Mas sabiam que afinal há outras guerras?

Os ucranianos? Coitadinhos dos Ucranianos que sofrem no meio duma guerra! E os gajos nos outros conflictos? Que morram. Este, ao menos, é o princípio que parece guiar os órgãos de informação.

Como sabemos, as guerras não são todas iguais. Aquelas da África, por exemplo, são menos iguais do que as outras, mas também aquelas no Médio Oriente não têm muita procura. Se o Leitor tenciona provocar um conflito, evite tanto o Continente Negro quanto a Ásia mais próxima: não importa quantas mulheres ou crianças serão massacradas, não contam os hospitais pediátricos explodidos, pois a sua guerra será um fracasso.

A pergunta é: por qual razão há guerras, com relativos horrores e mortos, que são ignoradas? Na verdade há mais do que uma motivação.

  • Síria

A Síria por exemplo. Aí a luta pela conquista de território abrandou, mas nunca terminou completamente. O cessar-fogo acordado no noroeste do País no início de 2020 não impediu confrontos armados em Idlib, a área ainda nas mãos de forças anti-governamentais, que complicaram ainda mais a já difícil situação humanitária. A luta pelo poder ainda está em curso.

Grande parte do País foi destruída pelos combates, incluindo seis sítios classificados como Património Mundial da UNESCO.

Porque é que é ignorada? Porque perdeu a graça toda com a saída dos americanos. Até lá era uma guerra jeitosa, havia enviados da imprensa, câmaras, havia Assad que encarnava o Mal, o perigo do Irão, o ISIS, a Turquia… agora só os israelitas tentam despertar um pouco de atenção de vez em quando com um bombardeio. Mas é pouco para uma guerra que perdeu o interesse.

  • Yemen

No Yemen, 2020 e 2021 foram os anos mais cruciais dos seis já passados no meio do conflito e ao mesmo tempo os que já definiram, no sul do País, um reequilíbrio das forças militares no terreno e da representação política e tribal no governo central. O quadro geral parece apontar para uma possível resolução do conflito com uma divisão do Yemen entre Norte e Sul (como já existia até 1990) e uma hipótese de federação a longo prazo. Tudo isto não sem uma batalha final entre o governo central e os aliados sauditas contra o governo não reconhecido das tribos Houthi do norte para a conquista da província rica e estratégica de Marib.

Porque é que é ignorada? Aqui a explicação é muito simples: porque as Forças do Bem estão empenhadas numa guerra despoletada apenas para interferir nos assuntos internos do Yemen. E não é só isso: até estão a levar pancadas. Então melhor ignorar tudo, incluindo as mais de 84.000 crianças mortas de fome até finais de 2018, e fazer de conta que nada se passa.

  • Somália

A Somália é o teatro de instabilidade política e duma maciça presença do terrorismo islâmico. A capacidade do grupo extremista islâmico al-Shabab para se infiltrar através da fronteira é preocupante. Nos últimos meses de 2021, os ataques nas zonas urbanas intensificaram-se. Uma parte minoritária do grupo terrorista separou-se e esta ruptura teve um forte impacto na população: entre o final de 2018 e os primeiros meses de 2019, ambos os grupos, o pró-Al Qaeda e aquele pró-ISIS, começaram assaltar a população e as empresas para auto-financiar-se.

Porque é que é ignorada? Este é um caso parecido com o da Síria: teve graça até as forças ocidentais estarem envolvidas (1993), depois tornou-se aborrecido e até incompreensível. Em Julho de 2012 foram lançadas três operações da União Europeia para a segurança no mar (que depois significa “a segurança dos petroleiros”) e em 2013 os EUA fizeram um último esforço com o filme Capitão Phillips, interpretado por Tom Hanks. Mas nada disso resultou. Na prática, estamos a falar de mais de trinta anos de guerra, com um total estimado entre 300 mil e 400 mil mortos. Comovente? Não parece.

  • Etiópia e Eritreia

Há meses, o exército federal etíope entrou na capital do Tigray, Mek’ele, expulsando o governo da Frente de Libertação Popular de Tigray (TPLF). O número exacto de mortos e feridos, tanto militares como civis, é actualmente desconhecido. Importa? Não muito.

