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Gesell, o Copérnico da Economia – Parte II

…dizia-se: por qual motivo a economia da nossa sociedade
tem sempre que crescer? Porque estamos condenados ao eterno crescimento?

Pensando bem, árvores, crianças e galinhas crescem também. Mas há uma
diferença: árvores, crianças e galinhas não crescem indefinidamente, há
um limite. Os processos de crescimento natural são normalmente marcados
por um forte crescimento inicial, que diminui com o tempo para
estabilizar-se num nível constante. Não há galinhas que crescem para ficar tão grandes quanto
torres. E se a Natureza não fez as galinhas altas como prédios deve existir uma razão. A razão é que, na Natureza, o crescimento
ilimitado é destrutivo como o câncer e nunca é a base de processos
estáveis.

Somente a economia parece imune a esta lei natural: deve continuar a crescer, sempre. Porquê?

Juros e crescimento ilimitado

A
resposta tem um nome: “juros”. Sim, ainda e sempre eles. E espantem-se: esta coisa do crescimento ilimitado parece funcionar, no sentido que todos estamos convencidos de que a economia tem que crescer, sempre. E funcionará pelo menos até quando houver
uma população suficientemente ingénua, mal informada ou desinteressada que consegue acreditar nesse absurdo e
perverso mito.

Trata-se dum crescimento compulsório
imposto pelo sistema capitalista, que destrói o ambiente, afecta a
estabilidade da comunidade, produz crescentes desequilíbrios sociais.

O
juro sobre o capital emprestado é a razão pela qual aqueles que possuem
instrumentos financeiros ficam mais ricos mesmo enquanto dormem, e
aqueles que vivem apenas do trabalho tornam-se cada vez mais pobres. É por causa dos juros que o sector financeiro corre enquanto o económico rasteja: a
actividade financeira é a verdadeira fonte da grande riqueza e cresce três ou quatro vezes as taxas da economia real.

Esse crescimento deve
ocorrer às custas da produção real, uma vez que o primeiro (o crescimento financeiro) não produz
nada, mas retira a prosperidade daqueles que a produziram com o
trabalho, sobrecarregando-a com um crescente endividamento.

As soluções

No livro “A Ordem Económica Natural”, Gesell fornece uma nova teoria do dinheiro, baseada em quatro factores principais:

Absurdo? Na nossa sociedade sim, completamente absurdo. Mas
Gesell estudou os problemas subjacentes ao dinheiro e percebeu que
existem três contradições fundamentais no actual sistema monetário:

  1. o dinheiro é uma propriedade pública e também privada.
  2. o dinheiro é um meio para transferir o valor e também um instrumento para preservá-lo.
  3. os créditos são dinheiro.

Vamos ver esses pontos com mais detalhes.

Dinheiro: uma instituição pública

Gesell
observou que, se o dinheiro é uma instituição de direito público (isto
é, um bem emprestado a todos com o objectivo de facilitar as trocas
económicas), não pode simultaneamente ser um bem privado. As
instituições públicas estão disponíveis para todos, mas ninguém pode
usá-las para os seus próprios fins: qualquer obstáculo causado a uma
instituição pública impede o seu uso por parte de outros. E nem podemos esquecer que qualquer uso
duma estrutura pública envolve custos, que os usuários pagam directa ou
indirectamente.

Então, quando temos uma nota na mão, surge em primeiro lugar o problema da
propriedade física da mesma. Depois, o bom senso de Gesell chegou à conclusão
de que o dinheiro, como instituição pública, tem que ter um custo de
utilização a ser pago aos cofres públicos.

Lembramos: o dinheiro é apenas um
símbolo de valor, não é valor em si. O dinheiro é um conceito, útil como
uma unidade e uma ferramenta para medir o valor. Mas não deveria ser possível
comercializa-lo. A farinha pode ser comercializada, mas não o quilo, que
mede o peso da farinha; a gasolina pode ser comercializada mas o litro, que é a unidade de medição da gasolina, não. O dinheiro é a unidade de medição do valor (ou da riqueza, tanto faz): como pode ser comercializado? Esta é uma contradição do nosso sistema.

