Site icon

Quais valores? A próxima renegeração

Não poucas vezes, e não desde hoje, a nossa época é posta em relação com aquela vivida durante as últimas décadas do Império Romano. Também hoje há um sensus finis (“um senso do fim”), uma ausência de esperança, colectiva e individual, um cansaço, uma falta de vitalidade, um sentimento de impotência. Estes são clássicos sinais dum mundo em decadência.

Os “bárbaros” estão próximos, muitos já entre nós, como nos tempos imperiais.
Os Godos, os Burgúndios, os Francos, os Vândalos foram capazes de vencer o muito mais poderoso e organizado exército romano, até conquistar a capital, reduzindo a cidade ao nível duma aldeia, com 37 mil habitantes: isso foi possível porque, nos séculos anteriores, o Império e as seus estruturas institucionais e mentais tinham sido erodidas por um conjunto de factores: Cristianismo, corrupção e opulência.

Em vão os imperadores desde Diocleciano tinham tentado, até a última e desesperada tentativa de Juliano o Apóstata, erradicar pelo menos um destes problemas, o Cristianismo, com repressão e violência. O mundo pagão, corrupto até a medula por causa do poder, nada pude fazer contra uma ideologia que carregava dentro de si valores muito fortes e novos: “novos” por assim dizer, pois em parte provinham do judaísmo. Em suma, o Cristianismo era um fenómeno Mediterrânico que não vinha do nada.

No prazo de poucos séculos, conseguiu vingar no mundo germânico, aparentemente vencedor. Perante as antigas superstições, quase infinitas, que haviam cruzado o mundo e com muitos pontos de contacto com a Bíblia e os Evangelhos, apareceu um culto mais forte, mais atraente.

Mas o Cristianismo, transformado por São Paulo (o verdadeiro arquitecto do Cristianismo tal como o conhecemos hoje) numa estrutura religiosa poderosa, tinha dentro de si as sementes do seu fim. Depois de vinte séculos de hegemonia e ascensão do pensamento cristão nas várias declinações católicas, ortodoxas e protestantes, terminou a sua fase de propulsão.

Talvez não foi entendido completamente, até os nossos dias, o que Friedrich Nietzsche queria dizer com “a Morte de Deus”. Nietzsche proclamava no início do século XIX, com décadas de antecedência (simplesmente porque era um génio), que Deus, em virtude ou por causa do Iluminismo e da afirmação da Deusa Razão, tinha morrido na consciência do homem ocidental. Mas o funeral do Cristianismo não teria sido de todo indolor. Não por acaso, o capítulo sucessivo escrito por Nietzsche tinha o título de Incipit Tragoedia (“A Tragédia começa”). Deus foi substituído pelas ideologias. Mas as ideologias, dentro dum tempo relativamente curto (dois séculos e meio, aproximadamente), de igual modo morreram. E a morte delas, tal como aquela de Deus, é saudada como uma libertação.

Em vez disso, é uma outra tragédia: porque agora falta qualquer ponto de referência, secular ou religioso (um Deus morto não pode ser ressuscitado), não podendo considerar-se como valor um “livre mercado”. O “livre mercado” (aspas necessárias) nem é uma ideologia, como acontecia nos tempos de Adam Smith e David Ricardo, e hoje nem consegue ser uma ideia: é simplesmente um mecanismo que agora funciona sozinho, ganhando potência na medida em que enfraquece o homem. Mesmo os homens que agora acham terem nas suas mãos o leme do mercado (e hoje definimos este grupo como “elite”), mais cedo ou mais tarde serão vítimas também.

Quais valores?

Quais os valores que regem a nossa sociedade? Aqueles frutos do Iluminismo? Liberdade? Igualdade? Irmandade?

A Liberdade é um conceito relativo. Sim, hoje podemos apanhar um avião e sair do nosso País. Mas isso não é sinónimo de Liberdade: que, por sua vez, pode ser afectada de várias formas.

Conhecemos o esforço das agências de espionagem para invadir a nossa privacidade através dos vários meios informáticos. Quem pensa “Está bem, que espreitem o meio correio, nada tenho a esconder” não entende que está a ser-lhe retirada liberdade. As notícias estão nas mãos dum punhado de agências de imprensa, as quais filtram os conteúdos: algumas notícias nunca chegam até nós. Também esta é uma forma de retirar liberdade. E os exemplos poderiam continuar.

