrĭa, que pode ser visto como uma nātĭo completa do ponto de vista político também.

A nação, portanto, não é algo novo ou contingente: a não ser que a contingência possa durar alguns milhares de anos… O que Marx e o New York Times tratam é na verdade o “Estado nacional”, uma unidade realmente nova que tenta conjugar a nação com a máquina burocrática burguesa. Na altura em que Marx escrevia, de facto, o “Estado nacional” era uma construção bastante recente e era possível falar de “invenção”. Mas desde então o “Estado nacional” enraizou e hoje é normal sobrepor a ideia de Estado àquela da nação, apesar de existirem aberrações que deveriam ser corrigidas (um exemplo é a nação basca e aquela catalã, obrigadas a viver no Estado espanhol).

Rocky e o futebol

Voltando ao vídeo do New York Times, as afirmações aí contidas roçam o ridículo. A nação “nos impulsiona em direção à ditadura, ao racismo e ao genocídio”? Isso significa que sem nação não há nada disso? Parece, porque com a nação também as guerras tornaram-se um “fenómeno novo” e “devastador”, enquanto antes eram uma espécie de passatempo. Não admira que, para explicar quanto “má” é a nação, o vídeo analise Rocky IV.

Em nenhum ponto do vídeo é explicada uma coisa elementar como esta: uma nação é formada por um conjunto de pessoas que construíram costumes, tradições, histórias, formas de produzir e organizar-se num um território, conferindo-lhe uma identidade cultural. Se a família é a referência do indivíduo, a nação bem pode ser entendida como a referência das famílias. Essa identidade coletiva gera uma consciência nacional que compartilha hábitos, costumes, língua, religião e que possibilita a construção de uma história comum. Portanto, a nação realça a “unicidade” de cada grupo e a diversidade em relação aos outros grupos: dado que “diversidade” é sinónimo de “riqueza” (enquanto a plana homologação é pobreza), cada nação é uma riqueza de todos os seres humanos.

O ponto alto do vídeo:

Um estudo mostrou que qualquer país cuja seleção participa na Copa do Mundo de futebol está mais inclinado a lançar um ataque militar no exterior.

Pelo que, o verdadeiro problema não parece se a ideia de nação mas o futebol. Chegou a altura de banir os Estados Unidos da modalidade?

Ipse dixit.

Fonte: New York Times Youtube Channel