Quando temos uma nota de 50 Euros na mão, é nosso o valor (a riqueza) dos
50 Euros mas não o meio físico que os suporta, a nota em si, que
pertence a todos. É um pouco como ter a propriedade da carga de um
camião: é nossa a carga, não o camião que é alugado e deve ser
devolvido.

Agora, esta ferramenta que é o dinheiro faz
parte dum sistema monetário que tem um problema: a velocidade da
circulação monetária não é constante. Se, por exemplo, uma nota de 50
Euros muda de mãos 20 vezes por ano, isso gera um poder de compra de
1.000 Euros: a nota é utilizada 20 vezes para fazer compras (50 x 20 = 1.000). Se for trocada 40 vezes, o volume de negócios
que gera é de 2.000 Euros (50 x 40 = 2.000). Isso significa que a mesma ferramenta (a nota de 50 Euros) dobrou
o seu poder de compra apenas ao girar de forma mais rápida (40 vezes em vez que 20).

Acontece que no nosso sistema monetário um indivíduo pode interromper este fluxo, prejudicando a economia, e no final até receber um prémio em vez que ser penalizado. Absurdo? É, mas é o que acontece. Ao acumular dinheiro, interrompemos arbitrariamente a velocidade de circulação da moeda e prejudicamos a economia: a moeda não será trocada nem 40, nem 20 mas 0 vezes, gerando um poder de compra igual a zero. O que acontece à pessoa que interrompeu este fluxo, guardando o dinheiro na sua conta bancária? Paga uma penalidade? Não: recebe um prémio, os juros.

É esta a actividade dos bancos: retiram da circulação dinheiro e para desbloqueá-lo pedem o tal prémio (juros). Portanto: os juros são dinheiro não gasto em mercadorias. Consequência directa: os juros são também desemprego, porque menos mercadoria adquirida significa menor produção o que comporta menos lugares de trabalho.

A taxa de utilização sobre o dinheiro

Gesell
percebeu que um mecanismo que obrigasse a circulação da moeda
produziria uma tendência
marcada para o pleno emprego:

mais dinheiro em circulação = mais compras = mais produção = mais lugares de trabalho

Gesell chegou à conclusão de que o
dinheiro teria fluído de forma mais regular quanto mais fosse desejável possuir bens e
mercadorias em vez que dinheiro: menos acumulação e mais circulação. Para obter isso, o capital financeiro guardado
deveria causar custos, não juros. O que tornaria mais lucrativo
investir, emprestar sem juros ou gastar o capital em mercadorias. A palavra de ordem deve ser: impedir que o capital seja retirado do mercado e utilizado por parte de poucos para acumular riquezas com o mecanismo dos juro.

Como explicou o mesmo Gesell:

Em
vez de dar um prémio (chamado juros) àqueles que têm mais dinheiro do
que precisam, eles devem pagar uma pequena taxa (taxa de utilização) se mantiverem o
dinheiro fora da circulação.

Dinheiro
obrigado a circular para criar mais riqueza significa, como vimos, mais compras de mercadorias, mais
lugares de trabalho. Afinal: plena ocupação.
  
Foi isso que fez de Gesell o Copérnico da Economia, é isso que significa a frase “a função do dinheiro é servir o ser humano e não, ao contrário, o homem servir o dinheiro”. Com o novo tipo de moeda proposto por Gesell,
praticamente foi inventado o sistema anti-usura, encontrando o remédio
para boa parte dos nossos problemas económicos. Com essa nova ferramenta, a libertação definitiva da economia do polvo do capitalismo financeiro não é uma utopia, mas uma meta
concreta. É o fim do Capitalismo entendido como
“acumulação de capital”, é o triunfo do livre mercado, livre dos dogmas
do Capitalismo.

Décadas mais tarde Keynes, na sua “Teoria Geral”, considerou
perfeitamente possível que com um dinheiro não “guardado” os juros
pudessem desaparecer no prazo duma geração e achou esta “a maneira mais
racional para livrar-se das formas mais repugnantes do Capitalismo”.

