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A vingança da poeira

Diz a Siempre Muy Nobre Maria:

Mas o que aconteceu nos EUA para que, na primeira metade do
século XX, a prosperidade atingisse tão boa parcela da população nativa
norte americana que o mundo todo pasmou ante The way of life? Aquela
economia de produção (ao invés da especulação)não terá nenhuma chance de
retornar, me parece. Uma grande, muito total guerra, permitiria fazer
retornar os bons tempos aos nativos predadores? Então, salvo melhor
juízo, o U vira um gancho até que essa sociedade predadora se auto
fagocita.

Acho (isso é: se alguém tiver uma teoria diferente, faça o favor de sugerir, eu agradeço desde já…mas não comecem com Illuminati & C., obrigado!) que o truque, como sempre, é olhar para a História como se do futuro se tratasse.

No meio da poeira
As primeiras três décadas do século XX não foram nada simpáticas do ponto de vista dos Estados Unidos. Uma vez gasta a mola da expansão territorial (à custa dos habitantes originários também), houve a segunda fase, a do assentamento, e aqui começaram os problemas: foram deitadas as bases para a Grande Depressão, algo que os EUA conseguiram ultrapassar só com o esforço bélico (e não só) da Segunda Guerra Mundial.
Neste aspecto, acho ser importante realçar algo: o Capitalismo de matriz liberalista é um organismo que não consegue encontrar um equilíbrio duradouro. Contrariamente ao que afirmam as teorias da “mão invisível” (um processo de auto-regulamentação que seria intrínseco ao Capitalismo), é quando “a poeira assenta” que o livre mercado sem limites começa o processo de auto-destruição.
A “poeira” era aquela dos carros dos colonos que abandonavam a costa Leste para encontrar fortuna
no Oeste selvagem.

Enquanto a colonização estava ainda em andamento, as estruturas Capitalistas ficavam limitadas àquela parte dos Estados Unidos há muito ocupada, antes pelos Ingleses, depois pelos americanos independentes; no Oeste a vida corria longe das regras do mundo “civilizado” e cada um (após ter massacrado alguns habitantes que molestavam) era livre de escolher um rumo para a sua própria vida.

De facto, a maior parte dos colonos tinha como sonho uma quinta com um pouco de terra que fornecesse sustentamento para a família dele.

Um erro cometido muitas vezes é atribuir esta conduta a um livre “espírito” empreendedor ainda hoje lembrado com saudade pelos políticos Republicanos. Isso é falso: uma casa com um pedaço de terreno foi a regra ao longo de milhares de anos e nada tem a ver com o Capitalismo. Os soldados romanos, uma vez reformados, recebiam mesmo isso: um terreno no qual construir uma casa e poder assim dedicar-se a uma tranquila vida de agricultor.
O Capitalismo chega depois, quando a parte suja do trabalho já está despachada: eliminados ou limitados os habitantes originários, estabelecidas as primeiras e básicas rotas de comunicação, atraída uma mão de obra de baixo custo (nem todos querem ser agricultores afinal ou têm jeito para isso), eis que aparece o Capitalismo, que viaja comodamente num vagão da Central Pacific Railroad ou da Union Pacific. É desta forma que a colonização é concluída e é nesta altura que começam a aparecer os Astor, os Rockefeller, os Carnegie, os Morgan, os Vanderbilt, os Westinghouse, os Fulton, os Du Pont.
O Modelo T e o seu sucesso são o símbolo desta era que, todavia, dura pouco: a primeira Ford T sai da fábrica em 1908, passam vinte anos e os Estados Unidos precipitam no inferno da Grande Depressão. O que tinha acontecido? Nada de especial: o Capitalismo era agora o padrão absoluto dos EUA e começava a apresentar a conta.
Seis décadas
Algumas datas.
A construção da primeira ligação transcontinental ferroviária acaba em 1869; até a Grande Depressão (1929) são poucos mais de 60 anos.
A Segunda Guerra Mundial acaba em 1945, a actual crise começa em 2008, com a falência Lehman Brothers. São 63 anos.
Parece, portanto, que o Capitalismo consegue funcionar de maneira decente ao longo de 60 anos,
mais ou menos, passados os quais entra irremediavelmente em crise.

