A estrutura neonazista na Ucrânia apoiada pelo Ocidente

A guerra na Ucrânia produziu um fluxo ininterrupto de acusações e contra-acusações de cada lado. Verdades, meias verdades e mentiras gritantes competem para assegurar o domínio da narrativa nos meios de comunicação social do mundo.

Entre as acusações, há aquela segundo a qual na Ucrânia operam, e não desde hoje, elementos nazistas. O que há de verdadeiro nisso?

Para responder seria inútil consultar publicações de Esquerda ou pró-Rússia. As melhores fontes neste caso têm que ser procuradas entre as fileiras de quem defende o governo ucraniano e, ao mesmo tempo, combate a Rússia. Por exemplo: Bellingcat, site de jornalismo de investigação com sede na Holanda, fundado pelo jornalista britânico Eliot Higgins em julho de 2014, financiado pela Open Society Foundation de George Soros, pelo National Endowment for Democracy (fundos do Congresso dos EUA) e pela Digital News Initiative (Google). Difícil pensar na Bellingcat como em algo próximo da propaganda russa.

Financiados pelo Estado

O Estado ucraniano, desde 2014, tem fornecido financiamento, armas e outras formas de apoio às milícias de extrema Direita, algumas das quais são abertamente neo-nazis. A cobertura da Bellingcat acerca deste fenómeno, frequentemente negligenciado, centrou-se principalmente no movimento Azov, a mais poderosa organização de extrema Direita da Ucrânia e um dos principais beneficiários do apoio estatal.

O movimento Azov foi fundado em 2014 por Andriy Biletskyj (antigo líder do grupo neonazi ucraniano Patriots da Ucrânia) durante a batalha pelo controlo da Praça da Independência, em Kiev, e a revolta chamada EuroMaidan contra o então Presidente Viktor Janukovič. Em 2010 Biletskyj declarou que um dia seria a vez da Ucrânia “liderar as raças brancas do mundo numa cruzada final contra os untermenschen (sub-humanos) encabeçados pelos semitas”.

Em 2014, o movimento Azov desempenhou um papel na luta contra as forças de segurança ucranianas que resultou em 121 mortes e consagrou o sucesso da revolta. Após obter do Ministério da Defesa a utilização de um grande edifício perto da Praça da Independência, o grupo Azov transformou a estrutura (rebaptizada Casa Cosacca) no seu quartel-general e centro de recrutamento em Kiev. Juntamente com salas de aula para actividades de formação financiadas pelo Estado, a Casa Cosacca aloja a editora Plomin, onde são organizados seminários de extrema Direita, rodeados de retratos de mitos fascistas como Yukio Mishima, Corneliu Codreanu e Julius Evola.

Azov pôde contar com o apoio de Arsen Avakov, um poderoso oligarca e ministro do Interior da Ucrânia entre 2014 e 2019. A Ucrânia não é um Estado nazi, mas o apoio do Estado a organizações neo-nazis ou para-nazis torna o País uma excepção na paisagem europeia. Só na Ucrânia estas organizações possuem tanques e unidades de artilharia graças ao apoio do Estado. E no passado, antes da invasão russa, esta relação de proximidade entre um Estado “liberal-democrata”, aliado do Ocidente, e um grupo de homens armados que representam uma ideologia profundamente diferente criou não pouco embaraço entre alguns dos aliados ocidentais da Ucrânia: ao ponto que, em 2019, alguns parlamentares democratas norte-americanos apelaram para que Azov fosse colocado na lista de organizações terroristas a nível mundial.

Mas a invasão russa parece ter invertido a espiral descendente que se seguiu à demissão de Avakov, devido à pressão internacional. Até há algumas semanas, o Ocidente continuou a esforçar-se por não armar Azov directamente, mas agora o movimento parece ter-se tornado um dos principais destinatários das munições e treino oferecidos pelo Ocidente.

O trabalho de Bellingcat é precioso pois ao longo dos anos seguiu a questão dos nazistas ucranianos fornecendo reportagem detalhas.

Em 2019, por exemplo, Bellingact relatou que o governo da Ucrânia tinha reservado oito milhões de Hryvnias (mais de 300.000 Dólares) para aquilo a que chamava de “projectos de educação nacional-patriótica” destinados à juventude ucraniana, incluindo crianças. Um total de 845.000 Hryvnias (mais de 30.000 Dólares) foram para programas geridos por vários ramos de grupos de extrema Direita ucranianos, incluindo o Corpo Nacional, a ala política do movimento Azov. O Corpo Nacional já na altura estava implicado em numerosos incidentes contra minorias, activistas e polícia. O total de 845.000 Hryvnias também incluía o financiamento estatal em prol de outra notória organização de extrema Direita, a C14, liderada pelos acusados do assassinato do repórter ucraniano Oles Buzyna.

