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O massacre em França

Sábado de manhã, dá para ficar acordado até tarde e tentar perceber o que aconteceu em França.

Por enquanto fala-se de 126 mortos, mas o total pode subir. Todos os terroristas islâmicos mortos também, ou suicidas ou abatidos pela polícia.

A primeira coisa que passa pela cabeça é false flag.
Normal, assim somos estados habituados. O que aconteceu com Charlie Hebdo no princípio do ano, com as fortíssimas dúvidas, as incongruências e, por fim, o segredo oficial acerca das investigações, é uma recordação demasiado recente.

Mas algo não bate certo desta vez.

False flag americana? Talvez não

Os Estados Unidos precisam de aliados para abater o regime da Síria. E a França já tem sido um dos Países que mais têm contribuído em termos militares. Aliás, o recente aumento dos efectivos franceses no conflicto é uma das causas do ataque, como reivindicado pelo comunicado do Isis. Se a ideia tivesse sido “provocar” um País ocidental para força-lo a empenhar-se mais na guerra no Oriente Médio, o objectivo deveria ter sido outro.

Neste contexto, não é possível esquecer que já no dia anterior, na Sexta-feira, um rabbi tinha sido assassinado em Milano e a polícia tinha executado uma série de operações contra células do Isis em território italiano: também neste caso, estamos perante um País que recentemente tem aumentado a sua presença na guerra contra a Síria.

Este ataque irá favorecer de forma pesada os partidos da Direita francesa, em particular a Frente
Nacional de Le Pen. Já no topo das preferências nas sondagens, após o
massacre de ontem verá o número de eleitores subir de forma
consistente.

Não é uma boa notícia do ponto de vista de Washington: o status quo na Zona Euro tem sido baseado no controle efectuado pela Alemanha, com a França de Hollande em evidente dificuldade para contrastar a chancelera Angela Merkel. Com a Frente Nacional no governo (hipótese ainda mais provável após o ataque) a situação fica muito mais complicada: as reivindicações da Le Pen assustam Berlim que, até hoje, tem seguido as ordens americanas.

O ataque contra a França lança sombras sobre a política de acolhimento dos imigrantes varada pela União Europeia e bem vista pelos Estados Unidos. Sem dúvida serão apresentadas aos cidadãos as diferenças entre os muçulmanos e os radicais islâmicos, mas o clima ficará mais “pesado” em volta dos imigrantes e o acolhimento será encarado cada vez mais de forma negativa.

Uma manobra para atingir Moscovo? Muito difícil. A Europa tem aderido às sanções contra a Rússia: e todos sabem que Putin decidiu intervir contra o Isis. E nem podemos esquecer o recente atentado do Isis contra o avião russo: o massacre na França não mexe duma milímetro o relacionamento entre Europa e Rússia. Eventualmente, põe Europa e Rússia do mesmo lado da barricada, aquele das vítimas. Não é isso que Washington deseja.

Mais um fase da “política do medo” muitas vezes assinada pelos EUA? Também esta explicação não é suficiente pois, contas feitas, os contras ultrapassam os prós do ponto de vista de Washington.

Outras hipóteses

É difícil ver este como um false flag. E ainda mais difícil é vê-lo como um false flag de matriz estadounidense, pois há outro pormenor que deve ser considerado: os atentadores de hoje nada parecem ter a ver com os de Charlie Hebdo. Aqui estamos perante indivíduos realmente prontos a morrer, pessoas que não hesitaram em rebentar-se no meio da multidão. Segundo as primeiras notícias (que devem ser confirmadas), os terroristas vinham da Síria, onde combateram nas fileiras do Isis: cidadãos franceses muçulmanos, bem treinados nos combates contra as tropas governamentais.

Haverá tempo para tentar analisar os factos. Eventualmente poderão surgir provas que desmentem quanto escrito até agora. Há também a possibilidade de que possa ser um false flag não americano. Mas até agora temos que considerar uma outra hipótese: que seja mesmo uma operação do Isis.

Contrariamente a quanto acontecia com Al-Qaeda, entidade imaterial e cujas acções sempre podiam
ser interpretadas à luz da geopolítica americano-hebráica, o Isis é um verdadeiro Estado, e se armas e financiamento são ocidentais ou de origem filo-ocidental (as monarquias do Golfo), o exército dele é real, os fanáticos ideológicos são reais.

Do que precisa o Isis? De mão de obra, para acabar com uma guerra (aquela contra o regime sírio) que está a perder, tal como acontece com os exércitos ocidentais. O massacre em França é a melhor maneira que o Isis tem para recrutar pessoal.

Neste aspecto, e provavelmente pela primeira vez, um ataque contra israel não faria sentido. Mesmo discurso em relação às monarquias do Golfo, pois não se morde a mão de quem oferece a comida. A Europa, pelo contrário, é o objectivo perfeito; e a França é a primeira escolha, com os seus 6 milhões de islâmicos e uma taxa de desemprego que atinge em particular os jovens (muito dos quais muçulmanos). Esta acção de cariz militar pode ser o sinal de que o Isis está a “crescer”: não em termos quantitativos mas qualitativos.

Um atentado que, de certeza, não será tão mal-visto em israel. O governo de Tel Avive está bem ciente de que o nível de simpatia que consegue no Velho Continente está cada vez mais baixo: o massacre reforça a ideia do hebraico qual Estado ponta de lança democrática e ocidental no Vizinho Oriente.

As monarquias do Golfo? Também ganham com o recrutamento de novos jovens que casam a causa whabbista.

Repito quanto já afirmado: estas são apenas as primeiras ideias, escritas enquanto a polícia presidia as ruas de Paris e as forças especiais estão ainda empenhadas em operações contra bases dos jihadistas.
As observações feitas até aqui vale o que valem: será preciso esperar os próximos dias, e sem dúvida seguiremos os eventos com particular atenção, para tentar decifrar quanto acontecido hoje.

Se é que há algo para decifrar.
Porque, como escreve o jornalista Paolo Barnard:

O governo dos Estados Unidos, no final de 2014, na tentativa de matar 41 supostos terroristas tinha assassinado 1.147 pessoas. Há cerca de 28 mortes inocentes que nada tinham a ver com isso por cada suspeito que Washington queria matar (sem julgamento).

Com este tipo de «precisão», o Isis ontem teria assassinado 2.800 pessoas na França.
Felizmente, os do Isis são mais precisos. Felizmente por assim dizer, como é óbvio. Mas é um facto.

Não é uma justificação, como é claro.
Mas não deixa de ser algo que não podemos esquecer, tal como os muçulmanos não se esquecem.
É um facto.

Ipse dixit.