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Eu não sou Charlie

Lamento, não vou ficar com um lapis na mão a chorar. Prefiro observar os factos e tentar perceber, embora não seja simples.

Há coisas que não batem bem. Sei que o risco de ver false flag aí onde há só terrorismo existe (e isso tem um nome: paranóia), mas este é o ponto ao qual chegámos: duvidar de tudo e de todos, sempre. É triste mas é única maneira para não ficar presos no grande oceano de Válium que paira sobre as nossas cabeças.

Então vamos ver as notas desafinadas neste conto, na altura em que os dois “terroristas ” ainda não foram capturados. E desfrutamos também de algumas observações de Theirry Meyssan nas páginas de Voltaire.net.

Nove dúvidas

Primeiro

Os terroristas vestem passa-montanhas para esconder os rostos. Alguém se lembra dum atentado no qual os jihdaistas escondem a cara? Atenção a não confundir os vídeos das execuções dos cidadãos ocidentais: são dois contextos diferentes. Se um jihdaista está empenhado num ataque que sabe pode ser suicida, não tapa a cara, aliás, por vezes faz questão de mostra-la bem.
Segundo

Os terroristas atacam gritando Allah Akbar! e dizem querer “vingar Maomé”. Uma testemunha, o cartunista Coco, diz que os atacantes referem ser membros da Al-Qaeda. Isso já é suficiente para fazer endireitar as antenas: sabemos muito bem quem é Al-Qaeda, quem criou esta monstruosidade, quem a financia, quais ligações tem, qual o seu fim.

Podemos pensar: afinal são rapazes do bairro, nem sabem o que dizem, para eles Al-Qaeda é um mito, um modelo mas não sabem o que significa. Mas não é assim: um do dois irmãos terroristas já estiveram no Iémen e no Iraque, e não foi ao lado dos marines. Sabem do que falam: Al-Qaeda é mesmo Al-Qaeda.

E este é um problema, porque a missão do commando não tem nenhuma ligação com a ideologia jihadista (a ideologia jihadista como costumamos entende-la nós ocidentais). Verdadeiros membros ou simpatizantes da Irmandade Muçulmana, de Al-Qaeda ou da Isis não teriam apenas matado os cartoonistas ateus, teriam primeiro destruídos os arquivos do jornal, seguindo o modelo da totalidade das acções no Magrebe ou no Oriente Médio. Para um jihadista a primeira tarefa é destruir os objectos que, na sua opinião, ofendem Deus (blasfémia), e só depois é punir os “inimigos de Deus”.

Terceiro

Se fossem elementos jihdaistas não teriam imediatamente fugido da polícia sem antes ter concluído a sua missão, mesmo que isso significasse morrer no local. Pelo contrário, aqui fogem depois de ter matado parte da redacção, deixando o resto intacto.

Quarto

O facto dos vídeos mostrar os atacantes que sabem como lidar com as armas não é significativo, pois como afirmado os irmãos tinham experiência nisso. Mais interessante é a roupa utilizada: estavam vestidos à maneira dos commandos militares, não como atacantes suicidas islâmicos.

Quinto

A maneira como matam um policial ferido no chão é arrepiante e prova que a missão não é simplesmente “vingar Maomé”. Além disso, o polícia morto era um muçulmano e os seus traços fisionómicos não deixavam dúvidas acerca disso: porque os terroristas matam um muçulmano quando este se encontrava ferido no chão e já não representava um perigo?

Sexto

O facto dos agressores falarem bem francês não significa que sejam forçosamente árabes nascidos na França mas de ascendência argelina. Um francês de ascendência francesa fala igualmente bem. O que podemos afirmar é que quem ataca é um óptimo conhecedor do idioma francês, nada mais.

Séptimo

Mas a parte que deixa atónitos é outra. Como é que a polícia conhece a identidade dos dois terroristas? Simples: encontram o bilhete de identidade no banco do carro utilizado durante o ataque. São Chérif e Said Kouachi, de 34 e 32 anos.

Temos de acreditar que após ter assassinato 12 pessoas, disparado contra um par de carros da polícia e atropelado um ciclista, um dos terroristas encontra todo o tempo para extrair a carteira e deixar cair o bilhete de identidade que, como qualquer bom cidadão, nunca deixa em casa. Fantástico.

Este sinistro pormenor assusta, pois faz lembrar os indestrutíveis passaportes que em ocasião do 9/11 resistiram a queda de aviões, explosões e incêndios. 

