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Lyon, França, ano de 2014

– Boa tarde senhor Sahli.
– Boa tarde senhor comissário.
– Ora bem, senhor Sahli, obrigado por ter vindo a este encontro.
– Ora essa.
– Como sabe, o senhor encontra-se sob vigilância desde pelo menos o ano de 2006.
– Sim, eu sei.
– E sabe também que chegámos a vigiá-lo 24 horas por dia.
– Sim, sei também.
– Durante este período, o senhor desapareceu ao longo de três meses. Simplesmente, os nossos serviços de segurança não conseguiam estabelecer o seu paradeiro. Posso perguntar-lhe para onde foi?
– Com certeza, senhor comissário.
– E para onde foi?
– Fui visitar a minha tia Adelina que mora na Gronelândia.
– Ahhh, é por isso que não conseguíamos encontra-lo, óbvio… muito bem. E aquele seu amigo de Besançon, aquele que faz parte do movimento jihadista Tabligh, o que me pode dizer acerca dele?
– Tabligh? O meu amigo de Besançon pertence ao Tabligh?
– Eh sim, lamento informa-la…
– Não posso acreditar nisso, uma pessoa tão simpática…onde irá acabar este mundo…
– Pois, concordo, cada vez pior, não é? Mas olhe, tenho que dar-lhe uma outra má notícia.
– Outra?
– Sim, infelizmente… sabe aquele pregador que costumava frequentar, o Grande Alí, que vivia na região de Doubs?
– Sim?
– Foi expulso. Afinal recrutava milicianos para a Jihad islâmica.
– Não!!!
– Eh sim, lamento senhor Sahli, mas é mesmo assim…
– Já não há religião, já não há valores, nada…
– Eu sei, eu sei… mas basta de notícias negativas, falamos de si, senhor Sahli. A vigilância prosseguiu até este ano e reparámos que o senhor recebe pessoas na sua habitação, correcto?
– Sim, é correcto.
– São seus amigos ou parentes?
– São amigos.
– E são salafistas, justo?
– Justo.
– Senhor Sahli, dito entre nós: sabemos que o salafismo é uma corrente islâmica radical, que reza o regresso às origens, portanto reestabelecer as condições do tempo do Profeta Maomé. Hoje dizer salafista é como dizer “fundamentalista islâmico”, entende o que quero dizer?
– Sim, mais ou menos…
– A pergunta é: o senhor é um fundamentalista islâmico?
– Não, sou salafista radical, mas pacifista.
– Ah, muito bem, muito bem… e os seus amigos?
– Também, somos todos salafistas radicais pacifistas.
– Excelente. E, peço desculpa por causa desta pergunta indelicada, mas por qual razão os seus amigos aparecem sempre camuflados com fatos miméticos?
– Porque são tímidos.
– Ah, sim, certo, acho que faz sentido. E acerca das conversas… sabe, a vigilância prevê também a escuta das conversas…
– Entendo, não há problema.
– Agradeço a sua compreensão. As escutas revelam que com os seus amigos falaram muitas vezes da Jihad e do Mali. Pode explicar qual a razão?
– Com certeza. Da Jihad falámos muitas vezes, é uma vergonha, nós radicais salafistas pacifistas
detestamos a violência e achamos que a Jihad deveria ser firme mas feita com flores e não com armas.
– Ah, como a Revolução dos Cravos em Portugal…
– Exacto, mesma coisa. O Amor é a maior de todas as forças.
– Folgo em ouvir isso, senhor Sahli. E acerca do Mali?
– Isso foi por causa das férias. A ideia é passar uns 15 dias em Araouane, em pleno deserto, onde fica uma avó dum dos meus amigos…
– Um daqueles tímidos?
– Sim, exacto. É avó Gertrudes, pessoa idosa e muito simpática.
– Entendo mas… porque em pleno deserto?
– Para bronzear-se melhor e por causa da vitamina D.
– Ah, sim óbvio, que pergunta estúpida… Olhe, senhor Sahli, uma última pergunta, se não ficar importunado.
– Ora essa, pergunte, senhor comissário, pergunte…
– O senhor trabalha numa empresa que trata materiais explosivos. Acha que pode haver motivos de preocupação?
– Não, senhor comissário, de forma nenhuma.
– Certeza? Não é que poderia surgir uma qualquer ideia estranha, tipo organizar um atentado, decapitar o seu empregador…?
– Eu? Oh, não, de forma nenhuma. Eu amo o meu empregador, é uma excelente pessoa e, além disso, abomino qualquer forma de violência ou sofrimento. Pense que na semana passada trouxe para casa um pássaro que tinha caído do ninho.
– Não me diga? Ohhh, que fofinho…. muito bem, senhor Sahli. Isso tranquiliza-me. Entenda: o senhor Salhi tem um dossier de tipo “S” que significa “sinalizado e vigiado” porque tem um índice de perigosidade de 13 numa escala que vai no máximo até 16.
– Eu?
– Sim, você, senhor Sahli. Mas depois desta conversa acho que todas as dúvidas foram resolvidas. Então, se o senhor concordar, acho que podemos suspender a sua vigilância, o que acha?
– Se isso não importunar… sabe, não quero causar problemas… mas é verdade que o 13 traz azar…
– Eu sei, eu sei: é muito incómodo. Mas não se preocupe, porque é verdade que nos últimos tempos o governo aumentou o orçamento para a vigilância dos suspeitos, mas é evidente que não há razões para continuar a seguir o senhor. Em qualquer caso, se numa determinada altura assim desejar, poderá sempre pedir que a sua vigilância seja retomada. Para nós será sempre um prazer.
– Ah, bem, isso deixa-me muito mais descansado.
– Não vou retê-la mais tempo. Tenha um bom dia, senhor Sahli e obrigado pela sua colaboração.
– Foi um prazer, acredite. Um bom dia para si também.

Nota: Nada de false flag por aqui. Estes não são novos Charlie Hebdo. Estes são atentados reais.
O paradigma mudou. Antes era preciso dar o exemplo. Agora é só deixa-los fazer. Os resultados são menos espectaculares (na Europa), mas o medo espalha-se na mesma.

Ipse dixit.

Fontes: Il Corriere della Sera, Le Monde