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As consequências da guerra no Líbano

Em Outubro de 2019, milhões de libaneses exasperados foram para as ruas exigindo uma mudança da classe política que está no poder há décadas. Um sistema de poder corrupto, fechado, que tem sido transmitido de geração em geração desde antes da guerra civil (1975-90) ligado sobretudo à filiação político-religiosa. Desde 2019, as contas bloqueadas foram praticamente esgotadas pela desvalorização da moeda local: o Dólar, a moeda oficial à qual a Lira libanesa está indexada a uma taxa formal de 1507.05 Liras por cada Dólar, está agora a 24/25 mil no mercado negro. E nos últimos meses tinha atingido 34 mil.

O vizinho incómodo

História triste aquela do Líbano, País que, apesar dos períodos de instabilidade política e religiosa (os seis milhões de habitantes dividem-se entre um 56% de cristão e 44 % de muçulmanos), tinha alcançado uma assinalável prosperidade económica na décadas dos ’70, ganhando o título de “Suíça do Médio Oriente”. Era altura do Presidente Fu’ad Shihab, o homem que tinha conseguido o “milagre” dum precário equilíbrio religioso unido a um forte crescimento dos negócios.

“Milagre” que desmoronou em 1975, quando as forças muçulmanas provocaram uma insurreição que precipitou o País numa guerra civil da qual ainda hoje não recuperou. Na verdade, o problema do Líbano tem um nome: israel. O incómodo vizinho não quer um Líbano forte e deixou isso claro em 1978, com a Operação Litani, e ainda mais em 1982, com a Operação Paz na Galileia, com as quais invadiu o País (pelo que, camuflar as invasões como “operações” não é uma novidade dos dias de hoje). A partir daí, o Líbano nunca mais foi o que tinha sido. E não voltará a sê-lo até israle existir.

A dolarização da economia e a estrutura neoliberal implementada um País que produz apenas 20% das suas necessidades primárias e secundárias, levou a classe média e os que não têm acesso ao Dólar em ruína.

Preços altíssimos, uma total ausência de controlo e especulação desenfreada. 74% da população vive na pobreza. Se tivermos também em conta o acesso à saúde, educação e serviços públicos, a percentagem sobe para 82%, o dobro dos 42% em 2019. mas isso foi antes da guerra na Ucrânia.

As repercussões da guerra

Uma situação dramática ainda agravada pela guerra na Ucrânia: o Líbano depende em 60% da Rússia e da Ucrânia para a importação de trigo e óleo de sementes, como acontece também nos casos de o Egipto e a Tunísia e de todo o Médio Oriente mais no geral.

Trigo e, portanto, pão com um forte valor simbólico. A explosão no porto a 4 de Agosto de 2020 (mais de 200 vítimas, 7.000 feridos e 300.000 deslocados) destruiu os maiores silos de cereais do País, onde foram armazenadas 2.750 toneladas de nitrato de amónio.

As reservas de cereais, de acordo com o Ministro da Economia, deveriam estar a esgotar-se. E o preço do pão já subiu. Tal como o preço do petróleo, ao qual está ancorado um dos problemas mais graves e estruturais do País, a electricidade, que é produzida quase inteiramente com gasóleo, bem como o transporte, que é inteiramente rodoviário. A gasolina subiu para mais de 500.000 Liras por galão, um custo recorde para o Líbano.

Apenas 2-3 horas por dia de electricidade pública, o resto é deixado aos produtores privados, a quem os libaneses normalmente chamam “mafiosos”. São eles que têm geradores espalhados por todo o lado e que fazem enormes lucros com a ineficiência pública, deixando o País sem electricidade durante 10-12 horas diariamente.

Vésperas de eleições?

Nesta situação dramática, há pouca campanha política para as eleições de 15 de Maio. As renúncias de Hariri, do actual primeiro-ministro Mikati, de Salam e de Siniora, históricas figuras sunitas, deixam um vazio de poder. Detalhes técnicos difíceis de compreender mas necessários para desvendar o puzzle político libanês.

Riade está a trabalhar para reforçar o eixo anti-Hezbollah e voltar à proeminência no Líbano com o apoio da França. Nas últimas horas, o anúncio de que os embaixadores sauditas e kuwaitianos irão regressar ao Líbano nos próximos dias. Também na órbita saudita está o chefe cristão das Forças Libanesas, que rejeita o eixo com o Hezbollah.

A crise ucraniana terá também um efeito nas relações entre Rússia, Irão, Síria e Hezbollah: e aqui o cenário, que envolve o poder atómico israelita no seu confronto histórico com o Irão, torna-se outro elemento potencial de crise planetária.

Dramático é o relato de Julien Ricour-Brasseur no diário L’Orient-Le Jour que descreve uma “pobreza multidimensional” e a alma comercial libanesa estrangulada que deixa espaço apenas para os cambistas de dinheiro. Depois da Lira libanesa ter perdido mais de 90% do seu valor desde o início da crise e de terem sido impostas restrições bancárias às contas em moeda estrangeira, os cambistas tornaram-se interlocutores indispensáveis para os libaneses, fazendo malabarismos entre a Lira e o Dólar.

A cereja no topo do bolo

Da “Suíça do Médio Oriente” nada sobrou: os políticos libaneses estimam as perdas do sector financeiro em “60 mil milhões de Euros”. Este foi quanto declarado aos responsáveis do Fundo Monetário Internacional com o qual, em Abril de 2020, o governo concordou um plano de reforma económica para baixar o rácio da Dívida em relação ao PIB em troca dum empréstimo-ponte de 10 mil milhões de Euros.

Porque não chegava israel, era preciso o FMI também. Este apelou à reforma do sector bancário, ao congelamento das contratações no sector público e, obviamente, ao aumento dos impostos. A receita mágica que tanta felicidade espalhou pelo mundo fora.

 

Ipse dixit.

Imagem: Lisa Hastert via Flickr CC 2.0 Generic (CC BY-NC-ND 2.0)