As Repúblicas do Donbass e as sanções

O Presidente da Rússia Putin decidiu reconhecer oficialmente a República Popular de Donetsk e a República Popular de Lugansk, ambas parte da região do Donbass, na fronteira entre Ucrânia e Rússia.

Primeira pergunta: o reconhecimento tem bases?

Diria que sim porque em ambas as Repúblicas houve referendos (em 2014, quando ainda os territórios eram partes integrantes da Ucrânia) que deram estes resultados:

  • Referendo sobre a auto-proclamação da República Popular de Donetsk – sim 79.07%, não 20.19%, afluência 71.77%.
  • Referendo sobre a auto-proclamação da República Popular Lugansk – sim 86.02%, não 13.08%, afluência 81.0%.

Na mesma altura houve também um referendo na região de Charkov, o Referendo sobre a auto-proclamação da República Popular de Charkov, com os seguintes resultados: sim 60.68%, não 39.42%. Mas o resultado não foi considerado válido pois a afluência foi apenas de 47.32%.

Nestes dias muito fala-se sobre o direito da Ucrânia em poder escolher o seu próprio destino com base no princípio da autodeterminação dos povos. Se este princípio for válido não apenas no caso da Ucrânia, então temos que admitir que sim, que as duas Repúblicas têm todo o direito de ver reconhecida a sua independência.

A objecção segundo a qual os referendos não contam porque a Constituição e a legislação da Ucrânia preveem apenas a realização de um referendo inteiramente ucraniano e porque um referendo sobre a alteração da estrutura territorial só pode ser nomeado pelo parlamento é uma idiotice: nenhum País alguma vez aceitará voluntariamente a perda de territórios. Sem contar que o principio de autodeterminação não pode submeter-se à vontade de terceiros.

Segunda pergunta: o envio de tropas russas nas duas Repúblicas em função da “manutenção da paz” tem bases?

Aqui a resposta é mais simples: não.

Se a Rússia acaba de reconhecer as duas República, é óbvio como estas ainda não possam ser parte do sistema defensivo das antigas repúblicas soviéticas (o CSTO, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva) e como ainda não podem existir tratados internacionalmente reconhecidos neste sentido. Não havia razão que pudesse justificar o envio de tropas: a guerra no Donbass é presente não desde hoje e não é conhecido nenhum pedido por parte dos representantes das República.

Terceira pergunta: por qual razão Putin decidiu reconhecer as duas Repúblicas agora enviar tropas?

Para confrontar o Ocidente com o facto já consumado.

Sendo previsto um encontro ao máximo nível durante os próximos dias (ao qual poderiam participar os mesmos Tio Vlad e Zombiden), Putin quer partir duma posição de vantagem. A retirada da tropas russas do território das duas Repúblicas entrará assim a fazer parte das eventuais “concessões” que a Rússia estará disposta a fazer. Não está mal pensado.

É verdade que desta forma a Rússia quebrou o Tratado de Minsk. Mas também é verdade que Kiev deslocou dois terços do seu exército no Leste da Ucrânia para apoiar os ataques contra as forças das duas República, em flagrante violação ao Tratado.

O discurso de Putin

Uma seca, com algumas passagens mais interessantes.

Quando o líder dum País recua séculos para justificar as suas actuais acções significa que estão a faltar-lhe argumentos. E toda a primeira parte do discurso do Presidente russo é de tipo “histórico”, para demonstrar que a Rússia sempre foi boa para com a Ucrânia enquanto esta foi ingrata.

Todavia o discurso é significativo porque introduz uma inversão de tendência. Após ter identificado o regime de Kiev como um fantoche nas mãos do Ocidente, Putin deixa claro que não permitirá uma nova expansão da NATO par Leste. Ou seja: após ter “engolido” a entrada na organização atlântica de vários Países antigamente na órbita da União Soviética (Bulgária, Roménia, Lituânia, ex-Jugoslávia) e/ou até confinantes com a Rússia (Letónia, Estónia), agora Moscovo põe uma linha vermelha.

Por qual razão faz isso agora? Por duas razões. Em primeiro lugar porque agora a Rússia está em condições de traçar a tal linha, antes não estava: simplesmente não tinha capacidade económica e militar.

Depois porque Putin reconheceu a fraqueza do Ocidente nesta altura: Biden não é um líder e a Europa não faz mais do que confirmar a sua natureza de união puramente formal, totalmente incapaz de demonstrar coerência ou de apresentar-se com uma voz unida nas grandes crises internacionais. A NATO? Não pode intervir até quando um dos seus membros não for atacado.

É este vácuo de representação que deixa margens de manobra em Moscovo.

As sanções

As reacções do Ocidente perante o reconhecimento das Repúblicas demonstram o estado de fragilidade do Ocidente.

Para já, todos a garantir que as tropas russas no Donbass não representam uma “invasão” e que, portanto, não justificam as sanções mais graves; a União Europeia parece optar para sanções contra membros do parlamento russo (a Duma), congelamento de bens de bancos privados russos e restrições económicas às regiões separatistas.