Até Fevereiro de 2021, a Etiópia negava constantemente a presença de tropas da Eritreia no seu território, assim como negava os ataques contra quatro campos habitados por refugiados entre Dezembro de 2020 e o início de 2021 (pelo menos 10.000 deportados). E depois houve os massacres de civis e violações em grupo (Axum, Novembro de 2020, entre 100 e 800 civis mortos), todos imputados às tropas da Eritreia por numerosas organizações de direitos humanos.

No final de 2021, 14 meses após o seu início, a guerra civil que põe Adis Abeba contra as forças regionais do Tigray parece ter entrado numa fase de reciproco desgaste.

Porque é que é ignorada? Porque a Etiópia fica demasiado perto da Somália. E isso faz confusão: já é difícil perceber o que acontece no País vizinho, se juntarmos a Etiópia e a Eritreia o caos é total. E nós não gostamos do caos.

Mais: desde 1961 até hoje, a região conheceu apenas um curto período de relativa paz, entre 1991 e 1998. Duma certa forma, quem aí vive está habituado e, em qualquer caso, não é possível ficar comovidos ou interessados com uma guerra que dura há quase 60 anos em dois Países sem recursos naturais. Há um limite. Melhor deixar tudo como está.

  • Mali

No Mali, houve dois golpes de Estado em menos de nove meses. Após ter deposto o então Presidente Ibrahim Boubacar Keita na sequência de uma longa série de protestos populares, a junta liderada pelo Coronel Assimi Goita voltou a exercer a sua influência na política nacional desde Maio de 2021. Uma remodelação governamental que tentou reequilibrar os poderes civis do Conselho Nacional de Transição (NTC), o organismo encarregado de conduzir o País para eleições livres (inicialmente previstas para Fevereiro de 2022), foi o rastilho que desencadeou os homens de Goita. Os veículos blindados regressaram às ruas de Bamako, a capital.

Vários políticos, activistas e cidadãos foram presos, grupos armados começaram a proliferar (incluindo os independentistas tuaregues e as milícias de autodefesa étnica) submetendo as populações do centro e norte do Mali à violência e assédio diários.

Porque é que é ignorada? Apesar do Mali ser um País miserável, há minas de ouro (3º produtor da África) e de fosfato. Quem gosta de ouro e fosfatos? A França. Mas também aqui as Forças do Bem estão a levar pancadas: a missão galesa demonstrou ser incapaz de repor a ordem, também porque os franceses estão deslegitimados há anos. Mas Paris considera o Mali como o “quintal” dela e a ONU não quer irritar Macron, que é homem dos Rothschild. Portanto: melhor continuar a ignorar.

Original: Futuretrillionaire via Wikipedia Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported
  • Burkina Faso

O Burkina Faso tornou-se o epicentro da crise devastadora que assola todo o Sahel. Uma emergência humanitária, social, sanitária e política devido à fome e às acções cada vez mais violentas dos grupos extremistas islâmicos. Uma violência que se intensificou nos últimos dois anos, especialmente nas regiões do norte do País, caracterizadas por ataques das forças rebeldes, grupos islamistas ou por vezes até das chamadas milícias de “auto-defesa”.

Escolas, mercados e poços de água são os mais visados. Um golpe militar a 24 de Janeiro de 2022, promovido pelo Movimento Patriótico para a Salvaguarda e Restauração, viu o Presidente Roch Marc Christian Kaboré ser deposto e preso.

Porque é que é ignorada? No geral porque estamos a borrifar-nos acerca de tudo o que se passa no Sahel. Depois há a questão do nome: Burkina Faso mais parece um prato exótico. “Duas doses de Burkina Faso, por favor, a minha bem passada”. A guerra é uma questão de marketing também, e no Burkina Faso falharam redondamente. Para completar o quadro: o Burkina Faso não tem recursos, além de algumas quantidades limitadas de manganês. E ninguém fica comovido só com o manganês.

  • República Democrática do Congo e Sudão

Quanto à República Democrática do Congo, embora formalmente não esteja em guerra, a região do leste continua a ficar na posse de centenas de grupos armados, muitos dos quais são bandas locais ligadas ao controlo do território e dos seus recursos. Há também milícias mais estruturadas que desestabilizam algumas áreas. Tendo superado a crise de segurança na região central do Kasai, os problemas concentram-se agora nas três províncias orientais do Kivu Sul, Kivu Norte e Ituri. De longe a pior situação é aquela da área de Butembo-Beni, no Kivu do Norte, onde as Forças Democráticas Aliadas (ADF) têm levado a cabo massacres de civis com uma violência sem paralelo desde 2014.