Tanto o Corpo Nacional como a C14 foram explicitamente descritos num relatório de Março de 2019 do Departamento de Estado dos EUA como “grupos de ódio nacionalistas“, e como “extremistas” num relatório da Freedom House de 2018 sobre o extremismo de extrema Direita na Ucrânia.

Sempre em 2019, Bellingcat mostrava as ligações entre os grupos nazis da Ucrânia, as formações da extrema Direita francesa. e elementos radicais (sempre neonazistas) norte-americanos.

Um ano antes, em 2018, Bellingcat já tinha apresentado um esquema da principal estrutura neonazi na Ucrânia, que podemos resumir desta forma:

Os homens

Arsen Avakov, Ministro dos Assuntos Internos da Ucrânia desde 2014 (agora demitido) e patrono político do grupo Azov, cujos laços com os ultranacionalistas ucranianos remontam a quase uma década, de acordo com Anton Shekhovtsov, reconhecido investigador da extrema Direita europeia. Foi sob o comando de Avakov que o grupo Azov foi incorporado na Guarda Nacional. Apesar de ter sido apresentada como uma medida para desarmar o batalhão ultra-nacionalista, o resultado foi o seu crescimento e a ramificação no partido político do Corpo Nacional.

Andriy Biletsky, chefe do movimento Azov e membro do Parlamento da Ucrânia. Toda a vida de Biletsky foi passada na política ultra-nacionalista, foi ele que cultivou Azov a partir de um grupo de militantes mal armados e hooligans do futebol até torna-lo um grande movimento de nível nacional. Biletsky goza do patrocínio do ex-Ministro dos Assuntos Internos da Ucrânia Arsen Avakov e está alegadamente ligado a este último há quase uma década.

Andrzej Bryl é o fundador do forte Grupo de Segurança Delta, que inclui a Academia Europeia de Segurança (ESA), com mais de 1500 funcionários. Bryl é um especialista militar e de segurança que actua na Polónia, com alegadas décadas de experiência que inclui a cooperação com os militares polacos.

Bartosz Bryl é director-geral da ESA. Embora Bryl insista que a empresa negaria a formação a ultra-nacionalistas, a ESA prestou serviços ao controverso Regimento Azov e treinou ultra-nacionalistas que ocupam posições de liderança em organizações com um historial de violência, indivíduos que professam abertamente o apoio ao “nacional-socialismo” e à supremacia branca, e os que estão atolados em ataques racistas de alto nível na Ucrânia.

Sergiy Korotkih é um dos comandantes de combate e líderes organizacionais de Azov, antigo cidadão da Bielorrússia com ligações a organizações neo-nazis na Rússia. Foi-lhe concedida a cidadania ucraniana pelo Presidente Petro Poroshenko em 2014. É alegadamente um associado próximo de Arsen Avakov como chefe do Departamento para a Protecção de Objectos Estratégicos da Polícia Nacional da Ucrânia, uma unidade policial que aparentemente recebeu formação da ESA na Ucrânia em Julho de 2016.

Nikita “Odissey” Makeev é um veterano de Azov, um cidadão russo, estagiário da ESA em 2016. É um líder da GO Zirka (Organização Cívica “Defesa e Reconstrução do País”), uma organização satélite do Corpo Nacional de Azov e das Milícias Nacionais.

Ihor “Maliar” também é um veterano de Azov e uma figura proeminente na cena de extrema Direita da Ucrânia, com um enorme seguimento online de quase 20.000 pessoas. Foi um participante activo em alguns dos momentos icónicos e mais controversos da Ucrânia durante as manifestações da Euromaidan, bem como o autor de um ataque racista em 2015 que foi amplamente noticiado nos meios de comunicação social internacionais. Também Maliar recebeu formação sofisticada da ESA em 2016.

Ivan Pilipchuk é um alegado veterano da guerra na Ucrânia e é actualmente um dos líderes da “Tradição e Ordem”, uma violenta organização ultra-nacionalista ligada pela Human Rights Watch a ataques contra ciganos ucranianos, pessoas LGBT, e activistas dos direitos LGBT. Pilipchuk se auto-identifica como um “nacional-socialista” e fez parte de um grande grupo que treinaram na Polónia com a ESA em 2017.

Vadim Lapaev “Balak” é um veterano de Azov, e activista da Milícia Nacional. Ultra-nacionalista, conseguiu obter múltiplas certificações da ESA.