Ao mesmo tempo, não podemos não realçar outro facto: na Europa, onde sobretudo a partir do século XX o Capitalismo foi limitado por algumas normas locais (fascistas e/ou socialistas), ambas as crises (Grande Depressão e crise de 2008) foram sofridas “por reflexo”. Não que o sistema capitalista europeu tivesse feito maravilhas: mas nunca foi o berço da crise, cujas origens sempre foi possível individuar do outro lado do Atlântico.

Provavelmente as medidas limitativas locais teriam conseguido não evitar mas sim adiar uma eventual crise europeia.

O que significa tudo isso? Se aplicarmos o passado para tentar descortinar o futuro, então podemos avançar com algumas considerações.

  • os Estados Unidos antecipam as tendências que o resto do planeta poderá seguir. Esta não é uma grande novidade, mas faz sempre bem lembra-la. Se o desejo for saber o que se passará nos próximos tempos em matéria não apenas económica mas também social, temos que olhar para Washington e arredores, porque o Capitalismo é por sua natureza totalitarista: não admite a existência de alternativas e sempre trabalhará para destronar e substituir outros tipos de regimes.
  • o Capitalismo sem regras funciona só quando não for aplicado, isso é, quando numa fase de expansão as pessoas ou as empresas podem actuar de forma livre e sem os condicionamentos que o Capitalismo inevitavelmente introduz sob forma duma Finança extremista, do aparecimento de monopólios não-estatais, da introdução de leis que favorecem a oligarquia capitalista. Não há nenhuma “mão invisível”: a única mão é aquela do Capitalismo, é bem visível e até parece ter tendências suicidas.
  • o fim duma crise gerada pelo Capitalismo coincidiu com um evento fortemente traumático: significa isso que a guerra é a única solução? Sim e não. Seria errado ver a Segunda Guerra Mundial como a solução da Grande Depressão. Na verdade, os Estados Unidos chegaram ao final da guerra em péssimas condições: muitos ignoram o facto de que a utilização das bombas atómicas não foi uma livre escolha mas uma absoluta necessidade, pois Washington não tinha a capacidade de sustentar o esforço bélico ainda por muito tempo e os Japoneses teimavam em resistir. A guerra tinha significado grandes lucros apenas para um restrito grupo de pessoas, não tinha coincidido com o fim da Depressão: só as sucessivas escolhas (exemplo: o Plano Marshall) tornaram os EUA o American Dream e isso em concomitância com um evidente “passo atrás” da oligarquia capitalista (o ponto mais baixo do tal “U” citado por Maria e no artigo anterior).

Isso significa que teremos uma guerra no futuro de grandes proporções?
Por tudo aquilo que foi dito até aqui, é inevitável: mais uma vez, trata-se duma questão de sobrevivência, desta vez do sistema capitalista.

Se a actual tendência não for interrompida ou mudada, serão criadas as condições para que uma parte cada vez mais consistente da população americana (ocidental – e não apenas isso – mais no geral) tome consciência duma realidade que empobrece cada vez mais, em prol dum restrito grupo de pessoas (a tal oligarquia capitalista).

Emergências
Retomamos quanto afirmado em 2011 por Warren Buffett, o terceiro homem mais rico
dos Estados Unidos:

Nos últimos vinte anos, neste
país, tivemos a luta de classes, e minha classe ganhou.

O que Warren Buffett deveria ter acrescentado é a expressão “por enquanto”, pois estamos perante dinâmicas que não prevêem um capítulo final: a vitória representa apenas o fim dum ciclo e o começo duma nova luta.

Nesta óptica, o sucesso da classe oligárquica tem determinado o começo duma nova fase (que pessoalmente julgo durar uns 30/40 anos) que tem o potencial para subverter o actual equilíbrio.

Os meios de persuasão de massa (televisão, diários, etc.) funcionam muito bem até quando houver elementos que consigam disfarçar a disparidade entre os vários níveis de vida ou, em alternativa, quando houver acontecimentos (criados ad hoc) que consigam determinar uma união (fictícia) entre as várias classes sociais e reforçar o papel centralista (e autoritário) do Estado.