O ADF está a atacar aldeias, matando barbaramente civis com armas brancas, semeando o terror e provocando a fuga de pessoas. Ao mesmo tempo, o Sudão do Sul (que faz fronteira com o Congo) está nas mãos de uma elite militar que controla os recursos e massacra a população, pelo que entre os dois Países há grupos armados transfronteiriços que ditam a lei e que só idealmente se identificam com as principais partes em conflito. Uma verdadeira guerra dentro da guerra. Obviamente não faltam formas extremas de violência como assassinatos em massa, incluindo mulheres e crianças, mutilação e violação.

Porque é que é ignorada? Acerca do Sudão: honestamente, já demos. Lembram-se do Darfour? Exacto: ficámos comovidos há poucos anos com a crise humanitária do Sudão, agora chega.

E o Congo? Este é um caso muito peculiar. O País é riquíssimo em recursos naturais, tendo abundância de diamantes, cobre, cobalto e ouro: tem tudo para sensibilizar os nossos corações.

E nem faltaria material para títulos bombásticos: a guerra no Congo tem sido descrita como a mais violenta desde a Segunda Guerra Mundial. Em 2009, as pessoas continuavam a morrer a uma taxa estimada em 45.000 por mês e quase metade dos indivíduos que morreram de fome ou epidemia eram crianças com menos de cinco anos de idade.

Ainda hoje, no Congo há violações da lei humanitária e dos direitos humanos: um estudo do American Journal of Public Health, de 2015, concluiu que mais de 400.000 mulheres são violadas todos os anos no País e a situação não mudou nos anos seguintes, quando o Congo continuou a relatar os mais altos níveis de violência sexual do mundo.

Só na região de Kivu, as tropas armadas mataram mais de 1.900 civis e raptaram pelo menos 3.300 pessoas entre Junho de 2017 e Junho de 2019.

Abundância de recursos naturais e massacres sangrentos: aparentemente, a combinação perfeita. Mas não, ninguém fala dos problemas do Congo. Um mistério. Deve ser por causa dos mosquitos.

  • Líbia

A situação também é crítica na Líbia. Com as eleições de 5 de Fevereiro de 2021 sob a égide da ONU, a Líbia dotou-se de um novo executivo liderado por Abdul Hamid Dbeibah e Mohamed al-Menfi à frente do Conselho Presidencial. O “Governo de Todos os Líbios”, chamado a conduzir o País através da transição democrática até às eleições marcadas para 24 de Dezembro e depois adiadas, pôs formalmente fim à separação entre o governo de Fayez Al Serraj em Tripoli, conhecido como Governo do Acordo Nacional, e aquele leal ao Marechal Khalifa Haftar, com sede em Tobruk.

Mas entretanto, os traficantes de seres humanos, e as milícias que os apoiam, aceleraram as suas actividades, enquanto outra questão não resolvida é a dos mercenários estrangeiros que não só não deixaram o território como alegadamente reforçaram as suas posições em alguns locais.

Porque é que é ignorada? Porque o único motivo do empenho directo do Ocidente na Líbia era aquele de derrotar o “mau” Ghaddafi e entregar as reservas de petróleo e gás às companhias ocidentais. Uma vez obtido isso, o Ocidente foi-se, deixando o País no completo caos. Que calha mesmo bem, porque num País sem regras os traficantes de seres humanos podem continuar a exportar escravos para Europa.

  • Carabaque

Em 2020, uma guerra também eclodiu em Nagorno-Carabaque, no Cáucaso, entre as forças locais, apoiadas pela Arménia, e as forças do Azerbaijão, apoiadas pela Turquia. Após três cessar-fogos falhados, o Presidente do Azerbaijão Ilham Aliyev, o Primeiro Ministro arménio Nikol Pashinyan e a Rússia (a Rússia?!?) assinaram um acordo, que entrou em vigor a 10 de Novembro.

O fim dos combates, porém, não trouxe paz, embora tenha posto fim aos confrontos mais agressivos a que a região viu em quase três décadas. O número de vítimas está estimado em cerca de 6.000.

