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A jaula europeia

Resumo dos últimos acontecimentos: Giuseppe Conte, próximo Primeiro Ministro italiano indicado pelo Movimento 5 Stelle e pela Lega, encontra o chefe de Estado Sergio Mattarella com o objectivo de ter luz verde para o novo governo. O 5 Stelle foi o partido mais votado nas últimas eleições enquanto a Lega foi o mais votado na coligação de Centro: juntos têm uma ampla maioria no parlamento e Conte não vai ter problemas.

O Presidente Mattarella observa a lista dos Ministros propostos e depois inviabiliza o governo. A razão? O Ministro da Economia deveria ter sido Paolo Savona.

O Ministro anti-Euro

Savona não é um recém chegado: depois de ter-se formado com louvor em Economia em 1961, iniciou a carreira no Departamento de Pesquisa do Banco da Itália, onde alcançou o posto de Diretor. Foi co-autor do modelo econométrico da economia italiana M1BI. Especializou-se em Economia monetária e Econometria no Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde trabalhou com o Nobel em Economia Franco Modigliani. Completou as pesquisa na Secção Estudos Especiais do Conselho de Governadores do Sistema da Reserva Federal em Washington DC, onde estudou o funcionamento do mercado monetário na Itália. Mais tarde deixa o Banco da Itália para ensinar política económica nas Universidade de Cagliari, Perugia e Roma (Italia), enquanto na Universidade telemática Guglielmo Marconi (Milano) funda o doutoramento em Geopolítica. Foi também editor científico das revistas Economia Italiana, Journal of European Economic History e Review of Economic Conditions in Italy.

Um curriculum assinalável. Mas Savona tem um problema: pensa com o seu cerebrinho. E por entender como funciona o sistema monetário, é contrário ao Euro, havendo já criado um plano para a saída da moeda única. Vice-versa, Mattarella é um servo de Bruxelas. Aliás: de Bruxelas (sede da União), de Berlim (Angela Merkel) e de Frankfurt (Banco Central Europeu).

O americano Paul Krugman, Nobel da Economia, escolhe Twitter para lançar duras críticas à decisão do Presidente Mattarella:

É realmente horrível: não há necessidade de ser populista para ficar horrorizado com o facto de que os partidos que obtiveram um claro mandato eleitoral foram excluídos porque queriam um ministro da economia eurocéptico. A confiança na moeda única supera a democracia? Realmente? As instituições europeias já sofreram por falta de legitimidade devido às deficiências democráticas. Isso só vai piorar as coisas.

Os servos europeístas

Mattarella não quer saber da democracia. Os dois partidos juntos teriam representado a maioria dos eleitores italianos no Parlamento? E eis que Mattarella nomeia como Primeiro Ministro “temporário” (pois novas eleições são inevitáveis) alguém que ninguém votou, tal Carlo Cottarelli, que nem de perto e nem de longe tem um curriculum parecido com o de Savona. Mas Cottarelli tem outro dom: desde 1998 trabalha no Fundo Monetário Internacional. Mattarella envia assim um claro sinal para Bruxelas: “Tranquilos, está tudo controlado”.

Tudo isso pode parecer apenas um “caso” italiano, mas não é. Paolo Savona foi entrevistado após a decisão de Mattarella e entre as suas frases há uma com uma importância particular:

Se não tivesse tido vetos inaceitáveis, porque infundados, o governo Conte poderia ter contado com o apoio de Macron.

Macron, o Presidente francês? Sim, ele mesmo.

Depois de ter sido indigitado pelo Movimento 5 Stelle e pela Lega, Conte foi chamado por Macron que expressou “impaciência por trabalhar em conjunto”. Portanto, Savona confirma o que já era conhecido: o governo ao qual Mattarella negou a luz verde poderia ter contado com um importante aliado na Europa. De facto, Macron estava ansioso por participar com Conte (e com o Ministro Savona) na próxima reunião europeia em Bruxelas, para exercer uma efectiva pressão sobre a Alemanha. Isso porque Berlim não tem a mínima intenção de mudar a sua atitude em relação à Zona Euro: sobretudo não quer viabilizar políticas fiscais de expansão.

A França tem as mesmas necessidades da Itália: pôr outra vez a funcionar o tecido empresarial, aligeirando a pressão fiscal. Havia a esperança de isolar a Alemanha com uma estratégia unificada de Paris e Roma. Assim, Mattarella agiu em favor de Berlim, frustrando um plano sério e razoável para reformar a Zona Euro.

