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As Esquerdas de Bonaventura

É assim: para ler uma entrevista ao Professor Bonaventura de Sousa Santos, doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick, director dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, que fala das mudanças na América do Sul, é preciso entrar num site em Castelhano, Alianet.

Porque aqui estamos demasiado preocupados com as aventuras da Selecção de futebol, reality show, novelas e, sobretudo, com os servidores dos bancos que, com muita boa vontade, definimos “políticos”.

É justo assim.


Diz Bonaventura:

Hoje, no início do século XXI, Mr. Warren Buffet diz que é injusto pagar menos impostos do que os seus empregados e quantifica: “Eu pago apenas algo como 20% e os meus empregados estão a pagar 40%, e eu sou o terceiro homem mais rico do mundo. O que está a acontecer?” Estas são as contradições.

Pois.
Vamos ler, então, as resposta que o Prof. Bonaventura fornece.

O Professor afirma que o modelo neoliberal procurou promover a democracia, para depois ocupa-la numa altura posterior? Pode esclarecer esse ponto?

Desde os anos 80, em todo o mundo houve a democracia como condição da política do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.

As ditaduras já não são os regimes preferenciais, são as democracias. Mas as democracias sem redistribuição de riqueza, sem direitos sociais, sem classe média, porque a democracia é o sistema de governo que com mais legitimidade (e “paz social”) pode produzir aquelas fraquezas do Estado que o capitalismo financeiro espera. O capitalismo financeiro pode impor a uma democracia muito mais do que a uma ditadura. Esta foi a armadilha, a promoção da democracia, com o objectivo de ocupar mais o Estado.

O capitalismo financeiro dos Estados Unidos foi ainda mais longe, compra e paga a campanha eleitoral. É tudo bem documentado, com dados totalmente confiáveis. Nas últimas três décadas, Wall Street pagou as campanhas eleitorais de todos os presidentes, inclusive Obama, e por isso quer algo em troca. Não é filantropia, paga as eleições para que os seus “funcionários” sejam os únicos a comandar e fazer política.

É por isso que Obama nomeou na sua equipa económica e financeira todos os homens que até o dia anterior eram os grandes de Wall Street. e é impossível colocá-los na prisão por causa dos crimes que Wall Street cometeu. Foi possível com Madoff, por exemplo, que realmente era um especulador, mas apenas porque ele era um outsider em Wall Street, um indivíduo que trabalhava de fora, e por isso era um alvo fácil. Então, o problema que vivemos é apenas isso: não temos forças e modelos suficientemente fortes para ser capaz de combater esta situação.

E assim caminhamos num mundo de incerteza, embora não eu consiga ver tudo de forma negativa, porque vejo uma grande quantidade de energia que surge no Sul global. Vejo uma mudança do Capitalismo, de norte para sul, vejo como o diálogo emerge entre os hemisférios sul e norte. É uma incógnita, porque Países como China, Brasil, África do Sul, Índia e Turquia serão capazes de introduzir, em algum momento, elementos novos no modelo emergente que dizem defender? Quais novidades?

E vemos a China com as suas iniciativas fortes na África, com compras maciças de terra, porque há uma crise alimentar de que ninguém fala. Mas, também outros Países, como Coreia do Sul e Brasil, e muitas multinacionais estão a comprar terras numa nova forma de colonialismo. O clássico colonialismo foi caracterizado por ser uma dominação territorial de um País por parte dum Estado dominante. Agora é realizado com a ocupação territorial por empresas estrangeiras ou Estados, por causa dos contratos que foram assinados com os Estados “ocupados”, contactos que nunca incluem os agricultores, que mais cedo ou mais tarde serão forçados a sair.

Assim, além de todas essas crises, há inovações interessantes no mundo, há processos que estão em desenvolvimento no Sul, Índia, África do Sul, Brasil, Bolívia, Equador e Venezuela. Processos que têm tentado produzir uma alternativa. Particularmente as iniciativas no Equador e na Bolívia são processos contraditórios que sigo de perto, que levantam preocupações por causa da polarização política interna que está a ocorrer entre as forças de esquerda.

