Site icon

O Leviatã

Antes do Verão, foi enfrentado o assunto Clearstream.
Esta é uma espécie de “caixa preta” dos bancos, um lugar onde transitam montantes assustadores que geram lucros não declarados.

A cadeia é complexa, é precisa um pouco de paciência para entender como funciona o jogo, mas vale a pena. Assim, da próxima vez que o director do vosso banco começar a chorar pela crise e a falta de dinheiro, será possível perguntar “E as contas Clearstream como estão?”.

E foi falado da SWIFT também. Agora temos que parar um pouco e aprofundar o discurso. É razoável imaginar que ninguém, mas mesmo ninguém (além dos bancos, óbvio) tenha informações acerca dos vários Clearstream, Eurostream ou SWIFT (todos baseados no mesmo mecanismo)?

Por exemplo: CIA, FBI, governos…ignoram tudo? Não fazem ideia de que os bancos choram enquanto utilizam os vários resgates (com dinheiro público) para obter lucros espantosos? Não sabem destas colossais fugas ao fisco? Ninguém sabe ao certo para onde vai este autêntico rio de dinheiro?

Não é bem assim. Pelo contrário. E é isso que vamos ver.

Informação

Em primeiro lugar, temos de entender que o sistema financeiro, além de ser uma maneira para alguns enriquecer, é um sistema de informação.

Ou seja, um sistema de recolha, tratamento, armazenamento e uso de informações dos clientes de bancos, seguradoras, fundos de pensão, fundos de investimento e outras empresas financeiras. São recolhidas informações de todos os tipos e a coisa é extremamente simples.

Pensem nos recibos gerados em ocasião duma transacção simples, como um compra efectuada com uma cartão tipo Multibanco ou de crédito: o titular da conta, a data, a hora, o lugar, a quantia de dinheiro, o bem adquirido. Não falta nada.

Portanto, o sistema financeiro recolhe sem esforço nenhum informações do indivíduo sobre a situação financeira, a saúde, o trabalho, os bens, as condições de vida e assim por diante.

No caso das empresas, a recolha de dados inclui também a situação económica e financeira, os créditos anteriores, os projectos de investimento, os gestores, os accionistas, os contratos, etc.

Para a recolha, o tratamento, o armazenamento e a transmissão das informações, os bancos e as outras instituições financeiras utilizam em primeiro lugar os seus serviços. Vários bancos e empresas do sector podem criar um repositório compartilhado (um grande banco de dados) para obter informações sobre os clientes. Depois temos os bancos centrais, que são enormes centros de dados, cuja função é a supervisão e o controle dos bancos comerciais, o que lhes dá acesso a informações quase ilimitadas.

Além disso, alguns bancos centrais também recolhem informações de forma independente. Por exemplo, o Banco de França supervisiona o sector económico também, justificando isso com a necessidade de melhorar a sua política monetária. Os sistemas de informação financeira e económica ficam assim intimamente entrelaçados nos bancos, dando a possibilidade de um inquérito a 360 graus.

Depois: a maioria dos bancos e das sociedades financeiras têm os seus próprios serviços de segurança. Oficialmente, a principal função é a de proteger os seus dados. Extra-oficialmente, muitos destes serviços vão à procura de mais informações sobre os clientes e os concorrentes. Claramente, estamos no âmbito de operações que não são publicitadas, utilizando métodos e técnicas especiais para actualizar investigações específicas.

As informações recolhidas por bancos e sociedades financeiras devem ser confidenciais e não acessíveis a terceiros, a não ser que haja uma ordem do tribunal. Mas já entendemos que aqui estamos muito além das informações “genéricas”: os bancos ficam cada vez mais próximos dos serviços de segurança. Pelo que, bancos e serviços secretos juntos formariam uma colossal rede de informações, possivelmente a maior do mundo.

“Formariam”?

SWIFT!

A sigla SWIFT significa Sociedade Mundial das Telecomunicações Financeiras Interbancárias. Já o nome preocupa.

Do ponto de vista técnico, a SWIFT é um sistema automatizado de pagamentos internacionais que vai do computador pessoal até as telecomunicações interbancárias. Do ponto de vista jurídico, é uma sociedade anónima, detida pelos bancos membros de diferentes Países.

Na verdade, SWIFT é muito mais do que isso. Não acaso, o nome desta sociedade já apareceu no artigo dedicado ao Clearstream. Mas agora o que interessa é o seguinte: independentemente da nacionalidade do banco (portuguesa, brasileira, japonês, inglesa, etc.), tendo em conta que a moeda principal nos pagamentos internacionais é o Dólar, todas as transações passam por contas correspondentes que os bancos dos vários Países têm nos bancos privados dos Estados Unidos.

Os bancos privados dos EUA, por suas vezes, têm contas na Federal Reserve. Aliás, toda a sociedade SWIFT, ainda que formalmente seja uma organização internacional, baseia-se na Fed. Os servers da SWIFT  estão localizados na Bélgica e nos EUA.

