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A “doutrina Gerasimov”: nenhuma surpresa

Um artigo para tentar perceber o que se passa na Ucrânia no plano militar. E, mais uma vez, para reiterar o conceito: o Ocidente, Europa incluída, sabia dos planos de Moscovo e tinha tudo tanto para prever quanto para preparar-se. O que não aconteceu. O andamento da guerra na Ucrânia e a previsibilidade da mesma são dois assuntos distintos? Não, são a mesma coisa.

Valery Vasilyevich Gerasimov é um General russo do Exército, actual Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas da Federação Russa e primeiro Vice-Ministro da Defesa. A importância da figura de Gerasimov vai muito além das fronteiras russas: é ele o estratega que concebeu a “doutrina Gerasimov”, uma combinação de tácticas militares, tecnológicas, informativas, diplomáticas, económicas, culturais que têm como fim atingir objectivos estratégicos. Portanto: trata-se daquela que hoje é definida como “guerra híbrida”.

Em verdade, o caso é um pouco mais curioso do que isso: em origem, a “doutrina Gerasimov” não passava dum discurso escrito pelo General e publicado no jornal russo Military-Industrial Courier. E era um discurso de táctica militar defensiva. Todavia, erros de tradução e paranoia ocidental transformaram um simples discurso numa completa doutrina ofensiva. Sabemos disso porque a pessoa que primeiro escreveu acerca desta “nova doutrina” no Ocidente era Mark Galeotti, especialista em assuntos russos, que em tempos não suspeitos (em 2018) pediu desculpa pelo erro.

Todavia a máquina estava em marcha e ainda hoje a “doutrina Gerasimov” é considerada como a táctica militar implementada no exército de Moscovo. O que é altamente provável, para não dizer certo: afinal a “doutrina” não introduzia elementos novos e, partindo da análise das Revoluções Coloridas, limitava-se a descrever os novos instrumentos utilizados nas guerras das últimas décadas. Mas há alguns detalhes que merecem ser realçados.

Antes de mais: Vladimir Putin bem conhece Gerasimov e as ideias dele. Foi o próprio Presidente russo que nomeou Gerasimov qual Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas da Federação Russa e primeiro Vice-Ministro da Defesa, já em 2012. Mais: o General também introduziu com o passar do tempo algumas medidas para reformular os planos tácticos militares do exército de Mosocvo, tendo como ponto de partida o conceito da moderna guerra híbrida. É óbvio que nada disso teria sido possível sem a directa aprovação do número um do Kremlin.

Blitzkrieg? Nem pensar!

Um dos pontos centrais é: nada de ataques frontais. O General, lembrando a negativa experiência russa no Afeganistão, insiste nesta ideia: nunca atacar o inimigo pela frente, nada de blitzkrieg. O que Gerasimov prefere é a criação de “bolsas” onde fechar os adversários, sem apertar imediatamente o nó. Os alvos (neste caso as principais cidades) devem ser cercados e “esfomeados”, à espera que caiam sozinhos: Gerasimov nunca arriscaria uma luta de casa em casa.

É exactamente o que acontece na Ucrânia: os russos em Kiev (e não só) são “lentos”. Aplicam o protocolo do seu comandante. O mesmo que quer a actuação de unidades especiais atrás das linhas inimigas, a utilização de armas de precisão para atingir o inimigo a longa distância (mísseis e artilharia) e, acima de tudo, o emprego de “contractors”: mercenários paramilitares (ou voluntários), contratados não por falta de unidades de combate, mas pela sua experiência.

A “doutrina” em seis pontos

Voltando atrás, e observando tanto o que aconteceu no Donbass nas semanas anteriores à invasão quanto o desenvolvimento da mesma, podemos reencontrar a aplicação da “doutrina”.

I – Nas suas primeira fases, a “doutrina” prevê uma desestabilização do Estado adversários com o objectivo de enfraquecer as instituições onde está planeada uma mudança.

