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O Glass-Steagall Act – Parte II

Bill Clinton

Em Novembro de 1999, o então Presidente dos EUA Bill Clinton assinou o Gramm–Leach–Bliley Act (também conhecido como  Financial Services Modernization Act of 1999: “Lei de 1999 para a Modernização dos Serviços Financeiros”) que, de facto, aboliu o Glass-Stealgall Act ou, pelo menos, eliminou aquela que era a parte central e mais importante: a separação entre bancos comerciais e bancos de investimentos.

Na verdade, a lei de 1999 foi só o ponto de chegada dum percurso começado muito tempo antes. Sobretudo a partir dos anos ’80, com a presidência de Ronald Reagan, a lobby dos bancos tinha começado a pressionar o Congresso dos EUA para que a lei de 1933 fosse modificada. Já em 1987, a Federal Reserve (com presidente Alan Greenspan) comunicou que apoiava uma reforma do Glass-Steagall Act, portanto era só uma questão de tempo.

Em 1999, o Congresso com maioria Republicana finalmente determinou que a separação das actividades entre bancos “clássicos” e bancos de investimentos pertencia ao passado (com o citado Gramm–Leach–Bliley Act). Faltava apenas a assinatura do Presidente para que a medida fosse definitivamente aprovada. Bill Clinton poderia ter recusado a assinatura? Sim, poderia. Mas assinou. Por qual razão?

A razão é que toda a campanha eleitoral de Clinton tinha sido apoiada pelos grupos especulativos da Finança internacional (exactamente como acontece agora), cujos membros eram também importantes titulares de ações de bancos comerciais. Obviamente, após a eleição, a lobby apresentou a conta ao Presidente: e a parte mais importante da conta era mesmo a abolição do Glass-Steagall Act, o maior desejo das instituições bancárias (e da Finança) privadas.

Com o Glass -Steagall Act ainda em vigor, os investimentos dos bancos “clássicos” eram limitados aos projectos comerciais da economia real, como por exemplo o financiamento duma empresa: isso é algo que traz resultados (lucros) no médio ou longo prazo. A actividade especulativa dos mercados financeiros, pelo contrário, apresenta mais riscos mas pode gerar lucros em tempos rapidíssimos, com base diária até: então, porque investir num projecto da economia real quando é possível, num único dia, ganhar bem mais?

Dado que a Lei Glass-Steagall tinha proibido que os bancos comerciais interviessem nas manobras especulativas da Finança, a única solução (do ponto de vista dos bancos) era a eliminação da mesma Glass-Steagall com um Congresso e um Presidente cúmplices. E foi exactamente isso que aconteceu.

Mas quais as consequências?

Antes da Grande Depressão

William McKinley

Voltamos atrás, voltamos mais uma vez para a crise de 1929. Aliás, ainda antes disso.

Como afirmado na primeira parte do artigo, há várias teorias acerca das causas da crise de 1929. Mas, além das teorias, há os factos e são mesmo estes que vamos aprofundar agora.
  
Após o assassinato do Presidente McKinley (que pretendia realizar projectos de infra-estruturas de desenvolvimento: caminhos de ferro, estradas, centrais para a produção de energia, barragens, canais, etc.) em 1901, houve três décadas de política liberal iniciada por Theodore Roosevelt (a não confundir-se com o sucessivo Franklin Delano Roosevelt, o do New Deal: os dois eram parentes) e prosseguida por todos os presidentes sucessivos.

Esta política incluiu o nascimento (inconstitucional) da Federal Reserve e, mais em geral, a destruição do conceito de Estado soberano através de privatização, desregulamentação e liberalização: muitos dos bens públicos (as infra-estruturas) foram vendidos aos privados (nomes como Rockefeller, Mellon, Astor, Vanderbilt, Morgan, Bush, só para citar alguns), os quais utilizaram estes activos para operações financeiras de especulação.

Estes privados assumiram o controle das infra-estruturas do País para acumular capital (dinheiro real), mas sem alguma intenção de expandir as obras por meio de investimentos e inovações tecnológicas: isso teria implicado substanciais financiamentos e não teria havido lucros no curto prazo, porque é isso que acontece numa economia real e saudável. Dado que o desenvolvimento e a manutenção de infra-estruturas acompanham o progredir da sociedade, a falta delas teve como consequências o facto de grandes áreas dos EUA permanecerem (ou até caírem) na pobreza.
Apenas nas grandes cidades houve uma expansão, mas só porque o grande número de cidadãos garantia o fluxo de dinheiro líquido que era cobiçado pela especulação privada.

O Estado deixou de financiar grandes obras e a capacidade de compra dos cidadãos ficou inalterada (ou até regrediu nas áreas deprimidas); ao mesmo tempo, a Finança montava uma enorme bolha especulativa na loucura do mercado das ações (como afirmado na primeira parte do artigo) enquanto a economia real não conseguia acompanhar a rapidez deste desenvolvimento. Na prática, a Finança deixou de ter uma firme ligação com a economia real e ficou reduzida a um mar de papel, cujo valor era alimentado exclusivamente pelas manobras especulativas.

Neste festival do “lucro fácil” participavam os bancos “clássicos”, os que em teoria deveriam ter guardado o dinheiro dos clientes (dinheiro que, pelo contrário, era investido em operações financeiras). Este é uma aspecto deveras importante: o enorme desvio de dinheiro por parte dos bancos comerciais dificultou cada vez mais os empréstimos aos privados porque, do ponto de vista do banco, era muito mais rentável investir na Bolsa de que no negócio da economia real. Portanto, cada vez menos empréstimos, menos hipotecas, mais Títulos e mais papel.

Ontem? Não: hoje

Franklin D. Roosevelt

Agora, o que temos aqui é a descrição da situação vivida na nossa sociedade de hoje também: pois estes eram os efeitos antes do Glass-Steagall Act e estes foram os efeitos após a abolição do mesmo por parte de Bill Clinton.

O derrube da “parede” divisória entre bancos comerciais e bancos de investimentos recriou hoje as condições vividas antes da crise de 1929. E se a nossa intenção for entender a crise de 2008, é suficiente olhar para trás, no período que vai desde o assassinato do Presidente McKinley até o começo da Grande Depressão.

A “economia de papel” não pode sustentar-se indefinidamente e, mais cedo ou mais tarde, a bolha estoira. Mas até quando durar, tem efeitos desastrosos: anos e anos de negligência da economia real significa que todas as actividades de produção são varridas e as poucas que permanecem não são capazes de manter um nível aceitável de bem-estar: não há dinheiro para saúde, justiça, segurança, educação, infra-estruturas básicas como estradas, ferrovias, usinas de energia, pontes, etc..

Quando Franklin Roosevelt ganhou a eleição presidencial, teve que enfrentar uma espécie de apocalipse: uma Nação em ruínas, milhões de pobres, desempregados, sem perspectivas.

Felizmente, antes de ser eleito, tinha tido a ocasião de ler a correspondência entre um seu antepassado e Alexander Hamilton (o primeiro secretário do Tesouro dos EUA), o criador, junto com Benjamin Franklin, do sistema de crédito dos EUA, que rejeitava o sistema especulativo promiscuo (o mesmo que temos hoje: bancos comerciais juntos com bancos de investimentos). Ao entrar na Casa Branca, Roosevelt já tinha uma ideia clara acerca do que fazer e a Lei Glass-Steagall seguiu mesmo esta direcção: os bancos comerciais podiam desfrutar da protecção do Estado em caso de necessidade, mas tinham que ser estritamente regulamentados; os bancos de investimento (especulativos) em caso de problemas não teriam tido apoio estatal, dado que a actividade deles não tem qualquer interesse público.

Qual foi o resultado desta decisão? Ao reorganizar o sistema bancário segundo o esquema original (o de Hamilton e Franklin), Roosevelt acedeu a um crédito público para grandes projectos de infra-estruturas; e o New Deal transformou os EUA devastados por décadas de especulação liberal numa sã economia agro-industrial tão poderosa que, 10 anos depois, permitiu o fornecimento de logística, alimentos, produtos farmacêuticos, militares e industriais utilizados na Segunda Guerra Mundial.

A abolição do Glass Steagall Act fez retroceder a nossa sociedade para os níveis pré-1929. A crise de 2008 foi apenas o primeiro dos frutos da assinatura de Clinton, porque desde então as regras não foram mudadas. Hoje estamos sentados acima duma bolha que tem um valor de 15-20 vezes o PIB mundial: nada e ninguém alguma vez poderá pagar sequer uma décima parte desta maré especulativa, isso enquanto os patrimónios nacionais continuam a ser privatizados e o dinheiro público é utilizado para salvar os bancos comerciais-especulativos.

O regresso impossível  

Hillary Clinton

Seria possível hoje reintroduzir algo como o Glass-Steagall Act?
Sim, sem dúvida. Mas não será reintroduzido. Não nos próximos tempos.

O actual Presidente dos EUA, Barack Obama, é contrário a uma nova lei estilo Glass-Steagall. E ele é um Democrata, imaginem os Republicanos. Se as previsões forem respeitadas, a próxima Presidente será Hillary Clinton, a mulher do homem que sentenciou a morte do Glass-Steagall Act (e, na verdade, Hillary sempre foi uma Republicana disfarçada por razões de conveniência).

A chefe da Federal Reserve é agora Janet Louise Yellen (olhem: e não é que é hebraica?), em tempos escolhida por Bill Clinton como chefe do grupo dos conselheiros económicos. Está tudo dito.

Há um movimento para ressuscitar a Lei de 1933: alguns entendem que o sistema está numa corda bamba e que a queda pode acontecer em qualquer altura. O democrata Lyndon La Rouche, por exemplo, ou até Terry Smith, um dos maiores banqueiros da City londrina. O editorial do Financial Times publicado em Julho de 2012 exprimiu-se em favor duma nova Glass-Steagall e o mesmo aconteceu com Peter Hambro (membro da família de banqueiros ingleses Hambro) e Lord Myners, banqueiro e antigo secretário dos serviços financeiros do governo Gordon Brown.

Mas são pontas soltas: Wall Street é firme, como é óbvio, e do regresso dum Glass-Steagall Act nem quer ouvir falar. É verdade que hoje já não há anárquicos que disparam contra os Presidentes, como no caso de McKinley: mas um inquilino da Casa Branca que trabalhasse contra a vontade de Wall Street poderia sempre cruzar-se com um radical islâmico.

Tranquilos: não será este o caso de Hillary Clinton.

Ipse dixit.

Relacionado:
O Glass-Steagall Act – Part I
A Grande Depressão
Dust Bowl

Fontes: Qui Libera Italia, Voci di Pace, Wikipedia: Glass–Steagall Legislation,
(versão inglesa), Nerd Wallet, U.S. News, Common Dreams, The New York Times, Forbes, CNN, Robert Reich, LaRouche