Há novas propostas para uma renovação do pensamento político, do pensamento económico, do pensamento como multiculturalidade e multinacionalidade, o viver bem e os direitos da Natureza. Esta é uma riqueza enorme que do ponto de vista do Norte global não é levado em conta. A abordagem é considerada ridícula, os movimentos intelectuais e políticos do Norte não querem entender o que está em desenvolvimento.

Quando fala de processos contraditórios, quais em particular?

Há muitos. O primeiro nó é que temos uma dualidade nesses Países, especialmente em Países como Bolívia e Equador, Países onde passaram-se inovadores processos constituintes, bons na medida em que essas transformações surgem de mobilizações populares. São processos que surgem a partir de baixo e não de cima. Antes eram os advogados que escreviam as Constituições, não foi assim na Bolívia e no Equador. Essas Constituições criam um projecto de sociedade, como a multinacionalidade, o Bom Viver, a Kawsay Sumak, a Suma Qamaña.

Então, onde está a contradição? Na dualidade entre um projecto de Estado multinacional e a realidade existente nesses Países, que são um Estado-nação com todas as velhas regras institucionais e os hábitos do burocrata colonial do Estado moderno. Há, igualmente, as contradições da economia devoradora, cujo desenvolvimento não é independente e sempre foi baseado na exploração dos recursos naturais de maneira não regulamentada, recursos que nunca como nesta altura económica tiveram uma conjuntura favorável por causa dos preços das mercadorias, e ao mesmo tempo um projecto de Constituição que procura o horizonte pós-capitalista do Bom Viver, um tipo diferente de sociedade.

A tensão é entre o antigo que ainda sobrevive e ainda está sólido perante do novo, que não existe e está apenas a nascer.

Estas contradições são reflectidas no campo social e político. No campo político temos as velhas Esquerdas que sempre foram modelados na Esquerda Europeia. Em primeira instância, são Esquerdas mono-culturais, eurocêntricas, pelo que nada do que existir fora da América do Norte ou da Europa tem importância.

Em segundo lugar, são Esquerdas que ficam polarizadas muito facilmente na luta para alcançar o poder, por causa das próprias divisões ideológicas. Como terceiro ponto, são Esquerdas que têm a mesma concepção de desenvolvimento das forças produtivas e a própria noção de exploração da Natureza.

Mas há iniciativas que nascem neste continente que, de certa forma, começam com os zapatistas e mais tarde com o Fórum Social Mundial, e têm um impulso grande o suficiente para mostrar que existem outras línguas da Esquerda, outros movimentos, que até então eram completamente invisíveis, outras formas de conceber a relação com a Natureza, outras concepções de desenvolvimento; é uma grande inovação e de alguma forma, observamos uma dualidade entre a Esquerda.

No Equador, assim como na Bolívia, encontramos grupos que são duas facções da Esquerda. Mas que não consideram a outra de Esquerda, isso é, que cada um acredita que o outro seja de Direita. Então, ao transformar o oponente Esquerda no inimigo, não há espaço para o diálogo. E assim chegamos à polarização política.

É um desgaste recíproco?

Um desgaste mútuo que favorece a Direita. O risco da Esquerda é muito forte, porque realmente a ideia dominante da Esquerda da América Latina é nacionalista e desenvolvimentista, e é muito difícil sair disso.

Sabemos que há uma transição do modelo de desenvolvimento para o Bom Viver, mas é algo que não pode ser feito num ano. E embora haja sinais de um início nessa direcção, é algo que é difícil perceber. Não vemos quando os índios da Bolívia são confrontados com o irmão Evo para a construção duma estrada no Parque Tipnis. Eu estiva muito envolvido neste conflito, falei com os índios e com a vice-presidente para tentar um diálogo, porque parecem ter muito em comum e mesmo assim não dialogam. Existem alternativas para a estrada.

