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EUA: os últimos sobressaltos na Síria

Nos últimos dias muitas coisas aconteceram na Síria, mas pouco se fala delas.

O blog tinha relatado a instituição, por parte dos Estados Unidos, duma nova formação militar, a Border Security Force (BSF) constituída maioritariamente por curdos (e ex-militantes do Isis). Isso não deve espantar: os líderes curdos decidiram apoiar os planos de Washington na esperança de ver reconhecido o direito de implementar um Estado curdo.

O desejo em si é legítimo: os curdos são uma Nação sem terra e merecem ver realizado o sonho deles. O problema está nos aliados que escolheram: os EUA não estão minimamente preocupados com os direitos curdos, o que desejam é implementar um Estado-fantoche que consiga funcionar como posto avançado das forças árabo-israelita-ocidentais na luta contra a Síria, o Irão e, em última análise, a Rússia. Infelizmente, os curdos já devem ter-se apercebido do erro.

A Turquia tinha deixado bem clara a sua oposição ao projecto BSF, ameaçando uma intervenção armada para destruir qualquer vestígio curdo perto das suas fronteiras. Não eram apenas ameaças: no dia 21 de Janeiro, o Presidente Erdogan lançava a operação “Ramo de oliveira” enviando carros armados contra o enclave de Ifrin (território sírio) para “libertar a fronteira dos terroristas e do enclave auto-governado pelas chefias repressivas”. A Rússia dava luz verde, os tanques e as tropas turcas atacavam com a cobertura da força aérea, os EUA não mexiam um dedo para ajudar os curdos.

Na Síria temos assim a seguinte situação: um membro da Nato (a Turquia) luta contra terroristas de Al-Qaeda e do Isis armados pelos Estados Unidos. No comment.

O ataque fantasma

Entretanto, o antigo CEO da ExxonMobil e hoje Secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, acusa o governo sírio dum ataque com gás de cloro no leste de Ghouta. O Presidente sírio Bashar Assad nega e, de facto, não há qualquer tipo de confirmação. No Youtube, sempre pródigo em fornecer provas forjadas, a única coisa que podemos encontrar é um vídeo no qual um bebé olha à sua volta, naquela que parece ser uma ambulância, com um expressão do género “Mas porque raio estes dois estão a tossir?”.



Definitivamente as produções estão a perder qualidade…

A intervenção de Tillerson não deve provocar espanto: os EUA chegaram a um impasse com uma táctica que nos últimos meses tem criado cada vez mais problemas. A Síria não apenas não caiu mas Assad continua no poder; a Turquia quase pode ser considerada um ex-aliado, tendo fortalecidos os laços com a Rússia e afastando-se de israel; o Iraque viu quem realmente ajudou na luta contra o Isis (Moscovo) e quem, pelo contrário, pouco fez (EUA). Cerejas no topo do bolo: a péssima ideia de Trump acerca de Jerusalém capital do Estado de israel e a formação da BSF.

Resultado: o plano original para criar no norte da Síria e do Iraque um Estado-fantoche e lançar o ataque final contra o Irão está a ter o efeito oposto, compactando vários Países da região em volta do bloco russo. A táctica de Obama antes e de Trump depois faliu, a hegemonia árabo-israelita-americana perde terreno.

A narrativa ocidental e as rotas da China

Mas não é apenas Washington que tem que lamber-se as feridas. Todo o bloco aliado ocidental na região tem abraçado a narrativa dum Irão canalha xiita e terrorista, pensando em explorá-la para obter um acordo entre Arábia Saudita e Israel que travasse Teherão. Em troca, israel teria obtido, finalmente, a tão procurada “normalização” com o mundo sunita (o “acordo do século”). E agora?

Agora o mundo árabe filo-ocidental está preso numa “jihad” liderada pelos EUA contra os xiitas: uma
País cristão e um hebraico ditam os ritmos duma guerra contra outros árabes.

Um panorama que danifica a economia e os relacionamentos na área: Dubai, por exemplo, é essencialmente um pequeno Estado do Golfo que sobrevive comerciando com o Irão e o Paquistão; o Oman tem antigos laços com Teherão; o Kuwait tem uma forte componente xiita. Paralelamente, a área hoje inclusa no sistema do petrodólar está a reduzir-se, com a moeda chinesa cada vez mais protagonista, e no futuro as coisas provavelmente irão piorar.

Como é possível que o Golfo tenha acabado numa posição tão exposta? A resposta é complexa e deve ser procurada também (mas não só) nos complicados relacionamentos entre as várias petro-monarquias. Sintetizando ao máximo: a Arábia Saudita luta para manter a primazia na região, com a posição segundaria e dependente dos pequenos emiratos. Nesta óptica, a “cruzada” contra o Irão, com os relativos apoios de Washington e os acordos com israel, servem mesmo para isso: reafirmar o papel central de Riad na política do Médio Oriente árabe.

E é aqui que são cometidos vários erros de avaliação, entre os quais um dos mais graves foi apostar no novo Presidente dos Estados Unidos. Trump nada entende de relações exteriores e a “entrega” de Jerusalém à israel foi a melhor demonstração disso. Trump ficou preso no abraço com israel e a Arábia, limitando ao máximo a possibilidade de diálogo; a força da Rússia emergiu, como aliado do Irão, como futuro porto para as políticas da Turquia e como forte atracção para outras realidades regionais (é o caso do Egipto, que acaba de adquirir de Moscovo mísseis SAM S300 por 1 bilhão de Dólares e 50 aviões de combate Mikojan MiG-29 por 2 bilhões de Dólares).

Um segundo erro foi não entender quão abrangentes fosse a posição do Irão, cuja importância vai muito além do Médio Oriente: atrás de Teherão não há apenas a Rússia mas também a China. Moscovo e Pequim precisam de ajuda iraniana para garantir que o projecto One Belt, One Road (ver mapa) não seja atingido por parte dos extremistas jihadistas.

Esta é a realidade: enquanto os líderes dos EUA e da Europa falam incessantemente sobre os seus planos para “conter” o Irão, a realidade é que o Irão e os seus aliados regionais (Síria, Líbano, Iraque e Turquia e, no curto prazo, Egipto) de facto “contêm” com a dissuasão militar os EUA e Israel. E o centro de gravidade económico da região, inexoravelmente, afasta-se do Golfo para a China e para o projeto euro-asiático da Rússia.

A força económica do Golfo está a completar a sua parábola. A implantação duma “pequena” força de ocupação dos EUA no nordeste da Síria (a BSF) não é uma ameaça para o Irão, tem só o poder de irritar a Turquia, afastar a solução do problema curdo (coisa, esta, que não preocupa minimamente Washington, como é claro) e, eventualmente, de acelerar a mudança dos equilíbrio em curso.

Ipse dixit.

Fontes: Left Hook, Strategic Culture, The Independent, BBC