Igualdade? Não, de todo, e é absolutamente supérfluo falar deste ponto.

Irmandade? Os indivíduos estão cada vez mais fechados em si mesmos, reacção em parte natural perante o medo. Cada País gasta montantes assustadores em armas quando o mesmo dinheiro poderia melhorar de forma estrondosa os níveis de vidas dos mais pobres. Que são muitos, mas muitos mesmo e precisam de tudo. De qual irmandade estamos a falar?

Queremos falar da Justiça? Juízes corruptos pelas corporações, imunidade para provados criminosos
só por estes pertencerem a um Parlamento, tempos de espera e custos absurdos para um normal cidadão, investigações iniciadas apenas para motivos políticos. É “justo” que a nossa segurança enquanto comunidade nacional dependa exclusivamente das pessoas que controlam o nosso Banco Central? Como pode uma sociedade ser justa se o péssimo exemplo é dado em primeiro lugar por quem é suposto fazer respeitar as regras?

Respeito pelo ambiente? Este deveria ser um valor absoluto para todos no planeta: mas bem sabemos, infelizmente, que assim não é, que o equilíbrio ecológico é continuamente posto em causa pelas nossas atitudes, tanto ao nível das empresas quanto ao nível individual. Até a poluição ou o aquecimento global são explorados para obter lucros, até a utilização das energias renováveis depende da potência (isso é: dos fundos fornecidos por corporações) duma lobby.

Democracia? Demasiadas vezes em nome da Democracia foram e, sobretudo agora, são cometidos crimes contra a humanidade. A Democracia é um invólucro, no cujo interior pode caber de tudo a segunda das épocas e das necessidades. Hoje a Democracia exclui o cidadão das grandes decisões e, se for o caso, mata.

Como definir uma sociedade onde a liberdade é relativa, a igualdade não existe, a irmandade está entregue apenas à boa vontade de algumas minorias, onde a justiça não consegue fazer respeitar as regras favorecendo os mais poderosos, onde o ambiente é continuamente degradado e fonte de dinheiro “sujo”, onde a democracia pode ser transformada num instrumento de morte?

Daí a confusão, o sentimento de perda que afecta todos. É o medo, o grande medo (em parte criado, em parte real) que tudo abraça. Paradoxalmente, não é do medo que temos de ter medo, mas da nossa falta de valores, porque aí está a origem. É por causa da falta de valores que o mundo ocidental, tão superiormente armado, irá perder.

Esperança: uma regeneração?

Não é o presente escrito uma tentativa de defender o Cristianismo, longe disso (mas muito longe mesmo!). É que o homem é um animal social: vive em manadas, no interior das quais deve reconhecer e manter aquele conjunto de valores que permitem a sobrevivência da mesma manada e dos indivíduos. Que seria das matilhas de lobos sem a hierarquia, as específicas tarefas e a união que desde sempre regulam as suas existências?

Podemos falar do terrorismo, do preço do petróleo, da economia, do mercado, das greves, do crescimento, do decrescimento, do aquecimento global, da Esquerda, da Direita, dos Ufo, da internet, da poluição, da pobreza, das vacinas, dos emigrantes: nenhum destes é um valor, nenhum destes pode preencher o vazio que foi criado. 

Em cada cultura humana, quase sem excepção, é normal que o sistema de valores não seja eterno, mas que atinja um ponto de colapso. Reza a História, cúmplice a nossa absoluta necessidade de esperança, que após cada crise pode renascer uma realidade melhor.

Mas também a História ensina que qualquer regeneração não é indolor. Pelo contrário, isso passa por uma fase de profundo sofrimento, de regresso até. A suspeito que os nossos “bárbaros”, emigrantes ou não, serão os mais pobres, as camadas dos marginalizados, os que mais nada têm a perder. E os pobres, apesar das declarações optimistas e obtusas da ONU, irão aumentar.

E nem seria irónico se assim fosse: a arquitectura da nossa sociedade contém em si os germes do seu próprio fim. Nós apenas temos que esperar que as futuras gerações possam realmente contar com algo melhor e que não tenha razão o grego Heráclito, que no século VI antes de Cristo advertia de que a humanidade estava destinada a degenerar sem fim.

Ipse dixit.