Mas tudo que podemos observar são as contradições no seio da população, como dissemos, que se torna imediatamente polarizada, é um confronto que divide o campo popular entre camponeses e nativos, em nativos contra nativos.

No Equador vejo a mesma coisa, um confronto e uma incapacidade de diálogo. Para qualquer observador é estranho que no processo duma revolução popular, num Estado multinacional, haja 200 líderes indígenas e agricultores que estão a ser julgados, acusados ​​de serem terroristas ou sabotadores. É compreensível no Chile, mas é difícil entender isso no Equador. São contradições muito fortes.

Para mim, ligados aos movimentos intelectuais e aos processos relacionados com a mudança da Esquerda, isso me preocupa porque são processos históricos, ricos em oportunidades que ocorrem raramente na história e acho que corremos o risco de desperdiçar oportunidades importantes para a mudança no continente.

Mas o que estamos a discutir é se forem realmente processos de mudança.

A minha opinião é que esta é uma mudança, talvez muito contraditória, que pode exigir uma reorganização, mas são processos nos quais há muitas coisas inovadoras e cruciais para o futuro da Humanidade.

Com um exercício de imaginação política que não é complicado, podemos esperar que uma divisão da Esquerda no Equador ou na Bolívia levará à vitória da Direita em ambos os Países. Uma coisa que é certa é que a Direita tem o objectivo principal de eliminar as Constituições. Dizem que a Constituição do Equador é aquela de Alberto Acosta Rafael Correa, não fazem distinções, apesar do facto de agora serem feitas o tempo todo. Esta é a visão que nós faz falta para acreditar no que eu chamo de pluralidades despolarizada. Somos plurais, mas não podemos polarizar ao ponto de ficarem derrotados.

Mesmo por causa das polarizações, os processos de mudança que ocorrem com muita inovação não são realmente visíveis. Olhe, como sociólogo eu não parei de ir no seio da comunidade. Agora estou a terminar um projecto sobre a justiça indígena na Bolívia e no Equador, com uma extensa pesquisa na comunidade.

É notável a riqueza da diversidade cultural, a tradicional ligação entre a coisa tradicional e a coisa moderna, a coisa eurocêntrica e a coisa ancestral, o que é feito nos territórios duma forma simples, sem grandes polarizações, as policiais que usam a autoridade ancestral, as autoridades ancestrais que falam com os defensores do País e conseguem entender-se.

Depois temos um nível macro, maior, com uma polarização enorme, onde os companheiros nativos rapidamente passam a ser considerados um obstáculo à mudança, porque eles não querem uma estrada, porque querem os direitos que são uma conquista colectiva, outra coisa que a Esquerda europeia ou eurocêntrica nunca conseguiu entender.

Mas devemos considerar, no entanto, que entra em jogo, neste como em outros Países da região, o facto destes serem processos muito complexos, com paixões que dão pouco espaço para o debate …

Tens razão, são muito rápidos e os novos processos não vêm de considerações teóricas da Esquerda conhecida como tal; as novidades chegaram com as notícias de outros movimentos sociais, a partir de outros actores.

De alguma forma a velha Esquerda tenta aprender, mas na realidade posso ver é que não têm aprendido o suficiente e também os movimentos deixaram caracterizar-se em demasia. Temos uma crise da Esquerda que não está ciente dessa complexidade, que não está em condições de compreender as contradições, o que pode fazer e o que não pode fazer.

Talvez tenhamos uma crise de liderança dos movimentos sociais também, incapacidade de compreender como as bases estejam a gerir as contradições do processo, no caso, por exemplo, das políticas que favorecem a inclusão, mas que ao mesmo é uma inclusão que exclui.

Uma coisa é criar uma nova economia, onde as pessoas possam prosperar numa economia popular e solidária, outra coisa é distribuir vouchers. Por os vouchers deixam sair da pobreza, mas não te deixam sair duma sociedade onde sem vouchers voltas para a pobreza. E, na prática, a política dos vouchers são as únicas políticas sociais que vemos no continente.

Fonte: Alai
Tradução: Informação Incorrecta