Dinheiro que circula e rendimento de cidadania

Como afirmado, a ideia de Gesell era solicitar uma taxa pelo uso privado dum bem público
(o dinheiro): desta forma, o dinheiro não utilizado teria começado a perder valor (pois gravado pela taxa). A taxa, obviamente, teria entrado para os cofres do Estado, compensando assim o poder de compra não gerado pela circulação do dinheiro. Esta taxa sobre o dinheiro “parado” teria substituído os normais impostos e financiado o Estado. Como consequências, quase todo o dinheiro
seria mantido em circulação, reduzindo as taxas de juros a
quase zero.

Além disso, uma taxa solicitada pelo
Estado para o uso privado do dinheiro representaria também uma sólida fonte para estabelecer um decente rendimento de cidadania
(outra invenção de Gesell): uma vez pagos os serviços do Estado, o dinheiro gerado pela taxa seria divido entre todos os cidadãos.

Vale a pena aqui lembrar o conceito segundo o qual o dinheiro é uma instituição pública e, como todas as instituições públicas, tem custos de utilização. Uma taxa paga à comunidade pelo uso do
dinheiro é como pagar o bilhete do autocarro: é a mesma coisa. É uma taxa necessária porque
os outros mecanismos de fluxo monetário, como taxas de juros e inflação-deflação, falharam
completamente. Quando a
inflação é baixa, o dinheiro é retido. Isso aumenta as taxas de juros e
o fluxos de dinheiro para investimentos de curto prazo, aumentando a
necessidade de dinheiro. Isso obriga o banco central a emitir mais
dinheiro, produzindo inflação, para baixar as taxas de juros. O dinheiro é então
mantido até que as taxas subam. Etc., etc.

Um exemplo histórico: as Bracteatas

Mas uma moeda que “custa” pode funcionar? Na verdade já funcionou. Reza a sábia Wikipedia:

Em algumas regiões, as bracteatas foram desacreditadas (“verrufen”) em intervalos regulares (em Magdeburgo no século XII, duas vezes por ano), pelo que tiveram que ser trocadas por bracteatas novas. Durante este processo, quatro moedas antigas tiveram que ser mudadas, por exemplo, por três novas. A perda da quarta moeda era conhecida como o dinheiro de impacto (“Schlaggeld”) e foi com frequência o único imposto que recolhiam os governantes (Renovatio monetae).

O dinheiro de impacto gerou o efeito de aumentar a velocidade da circulação do dinheiro. Através da desacreditação, o dinheiro resultou pouco atraente como ativo e sua função como meio de trocas universal foi reforçada (função dupla de dinheiro). Acumular ativos monetários (bracteatas) foi considerado pouco interessante, pelo que se reforçou o investimento em propriedade, o que gerou uma busca de artesanato e artes. O resultado deste processo foi o período de desenvolvimento mais importante na história alemã. Nesse momento, as diferenças sociais eram tão equilibradas como depois nunca mais se conseguiu no curso histórico.

Bracteatas: nada de juros, nada de acumulação, mais circulação, mais investimentos, mais trabalho, mais equilíbrio social. Este é um facto, não uma teoria.

Voltemos para o início da nossa conversa: fica claro agora por qual razão Silvio Gesell é (e permanecerá) um emérito desconhecido?

Ideias como “o dinheiro pertence à comunidade”, “a acumulação é negativa”, “os juros são simples usura e prejudicam a economia”, “os clássicos instrumentos quais inflação/deflação e controle da taxa de juros falharam redondamente” são ideias revolucionárias, autênticas blasfémias que a nossa sociedade recusa em bloco. São conceitos que apoiam em pleno o livre mercado mas destoem o Capitalismo: são
extremamente perigosos para as estruturas tradicionais de poder. E, por isso, na nossa sociedade devem ser combatidos.

Anexo I : Capitalismo e livre mercado

Só um esclarecimento, mas fundamental para entender Gesell.

“Capitalismo” não é sinónimo de “livre mercado”. Embora os termos sejam normalmente utilizados como se indicassem a mesma coisa, nas verdade estão aos extremos opostos. O Capitalismo (para o qual em boa verdade não é fácil encontrar uma definição acerca da qual todos possam concordar) é a morte do livre mercado por causa da acumulação de riqueza (que retira dinheiro à produção) e, na versão da nossa sociedade, por causa dos juros (que premeia o facto de abrandar a circulação do dinheiro).