Oitavo

Após ter massacrado a redacção dum jornal, a coisa melhor para qualquer terrorista sem intenções suicidas seria desaparecer sem deixar rastos. E o que fazem os dois irmãos? Em primeiro lugar abandonam o carro utilizado no ataque e roubam um Renault Clio ocultando a matricula. Que é a melhor forma para dar nas vistas.


Mas não é tudo: logo a seguir assaltam uma bomba de gasolina em Villers-Cotteret, roubando combustível, comida e deixando que o gestor possa ver no carro alguns kalashnikov e outras armas. Até continuam a vestir a mesma roupa, passa-montanhas incluídos, tanto para não deixar dúvidas e não ser confundidos com criminais comuns.

E uma vez abastecido, o que fazem? Trocam novamente o carro, deixando aquele abastecido perto da bomba de gasolina assaltada. Perfeitamente lógico.

Nono

Mais uma vez estamos perante “terroristas” que eram bem conhecidos pelas forças de segurança.   

Nos Estados Unidos, verificou-se que os irmãos Kouachi eram conhecidos “há anos” pela inteligência americana, eram inscritos no banco de dados do terrorismo e na lista no fly (a que impede voar em aviões de passageiros norte-americanos).

Não são dois rapazes de bairro que encontram uma pistola e decidem vingar o Profeta: são dois indivíduos com um discreto arsenal, ambos conhecidos pelas autoridades, com tanto de vídeos no Youtube, um dos quais com um passado feito de treino em zonas de combate.

Faz sentido?

Acho que ninguém nesta altura pode dizer uma palavra definitiva acerca do que aconteceu em Paris. Mas podemos fazer algumas considerações.

Não faltariam razões para um ataque integralista islâmico: já no passado Charlie Hebdo tinha sido alvo de acções criminosas, embora não comparáveis com quanto acontecido há dois dias.

E nem podemos esquecer o papel do exército francês no ataque contra a Líbia ou o Mali, apesar dos terroristas terem sido claros quanto as motivações do massacre em Paris (que nada tem a ver com as guerras africanas).

Mas não faltariam razões para um ataque false flag: em Dezembro, o Parlamento francês decidiu apoiar a Palestina no esforço para ser reconhecida nas Nações Unidas.

Sobretudo, é bem observar as consequências imediatas do ataque contra a comunidade muçulmana: durante a noite de ontem, vários lugares de culto islâmicos foram atingidos. Três bombas foram lançadas contra a mesquita de Le Mans, no Vale do Loire, e o prédio já tinha sido atingido por uma bomba no dia anterior. E em Port-la-Nouvelle, no sul, dois tiros disparados contra uma sala de oração muçulmana. Em Villefranche-sur-Saône, na França centro-leste uma explosão dolosa investiu um restaurante kebab perto da mesquita. E as últimas notícias, aquelas de hoje, são ainda mais graves.

Apesar
das frases “politicamente correctas”, o atentado apresenta mais uma vez
o mundo muçulmano como um inimigo. E pouco importam os “temos que
distinguir”: o ódio espalha-se na mesma, as divisões avançam. Tudo
volta a ser cada vez mais difícil. 

Porque este aspecto tem que ser avaliado: qualquer terrorista que decida atacar um alvo ocidental sabe perfeitamente que isso desencadeará uma violenta reacção emotiva contrária ao mundo islâmico. E se atingir os inimigos por excelência (os EUA e israel) dos Muçulmanos pode até ter um certo sentido (embora seja sempre condenável, como é óbvio), atingir outros objectivos significa fazer pender a balança contra o Islão e afastar Países cujos cidadãos até hoje demonstraram uma certa hesitação na “luta” contra o terrorismo islâmico.
  
Podem as organizações terroristas islâmicas ter uma visão tão limitada? Paradoxalmente, os atentados nos EUA após 2001 são poucos e sempre bastante “suspeitos”, enquanto em israel nunca houve notícias de acções terroristas (não considerando as acções dos palestinianos, que nada têm a ver com o islamismo).

Uma última nota pessoal: nos últimos tempos, perante um ataque terrorista, a minha primeira reacção é de considera-lo como “autêntico”. É uma espécie de instintiva reacção perante a facilidade com a qual o mundo da informação alternativa encontra false flag até nas caixas do supermercado. Porque o terrorismo existe de verdade, não há apenas obscuras manobras da CIA.

No caso de Charlie Hebdo a atitude foi a mesma, até que no primeiro artigo decidi tomar como boa a versão do integralismo islâmico. Só que depois uma pessoa começa a informar-se, recolhe notícias, fica pasmada quando os bilhetes de identidades são esquecido nos carros e então surgem as primeiras dúvidas…

Ipse dixit.

Fontes: Il Corriere della Sera, La Repubblica, Voltaire.net