Porque é que é ignorada? Porque ninguém sabe que existe uma zona chamada “Carabaque”. Tive que espreitar Google Maps para entender do que estamos a falar. O que mais surpreende é que o Ocidente não tenha realçado os acontecimentos para demonstrar mais uma vez a infinita maldade de Putin, dado que a zona fica bem perto da fronteiras russas. Mas é verdade que afinal foram só 6.000 mortos, nada de grave.

  • Droga e “baixa intensidade”

Há mais guerras e confrontos sangrentos pelo planeta? Há.

No México continua a guerra dos cartéis da droga: um total de 350.000–400.000 mortes durante os anos de 2006 e 2021. Mas são mexicanos, que já são muitos, e a droga continua a atravessar a fronteira com os EUA, pelo que a situação está controlada.

Depois há a revolta na Cabinda (30 mil mortos); os confrontos na Nigéria (16.000 mortos); no Níger e no Chad (total das vítimas desconhecido); no Khyber Pakhtunkhwa (Norte do Paquistão, algumas dezenas de milhares de mortos), em Papua (outra guerra vintage: continua desde 1962, 100 mil – 500 mil mortos), na Tailândia do Sul (mais de 7.000 mortos até hoje), no Baluchistão (fronteira Irão e Paquistão: milhares de mortos). Se gostam do idioma português, não se esqueçam da revolta de Cabo Delgado, no Moçambique: não é grande coisa (uns 4.000 mortos e apenas 400 mil refugiados), mas é já algo…

Obviamente a lista poderia continuar pois aqui entramos no âmbito dos conflitos definidos como de “baixa intensidade”. Nelas há violência, refugiados e mortos, bastante até e por vezes ao longo de décadas: mas tudo fica diluído ao longo de anos e não faz mossa. Nenhum órgão de informação sério gastaria tinta e papel num conflito de “baixa intensidade”, todos em lugares distantes, nenhum dos quais põe em causa os nossos interesses: não é possível capturar a imaginação do Leitor com algo assim, não vende. Melhor empacotar tudo e pôr num estante com o rotulo “Problemas deles”.

  • Vacinas

Então não é uma guerra? Só na Europa 40 mil mortos em pouco mais dum ano, mais do que na invasão da Ucrânia: o que querem mais? No Carabaque ficaram verdes pela inveja. É uma guerra, da qual ignoramos o número de baixas no Mundo. Ignoramos e continuaremos a ignorar: há Países que até se recusam a admitir que possa ter havido mortos por causa da vacinação. Uma das maiores guerras das últimas décadas continuará a ser desconsiderada.

Porque é que é ignorada? Porque é para “o nosso bem”. Ou, aos menos, o bem de quem sobrevive. Como em todas as guerras.

 

Ipse dixit.

Imagem: JaymzArt via Pixabay

4 Replies to “Mas sabiam que afinal há outras guerras?”

  1. Até o Max esquece do povo que a décadas vive em Aparthaid a céu aberto.
    Desde o Covid iniciou-se uma nova humanidade, a humanidade da manipulação intensiva televisiva.
    Com o Covid acabaram as outras doenças (excepto para quem morreu delas).
    Com a Ucrania acabaram as outras guerras (excepto para quem morreu delas).
    Não tarda a criação de novos medos televisivos, pois a aceitação da narrativa é total.

    1. Ehi, verdade: falta a Palestina! Obrigado Yin e Yang, a lista teria ficado incompleta.

      Por qual razão esqueci-me? Porque desde que nasci sempre ouvi falar daquela guerra, é “normal” que exista, é “assumido” que israel continue a torturar milhões de pessoas. Mais do que uma guerra, o aparthaid da Palestina é hoje uma condição natural, um mal contra o qual nada parece que possa ser feito, como os terramotos ou os furacões.

      Se acabasse seria um trauma, provavelmente os Palestinianos também ficariam em choque. E acusariam israel de falta de respeito. E israel voltaria a reprimi-los. Visto? Não há nada que possa ser feitos, é uma condição natural.

  2. Olá Max: queres acrescentar mais uma? Timor Leste, vale a pena?
    No meu comentário anterior, falei do racismo. Que bom que tratastes de tudo mais.

Obrigado por participar na discussão!

This site uses User Verification plugin to reduce spam. See how your comment data is processed.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: