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Do trabalho inútil

Em 1930, o economista John Maynard Keynes previu que até o final do século, a tecnologia poderia ter avançado o suficiente para permitir que em Países como o Reino Unido ou os Estados Unidos pudesse ser implementada uma semana de trabalho feita de 15 horas.

15 horas? Considerando 5 dias de trabalho por semana, isso daria um dia feito de 3 horas de trabalho, 8 de trabalho e 13 de… de nada. 13 horas livres por dia, tempo que cada um de nós poderia investir como mais lhe apetecer.

Keynes era um louco? Longe disso: ele estava bem certo.
Em termos de tecnologia, seria perfeitamente possível fazê-lo. No entanto, ainda não aconteceu e nem irá acontecer nos próximos tempos. Pelo contrário: naqueles Países onde a semana de trabalho atingiu as 8 ou até as 7 horas, este resultado está a ser posto em causa. Eventualmente, a tecnologia tem sido utilizada para inventar novas maneiras de fazer todos trabalhar mais.

O assunto merece bem pouco espaço nos media, pois é considerado normal continuar a trabalhar com os mesmos ritmos do começo de 1900, quando foram introduzidas as 8 horas de trabalho (e nem em todos os Países).

Justificação? Simples: a nossa sociedade, com a sua evolução, tem criado novas necessidades, que impedem a redução do horário.
Simples e falso.

A realidade é bem diferente: há trabalhos desnecessário. Enormes multidões de pessoas,
especialmente nos Países ocidentais, passam a vida profissional na execução de tarefas desnecessárias.

São os mesmos trabalhadores que consideram estes trabalhos como supérfluos: sabem que poderiam ser tranquilamente substituídos por máquinas ou programas informáticos. Mas não falam, porque o medo de perder “o lugar” fala mais forte.

Ser substituído pelas máquinas, tornar-se obsoleto e desempregado, é o pesadelo de qualquer trabalhador.

Assim, estamos perante uma situação aparentemente paradoxal: os trabalhadores poderiam ter muito mais tempo livres graças às máquinas e à informática mas recusam defender esta nova visão pelo medo de ser substituídos por máquinas e informáticas. Em vez de tornar as novas condições uma arma de pressão sobre o capital para obter condições de trabalho mais vantajosas (e dignas), põem-se em competição com os avanços tecnológicos para que nada mude.

É o escravo que luta para continuar a ser escravo.
E isso até perante as evidências.

Durante todo o século passado, o número de trabalhadores empregados em trabalhos industriais e ou ligados à agricultura entrou em colapso. Ao mesmo tempo, as profissões liberais, os trabalhos administrativos, de escritório, de vendas e de serviços triplicaram, passando de um quarto para três quartos do total. Em outras palavras, o trabalho produtivo (exactamente como esperado) foi em grande parte substituído pela automação: e mesmo considerandos as massas de escravos explorados nas produções de Índia e China, esses trabalhadores não representam que uma percentagem ínfima da mão de obra utilizada até poucas décadas atrás.

Isso poderia fazer supor a explosão da área dos serviços: menos pessoas que trabalham, mais pessoas com mais tempo livre, mas procura para serviços. Mas não: o que aumentou foi basicamente o comparto administrativo. Serviços financeiros, telemarketing, administração de cuidados de saúde, recursos humanos, legais, corporativos, relações públicas.

E estes números não incluem todas as pessoas que trabalham na indústria que refornecer o sector  administrativo: a área técnica ou aquela relacionada com a segurança, ou exército de actividades secundárias mas não produtivas (como os tosadores de cães, os que entregam de pizzas, as baby-sitter, só para fazer alguns exemplos banais) que só existem porque outras pessoas passam tanto tempo a trabalhar que demandam estes “micro-serviços” (rigorosamente não produtivos) para empresas especializadas.

É como se houvesse algo que inventasse trabalhos desnecessários apenas para fazer que as pessoas continuem a trabalhar. E é aí que reside o “mistério”: no Capitalismo, isso é exactamente o que não deveria acontecer.

Claro, nos antigos Países socialistas, ineficientes (como a União Soviética), onde o trabalho era considerado um direito e um dever sagrado, o sistema era responsável por inventar (literalmente) todo o trabalho. Mas este é precisamente o tipo de problema que a concorrência no livre mercado deveria corrigir. De acordo com a teoria económica, a última coisa que uma empresa deveria fazer seria desembolsar dinheiro para trabalhadores dos quais não precisa.

E, mesmo assim, é isso que acontece: aliás, a nossa pode ser bem vista como a época do triunfo do trabalho supérfluo, a altura em que biliões de pessoas poderiam gozar de muito mais tempo livre e, em vez disso, continuam a trabalhar como antes.

Explicação? A verdadeira explicação? Extremamente simples e óbvia: o Capitalismo sabe que uma população feliz, produtiva e com muito tempo livre a disposição é um perigo mortal. Por outro lado, a idéia de que o trabalho seja um valor moral em si mesmo, que qualquer um que não deseje submeter-se a uma disciplina de trabalho intenso durante a maior parte do dia não mereça nada, isso também é extraordinariamente conveniente para muitos, trabalhadores (ou escravos, pontos de vista) incluídos.

E há mais: a nossa sociedade, os que desenvolvem os trabalhos mais úteis são os mais menosprezados. Por exemplo: é normal gabar-se de ser um gestor de recursos humanos, é muito menos normal gabar-se de ser um varredor de rua. Agora: é muito simples imaginar um mundo sem gestores de recursos humanos, pois a sociedade conseguiria ultrapassar facilmente este trauma. Já viver no meio de ruas entupidas de lixo é muito menos agradável.

E, como se isso já não fosse suficiente, quanto mais o trabalho for inútil, tanto mais será pago; o contrário acontece com os trabalhos úteis. Um lobista ganha muito mais do que um enfermeiro; um gestor de relações públicas é mais bem pago do que um professor da escola básica ou dum mecânico.

Nos Estados Unidos, os Republicanos estão a ter sucesso na mobilização do ressentimento contra os
professores ou contra os trabalhadores da indústria automobilística. Atenção: não contra que administra as escolas ou gere as industrias dos automóveis (estes são os “intocáveis”), mas contra as camadas mais “baixas” e numerosas dos respectivos sectores.

Reformas decentes? Sistemas de saúde decentes? Tudo isso deve continuar a ser um sonho para as pessoas que desenvolvem trabalhos reais. O Obamacare (um sistema de saúde um pouco menos cruel do que o  actual) é apresentado como um ataque contra as liberdades pessoais. E muitos trabalhadores partilham esta ideia.

Se alguém tivesse projectado um sistema feito à medida para preservar o poder do capital, dificilmente poderia ter imaginado algo mais funcional do que a nossa sociedade. Os verdadeiros trabalhadores, aqueles que produzem, que têm uma inegável utilidade, são espremidos, explorados, menosprezados. Os outros, os supérfluos, são bem pagos e reverenciados.

Coisa ainda mais perversa: circula a convicção generalizada de que seja justo assim.

No entanto, tudo isso tem um custo enorme, como já afirmado: a nossa sociedade procura muitos mais especialistas em direito empresarial de que músicos, poetas, pintores, escultores. É a consequência directa e natural duma sociedade que privilegia mais a escravidão do que a liberdade.

Ipse dixit.

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Fontes: The Economist – On “bullshit jobs”, Strike! Magazine