Considerado que a SWIFT recolhe 780 instituições financeiras de mais de 200 Países (com um fluxo de caixa estimado em 6 biliões de Dólares por dia…na década passada!), não é complicado imaginar a quantia de informações que são tratadas diariamente.

Imaginemos, por exemplo, que a CIA possa pôr as mãos sobre esta mole de dados. E para imaginar isso nem é preciso esforçar-se muito: é só recuar até o ano de 2006.

SWIFT, a simbiose Fed e CIA

No Verão de 2006 houve um escândalo acerca da SWIFT. Os principais jornais americanos (New York Times, Wall Street Journal, Los Angeles Times…) trataram amplamente do assunto. “Fora” nem por isso.

Resumo: após o 11 de Setembro de 2001, as autoridades dos Estados Unidos tiveram a ideia de colocar todas as transações monetárias no interior dos EUA e, em particular, aquelas transfronteiriças sob o controle dos serviços secretos. O objectivo oficial era impedir o financiamento do terrorismo. Pouco tempo depois do 11 de Setembro, a CIA entrou em contacto com a SWIFT e começou a rever a informação sobre os pagamentos de entrada e saída dos EUA.

A CIA, como é óbvio, não tinha nenhuma base legal para uma tal vigilância. Mesmo os membros da SWIFT não sabiam nada sobre estas actividades. Até que no fim de 2003 houve uma reunião para chegar a um acordo: as partes concordaram em continuar a cooperação só se Washington se conformar com um certo número de regras. nomeadamente, que as operações ficassem sob o controle do Ministério das Finanças e a obrigação de seguir exclusivamente às operações para as quais havia reais suspeitos de ligação com organizações que financiam o terrorismo. Ponto.

Os bancos centrais de vários Países (como Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Bélgica, Holanda, Suécia, Suíça e Japão) foram informados sobre a prática de controle actuada pela CIA, outros nem por isso (é o caso da Rússia). E a partir daí houve o silêncio, no sentido que a notícia não saiu dos bancos centrais, nem os governos sabiam (e se sabiam ficavam calados).

O jornal inglês The Guardian publicou no Verão de 2006 a descrição de como a SWIFT transmitia anualmente à CIA todos os dados sobre milhões de operações bancárias britânicas (o que é uma violação tantos das Leis do Reino Unido como da União Europeia também).

No mesmo ano, em resposta escrita ao Parlamento, o Primeiro Ministro Gordon Brown confirmou que o governo estava ciente deste programa, algo relacionado com “questões de segurança específicas”, enquanto o ministro das Finanças recusou-se a dizer se foram tomadas medidas para garantir o respeito da privacidade dos cidadãos britânicos. Gordon Brown também se recusou a dizer se o programa SWIFT estivesse em conformidade com o artigo 8 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Hoje? Os pontinhos

E hoje? Hoje não sabemos praticamente nada sobre a cooperação entre a SWIFT e a CIA (ou outras agências de investigação americanas). Este assunto é tabu para todos os media do mundo.

Outra vez: não é preciso muito esforço para entender o que se passa, não é?
Em qualquer caso, os EUA têm todas as condições necessárias para garantir que a comunicação entre CIA e SWIFT continue de forma descontraída: como já lembrado, um dos servers está localizado nos EUA.

É claro que a CIA tem também outros métodos de controle, além da SWIFT, sobre os fluxos financeiros internacionais. Mas os dados recolhidos por esta sociedade representam uma “ajuda” não indiferente, que disponibiliza informações acerca de biliões de cidadãos do planeta todo. E isso sem fadiga nenhuma: somos nós que entregamos espontaneamente os dados, de cada vez que uma compra for feita através dum banco (alguém quer comentar acerca da inteligência da espécie humana?).

Para completar, mais recentemente foi criado um poderoso banco de dados do Ministério das Finanças EUA para receber informações não só por parte dos bancos mas também de companhias de seguros, fundos de pensão e outras instituições financeiras. No início de 2013, os meios de comunicação informaram que, a fim de garantir a segurança e os interesses dos EUA, todos os serviços de informação dos Estados Unidos (CIA, FBI, NSA e mais ainda) têm acesso a este banco de dados.

Agora, voltamos para a pergunta do início e vamos unir os pontinhos.

Podemos pensar que a CIA ignore estas operações? Se a resposta do Leitor for “sim”, por favor, mude de blog. Obrigado.

Para os Leitores que sobraram: isso fornece um tímido vislumbre acerca da real profundeza da toca do coelho. Uma amalgama de proporções enormes, um Leviatã que abrange bancos, governos, serviços secretos; tudo para proteger o sistema bancário, apertar o controle sobre os cidadãos e favorecer um restrito número de pessoas.

Nada mal.

 

Ipse dixit.

Relacionados:
Clearstrem
SWIFT: a identidade vendida

Fontes: Réseau International, The Telegraph