E hoje o Comissário Europeu para o Orçamento, Gunther Oettinger, declarou: “Os mercados ensinarão aos italianos a votar da maneira certa”. Mais logo, o simpático Comissário tentou explicar melhor as suas palavras:

A minha preocupação e expectativa é que as próximas semanas mostrem que a evolução dos mercados e da economia da Itália vai tornar-se tão abrangente que pode tornar-se um sinal para os eleitores para, afinal, não votarem em populistas da direita e da esquerda.

Pior a emenda que o soneto: o obtuso Oettinger confirma que na nossa democracia as escolhas devem ser feitas tendo como base “ideológica” apenas o mercado. E quem não pensar assim é um “populista”, nem importa se de Direita ou de Esquerda.

A democracia impossível

O golpe branco em curso na Itália mais uma vez mostra que a democracia no sistema capitalista financeiro é apenas o disfarce dum regime oligárquico dominado pela lobby financeira e submetido às directivas estrangeiras originárias de Bruxelas, Berlim, Frankfurt (sede do Banco Central Europeu) e Wall Street.

Por outro lado, espreitar e analisar o mito da União Europeia significa entender que a União não é como aparece na retórica dos apoiantes mas o que realmente é: uma estrutura oligárquica, dilacerada pela corrupção, construída sobre a negação de qualquer soberania popular, o que impõe um regime de privilégios para alguns de obrigações para todos os outros, tudo de acordo com o modelo económico neoliberal.

Na Itália, como na França, na Espanha ou na Bélgica, os governos de Centro-Direita e de Centro-Esquerda apenas defendem os interesses de uma oligarquia financeira em desacordo com os desejos, as esperanças e as aspirações dos povos, estes cada vez mais irritados pela supressão dos direitos, os salários, cansados pela degradação permanente das condições de trabalho, frustrados com a visão de uma classe política que opera sistematicamente contra eles e em defesa dos interesses dos grandes potentados financeiros. Os últimos acontecimentos da situação política italiana demonstram isso de forma nítida e deixam claro que não é possível fugir da jaula de regras construídas especificamente para remover a soberania dos povos. A estrada traçada por esta pseudo-democracia é um beco sem saída.

Na Europa a estrutura de poder é vertical e tem um movimento de cima para baixo, com o fim de administrar os interesses comuns da oligarquia: a Alemanha é o garante da hegemonia sobre o resto dos Estados europeus. Ir contra este sistema significa ser rotulado de “populista, retrógrado e fascista”. Conseguir um bom número de votos dos eleitores significa esbarrar contra o guardião europeísta de turno. Os governos que emergem das eleições podem ser de Direita ou de Esquerda, tanto faz: limitam-se a cumprir as directivas de Bruxelas e de Frankfurt, pagar dívidas, limitar a capacidade de intervenção do Estado, reduzir os direitos sociais, privatizar os bens e os serviços públicos, reformar o mercado de trabalho com base nos preceitos neoliberais.

Em suma, os governos eleitos devem assumir, gostem ou não, o projecto neoliberal. É um programa que expressa a aliança entre as classes dominantes, a nova burguesia sem nacionalidade e cosmopolita, globalizadas e bem organizadas na defesa das instituições europeias, garantidas pelo hegemonia da Alemanha e da oligarquia em Bruxelas.

Mas tudo isso faz emergir uma vez mais a crescente incompatibilidade entre o sistema hipercapitalista e os direitos sociais e políticos fundamentais. Reaparece o que já foi definida como a antiga e não resolvida contradição entre democracia e capitalismo. Este é o lado obscuro do triunfo político do neoliberalismo imposto pelo poder central: a degradação constante das democracias.

O sistema imposto pelo hipercapitalismo é um modelo social baseado essencialmente na emergente desigualdade social, na precariedade do trabalho, na extensão do trabalho mal pago e na exploração das massas de jovens e idosos. O que assusta é que este é um modelo estático: o poder para poucos, a pobreza para os demais. O único movimento possível é o progressivo empobrecimento das massas. Não há no horizonte uma visão alternativa e este é um discurso ainda mais global, que vai muito além dos confins europeus.

O quadro é fosco porque se a Europa não está bem não é que nos outros continentes a situação seja melhor: o que acontece na América do Sul é bem visível, da África nem vale a pena falar, a Ásia está a construir algo mas não pode dar lições quando os assuntos forem “direitos” e “igualdade”. O tempo passa e parece cada vez mais claro que não haverá uma maneira suave para sair desta situação.

 

Ipse dixit.