Os ataques do 11 de Setembro e a consequente “luta ao terrorismo” tiveram este objectivo, além de proporcionar novas possibilidades comerciais: a mesma mola da “conquista do Oeste”, mas obrigatoriamente de forma mais reduzida e com vantagens só para a oligarquia. Ao mesmo tempo, não pode ser negado como esta “emergência” tenha funcionado também para apertar o controle que o Estado impõe aos cidadãos (Patriot Act). Se a luta de classe tivesse sido ganha de forma definitiva, não teria havido necessidade nenhuma deste último elemento: foi introduzido simplesmente porque os responsáveis (políticos, oligárquicos) bem conhecem as dinâmicas das sociedades.

Mas, como afirmado, tudo isso funciona até um certo ponto, além do qual ou é inventada uma nova “emergência” (que para ter sucesso deverá ser ainda mais grave do que a anterior), ou são tomadas medidas radicais e “regeneradoras” (a guerra), ou o Capitalismo prossegue o seu caminho, exacerbando as diferenças entre os grupos dos cidadãos (ricos e pobres) e chegando até o ponto de ruptura.

É difícil imaginar uma nova “emergência” tão grave que possa entreter o povo sem prejudicar ao mesmo tempo os interesses da oligarquia também. E até hoje, a oligarquia tem sabido evitar cuidadosamente o ponto de ruptura: nada deixa pensar que no futuro as coisas possam ser diferentes.

Por esta razão, parece sobrar apenas uma solução: o Novo Século Americano passar obrigatoriamente no meio duma nova guerra. Não algo limitado e, tudo somado, quase inútil (Afeganistão, Iraque, etc.), mas um conflito que consinta recriar as condições para um expansionismo de grande alcance, tais como existidas após a Segunda Guerra Mundial.

Resumindo, melhor repor Marx e o pacifismo na gaveta: porque o que o filósofo-historiador-economista não tinha tido em conta foi a capacidade que as oligarquias têm em evitar o choque frontal (bem melhor o choque entre pobres: a guerra); e o pacifismo nada pode contra aquele que já se tornou um hábito (a guerra como solução) e os instrumentos de quem pode decidir um grande conflito.

O impossível regresso do Terceiro Estado

Quando? Difícil fazer previsões.

Os EUA não podem esperar muito tempo, pena ver os adversários crescer ainda mais, o que implicaria não o desaparecimento do Capitalismo mas uma profunda revisão dos planos.

Doutro lado, sempre tendo a História como ponto de referência, Washington ainda não tem começado o seu próprio New Deal: as estruturas existentes e o funcionamento delas são ainda aquelas que determinaram o surgimento da crise de 2008.

Por isso, de momento, os Estados Unidos têm escolhido não exacerbar o discurso na Síria (que depois significa pôr-se em rota de colisão com Irão, Rússia e China) e prosseguir com avanços parciais na Eurásia (ver caso Ucrânia). É uma situação temporária, um dispor as peças no tabuleiro antes que o verdadeiro jogo comece.

Sem uma guerra, as diferenças entre as classes são destinadas a aumentar: e não apenas nos Estados Unidos. Um processo parecido (sem atingir os mesmos excessos) está já em curso na Europa também (esta é uma das funções da União Europeia) e nem podemos esquecer o que se passa “do outro lado”: na China e na Rússia o desenvolvimento já cria uma classe de ricos e super-ricos ainda antes de ter uma classe média implementada.

É normal: estes Países entraram no universo Capitalista numa altura em que as oligarquias ocidentais já estavam a utilizar os instrumentos extremos do turbo-Capitalismo (como a hiper-Finança), por isso o resultado só pode ser o mesmo do (ou, no máximo, muito parecido com o do) Ocidente.

Mas diferenças cada vez mais acentuadas significam apenas uma coisa: a criação duma oligarquia cada vez mais “aristocrática” (um grupo fechado, afastado da produção, ocupado apenas na manutenção do poder) e, como contra-parte, o crescimento dum “Terceiro Estado” feito de pessoas (a maioria da população mundial) que vêem as suas próprias condições de vida só piorar.

Seria esta é uma situação muito arriscada, caracterizada por um equilíbrio particularmente precário e com desfechos duvidosos. Paradoxalmente, seria esta uma situação de grande esperança, pois nesta condição uma mudança real seria algo viável.

É por isso que não vamos chegar lá.

Ipse dixit.