As organizações

O Regimento Azov (também chamado Batalhão Azov ou apenas “Azov”) é efectivamente um destacamento autónomo de operações especiais na Guarda Nacional da Ucrânia, há muito tempo mergulhado em controvérsia devido à sua ideologia de extrema Direita, juntamente com acusações de violações dos direitos humanos por parte do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACDH). Azov é um movimento com três vertentes, com um poder militar bem treinado e armado integrado na Guarda Nacional Ucraniana, um movimento político crescente com um partido político próprio, o Corpo Nacional, e um movimento de “vigilantes ” de rua chamado Milícia Nacional. Os instrutores da ESA lideraram uma semana intensiva de formação para o Azov na Ucrânia em 2016, desenvolveram um campo de treino para o regimento e treinaram veteranos e activistas de Azov do movimento noutras ocasiões.

A Academia Europeia de Segurança (ESA) é um grande prestador de formação militar e de segurança, com sede em Wroclaw, Polónia. O Discovery Channel descreveu a ESA como a “academia de segurança de topo mundial”, e o centro de treino da ESA perto de Poznan, Polónia, é o maior fora dos Estados Unidos, de acordo com a BBC. Embora a ESA tenha dito à Bellingcat que negaria formação a membros de organizações ultra-nacionalistas violentas e neonazis, a empresa forneceu formação a membros supremacistas e neonazis do Regimento Azov e treinou outros membros de organizações ultra-nacionalistas ucranianas; há bastante material fotográfico neste sentido publicado pela mesma ESA.

O Departamento para a Protecção de Objectos Estratégicos da Polícia Nacional da Ucrânia é uma unidade de polícia de protecção chefiada por um destacado líder Azov com ligações ao Ministro do Interior da Ucrânia. Dados fotográficos sugerem que a ESA formou a unidade em Julho de 2016, e a Bellingcat ligou numerosos participantes desta formação a Azov e a organizações violentas de extrema Direita sempre ligadas a Azov.

O Corpo Nacional é o partido político de extrema Direita de Azov, fundado em 2016 e chefiado por Andriy Biletsky. O partido tem dois membros no parlamento Verkhovna Rada da Ucrânia e pretende, entre outras coisas, restabelecer a Ucrânia como um Estado com armas nucleares, promove o “Ucrainocentrismo”, opõe-se às instituições da UE que descreve como “a burocracia de Bruxelas”. A ESA formou destacados activistas do Corpo Nacional, possivelmente contribuindo para a capacidade de violência do partido.

A Milícia Nacional é o ramo de rua da Azov, chefiado pelo antigo comandante militar do regimento. Juntamente com o Corpo Nacional, terá levado a cabo ataques a minorias na Ucrânia, e procura espelhar as funções de aplicação da lei para fazer cumprir a “ordem ucraniana”.

GO Zirka (Organização Cívica “Defesa e Reconstrução do País”) é uma organização satélite do movimento Azov, chefiada por Sergiy Korotkih, antigo comandante militar de Azov e actual chefe do Departamento de Protecção de Objectos Estratégicos da Polícia Nacional da Ucrânia.

Tradição e Ordem é uma organização ultra-nacionalista violenta em expansão agressiva, que alegadamente tem levado a cabo ataques contra ciganos ucranianos, indivíduos LGBT, e activistas dos direitos LGBT. Proporciona formação avançada em armas de fogo e tácticas de combate aos membros.

Material é algo que não falta nas páginas de Bellingcat: é só aceder ao site, selecionar o tag Azov à esquerda e começar a ler.

Até à invasão russa, governos e meios de comunicação social ocidentais relatavam os perigos representados pelo neo-nazis e supremacistas brancos ocidentais que ganhavam experiência de combate ao lado do grupo Azov e de outras facções neo-nazis. Neste momento, contudo, as preocupações parecem ter desaparecido: existe relutância em falar abertamente sobre o papel da extrema Direita na Ucrânia, em parte por medo de favorecer a propaganda russa enquanto os grupos nazis locais nada fazem para ocultar a sua ideologia.

Mas existe diferença entre “ignorar” e “armar”: e o Ocidente já não se limita a não tratar do assunto como até refornece com armas e formação os grupos neonazis ucranianos. A verdade é que, neste momento, a Ucrânia de Zelenskyj precisa das capacidades militares e do zelo ideológico das milícias nacionalistas e de extrema Direita para vencer a batalha pela sobrevivência. E admitir honestamente que os extremistas nazis estão a lutar na Ucrânia não significa favorecer Putin, significa assumir um facto incontroverso: o Ocidente está a apoiar milícias neonazis. O que, dito entre nós, nem é a primeira vez.

 

Ipse dixit.

3 Replies to “A estrutura neonazista na Ucrânia apoiada pelo Ocidente”

  1. É impressão minha ou, guardadas as devidas proporções, há uma pequena semelhança entre o batalhão Azov e a SS de A.H. no que se refere ao apoio ao Estado e a defesa de uma suposta “raça” superior?

Obrigado por participar na discussão!

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