A sábia Wikipedia, tanto para confundir o Leitor, apresenta o livre mercado nos seguintes termos:

O mercado livre, no âmbito da economia de mercado, é um princípio capitalista […]

Lógico para o Leitor achar que livre mercado e Capitalismo sejam a mesma coisa. Consequência: sem Capitalismo não há livre mercado. Tudo isso é completamente falso.
  

Anexo II: O valor de Gesell na Economia

Os seguintes são julgamentos acerca das ideias e das obras de Gesell (os mais entendidos em assuntos económicos não tardarão a reconhecer os nomes aqui citados).

Prof. Dr. Irving Fisher, economista da Universidade de Yale:

O dinheiro livre pode vir a ser o melhor regulador da velocidade da circulação do dinheiro, que é o elemento mais confuso na estabilização do nível de preços. Aplicado corretamente, poderia de facto tirar-nos da crise em algumas semanas […] Sou um humilde servo de Gesell.

John Maynard Keynes, economista, membro do King’s College, Cambridge:

O trabalho principal de Gesell é escrito em termos bonitos e científicos, embora seja executado com uma devoção apaixonada e carregada de justiça social que muitos acham pouco adequado para um estudioso. Acredito que o futuro aprenderá mais com Gesell do que com o espírito de Marx.

Prof. Dr. Dudley Dillard, economista da Universidade de Maryland:

O ponto de vista de Gesell é anticlísico e antimarxista […] A singularidade da teoria de Gesell reside na sua atitude em relação à reforma social. A sua teoria só pode ser entendida considerando o seu ponto de vista geral como um reformador […] A sua análise não está completamente desenvolvida em vários pontos importantes, mas, no geral, o seu modelo não apresenta falhas.

Prof. Dr. Lawrence Klein, economista da Universidade da Pensilvânia:

Os economistas académicos estão sempre prontos para ignorar os “loucos”, especialmente os reformadores monetários. Johannsen, Foster e Catchings, Hobson e Gesell tiveram contribuições brilhantes, mas não puderam receber audiência. Espera-se que, no futuro, os economistas dêem ouvidos àqueles que possuem uma grande intuição económica.

Prof. Dr. Joachim Starbatty, economista da Universidade de Tübingen:

A ciência económica deve a Silvio Gesell um profundo olhar sobre a natureza do dinheiro e dos juros, mas Silvio Gesell sempre foi considerado um sujeito estranho pelos círculos económicos. É claro que não era professor, o que já levanta suspeitas […] O facto decisivo é que as ideias fundamentais de Silvio Gesell em relação à ordem económica são corretas e exemplares.

Prof. Dr. Oswald Hahn, economista da Universidade de Erlangen-Nuremberg:

Silvio Gesell conseguiu escrever com clareza e fazer-se entender, uma dádiva da qual os teóricos e os reformadores mais puros, assim como muitos especialistas práticos de hoje, carecem. […] Gesell desenvolveu conceitos brilhantes e foi esquecido, enquanto seus contemporâneos menos brilhantes deslumbraram várias gerações antes que a percepção das suas falsidades pudesse manifestar-se.

Portanto: Gesell como um grande da Economia, no mínimo.
Agora, vamos ver o que diz dele Wikipédia versão portuguesa:

Johann Silvio Gesell (Sankt Vith (hoje Bélgica), 17 de março de 1862 – Oranienburg, Alemanha, 11 de março de 1930) foi um comerciante alemão, economista teórico, ativista social, anarquista e fundador da Economia livre (em alemão: Freiwirtschaft).

E nada mais. Segundo a sábia Wikipedia, Gesell foi em primeiro lugar um “comerciante”. E nem uma palavra acerca das suas ideias (o link Freiwirtschaft não funciona).
Gesell tem que ser esquecido.

Ipse dixit.

Relacionado: Gesell, o Copérnico da Economia – Parte I

Fontes: no texto, Nexus, Pulso Geselino