O Kremlin, então, explora uma possível componente russófona (ou um grupo étnico próximo da Rússia), que pode tornar-se como uma espécie de “quinta coluna” de Moscovo. Graças a eles, são planeados actos de desestabilização que podem chegar à guerrilha ou até à guerra: o objectivo é aquele de aumentar a possível repressão das forças de segurança contra a comunidade de língua russa. Pode parecer masoquismo: mas isso cria uma forte reacção por parte da comunidade oprimida. Com o apoio russo, os grupos étnicos de língua russa encontram partidos políticos que tentam opor-se ao governo; neste cenário, Moscovo apoia os movimentos políticos rebeldes através da construção de campanhass anti-governamentais.

No caso do Donbass é simples observar como o apoio aos independentistas e o sucessivo reconhecimento das Repúblicas de Donetsk e de Luhansk vai mesmo nesta direcção.

II – Se a primeira fase alcançar o sucesso esperado, passa-se para a segunda, que vê a Rússia implementar estratégias destinadas a aumentar a tensão. Foi o que se passou nas fronteiras entre Ucrânia e Bielorrússia, onde Moscovo reuniu tropas ao longo de meses.

III – A terceira fase inclui a criação duma false flag (no caso da Ucrânia não foi preciso: esta é mais uma especialidade de Washington) enquanto Moscovo começa a falar duma possível ameaça aos interesses nacionais russos e da segurança da Federação como justificação pela mobilização militar.

IV – A quarta fase é aquela das primeiras operações militares das forças regulares, que visa adquirir os principais pontos estratégicos e as instalações, neutralizando as forças inimigas, destruindo as suas capacidades bélicas e, posteriormente, isolando o governo adversário.

No caso da Ucrânia: a Rússia varreu o exercito local e começou o cerco da capital Kiev

V – O conflicto termina com a quinta fase, na qual o governo russo tenta maximizar as suas vantagens, moldar o aparelho de Estado e estabelecer um governo sob a sua influência política (a pedido da comunidade internacional, acrescenta Gerasimov, mas não será este o caso da Ucrânia).

VI – Final feliz com a sexta fase: a restauração da ordem no País no qual as forças russas ocupam pontos estratégicos com autorização do governo, agora controlado e amigo. No caso da Ucrânia, temos que considerar as duas áreas do País que já caíram sob a influência directa de Moscovo (as duas Repúblicas do Donbass), mais a Crimeia. Extremamente difícil pensar que Putin deseje ocupar mais zonas.

Como é possível observar, não há por aqui nada de “revolucionário”: são estes os princípios que guiam os exércitos nas guerras de hoje. Moscovo limita-se a aplicar os ditames da guerra híbrida, tal como fazem outros.

Mais interessante: este enredo explica o que está a passar-se no terreno hoje. Gerasimov não tem a mínima intenção de atirar-se contra as forças defensivas de Kiev numa espécie de “batalha” histórica: aquela do Geral russo é uma guerra de desgaste. Moscovo não tem interesse em acelerar os confrontos: o exército de Kiev está reduzido em pedaços e não há outras forças que possam juntar-se aos resistentes. Uma eventual intervenção ocidental neste sentido significaria a guerra total, então Kiev seria o último dos problemas.

Os bombardeios de longa distância fazem explicitamente parte da “doutrina”: não empenham directamente os soldados russos e, ao mesmo tempo, mantêm os adversários debaixo duma constante ameaça.

Realce também para a utilização de mercenários: também este pormenor é previsto pela tal “doutrina Gerasimov” e sabemos que Moscovo está a utiliza-los.

Como já afirmado: nada de revolucionário por aqui, tudo amplamente previsível e previsto à luz da moderna doutrina bélica. O Ocidente sabia dos planos de Moscovo e tinha tudo tanto para prever quanto para preparar-se, pois os sinais enviados eram claros aos olhos dos especialistas.

Teria sido obrigatório tentar uma solução diplomática, a qualquer custo, para evitar a guerra. Em particular, os responsáveis políticos europeus tinham não a possibilidade mas o preciso dever de encontrar (ou pelo menos sugerir) uma solução pacífica. E não aconteceu.

 

Ipse dixit.

Imagem: Vladimir Putin com o Geral Gerasimov (à direita), fonte Kremlin