A sanção mais “grave” chega da Alemanha que decidiu suspender o gasoduto North Stream 2 que, todavia, não passa duma medida simbólica: foi bloqueado um gasoduto, não todo o fornecimento russo de gás. E a razão é simples de entender.

Em 2014, a UE importava da Rússia 30% das suas necessidades de gás natural; em 2018, já estávamos na casa de 40%, depois a incidência aumentou para 43.9% em 2020 e chegou até 46.8% no primeiro semestre de 2021. Assim, os obtusos dirigentes europeus continuavam a ir de mão dada com as políticas dos EUA enquanto entregavam a economia nas mãos da Rússia. Uns génios.

E fala-se aqui só de gás natural, porque o assunto “petróleo” nem aparece nas sanções de hoje: os europeus continuam a enviar cerca de 200 milhões de Dólares por dia para a Rússia, sendo que Moscovo continua a ser o maior fornecedor único da União com uma quota de mercado de cerca de 25%.

Resultado: na abertura dos mercados de hoje, o preço do gás natural na Europa já subiu 7.5% e o petróleo Brent 2.9%. A Rússia agradece porque não vai sofrer por causa das sanções: do outro lado do planeta há uma China disposta já agora a comprar todo o gás e o petróleo de Moscovo. Somos nós que temos de ficar preocupados. A Gazprom tinha proposto contratos de longo prazo numa altura em que as cotações eram muito acessíveis: isso teria assegurado preços mais acessíveis hoje. Mas por aqui os servos de Washington começaram a gritar que desta forma a Rússia poderia ter feito chantagem. Agora estamos sem chantagem da Gazprom, é verdade, mas de mãos atadas, com cada vez menos gás, preços sempre a subir e uma possível guerra em casa também. É obra.

E no futuro? Se a situação piorar, será que o Ocidente vai excluir a Rússia do sistema SWIFT? Esta é uma das medidas que pairam no ar e, dado que a estupidez europeia parece não conhecer limites, temos que admitir: sim, é possível. No Velho Continente seria preciso vencer a resistência da Alemanha, a mais prejudicada, e de todas as empresas europeias que exportam para a Rússia: sanções mais pesadas contra Moscovo significariam danos enormes para nós. Considerado que é sempre possível contar com infinita obtusidade de Bruxelas, não é difícil prever que um agravamento da tensão significaria medidas que iriam atingir de forma profunda a economia do Velho Continente, sistema SWIFT incluído.

Enquanto isso, israel já está preocupado porque precisa da Rússia para as operações na Síria e para conter o Irão.

 

Ipse dixit.

5 Replies to “As Repúblicas do Donbass e as sanções”

  1. Grande Max,

    Muito interessante, de facto a Europa é uma pigmeu político e a população europeia vive acima das suas possibilidades como vamos descobrir num ápice. Permitiu-se o Kosovo e agora a Ucrânia, mas note-se o que aconteceu com a Catalunha…

    Não era preciso ser-se especialista para prever o que já se passou, as próximas acções parecem dicotómicas:

    A Rússia espera uma resposta da NATO às suas exigências, essencialmente não quer armas ocidentais nas fronteiras russas, eu diria especialmente na Lituânia, Letónia e Estónia pois estão demasiado perto de Moscovo e São Petersburgo, isto é podia suceder que um ataque hipersónico demorasse tão pouco tempo que a doutrina MAD pudesse falhar. Assim ou os EUA assinam rapidamente um acordo escrito que dê garantias de segurança á Rússia ou Vilnius passa para a esfera Russa.

    Foi curioso notar que Biden diz que defenderia cada polegada do território da NATO, o que dito desta forma praticamente garante o contrário ou seja Biden não assinará o acordo, a Lituânia servirá de exemplo, a Europa cai numa profunda resseção mas os EUA revitalizam-se para a indústria de guerra que depois pode servir para amedrontar a China e, quem sabe, voltar a mandar no mundo como em 1945…

  2. Se a legitimidade histórica fosse verdadeiramente considerada, tanto Ucrânia como a própria Rússia deveriam estar sob controle das elites “escandinavas”…

    1. Bem vindo Chaplin !!! O regresso do filho pródigo, capítulo 2 :))) De facto a legitimidade histórica é uma questão de força… quem tem mais força aplica a legitimidade que lhe convém . Já sobre as elites escandinavas ??? Só me vem à memória sua alteza Real Carl Gustav o refinado putanheiro…

      JJ não compreendo a passagem de Vilnius para a esfera de influência russa … Estás a falar numa passagem voluntária ou a força ? Porque não estou a ver margem para nenhuma das 2 …

      1. Oi PL. Pesquise sobre Novgorod e entenderás sobre a relação entre escandinavos (seguidos pelos missionários “cristãos”) e as origens dessas duas nações.

  3. Olá Max: uma explicação que não encontrei em lugar nenhum : qual a base para o reconhecimento das repúblicas auto proclamadas da região do Donbass. Nem o tio Vladi explicou nos seus depoimentos. Obrigada

    Já aquela gente da Estônia, Letônia e Lituania não gostam nem um pouquinho da mãe Rússia. Voltar a fazer parte da governança do tio Vladi, acho difícil, embora não me pareça a escolha acertada.

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