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Os “especialistas”

Pessoal, que seca… ler as notícias “oficiais” ou aquelas da informação “alternativa” tornou-se um exercício de resistência psicológica. O assunto é invariavelmente o mesmo: a guerra. Não aquela no Yemen, aquela não interessa: falamos da guerra na Ucrânia. Há ainda alguém que trata de outros temas como a Covid, alguns mais corajosos até do Canada, mas no geral é o confronto entre Ocidente e Rússia que domina.

Há duas frentes bastante claras: dum lado a comunicação oficial que amplifica as palavras de Washington e descreve a invasão como “cada vez mais provável”, doutro lado a informação “alternativa” que vê nisso tudo uma manobra do Ocidente para atingir a Rússia. Os canais televisivos que até poucas semanas atrás estavam repletos de “especialistas” médicos, agora entraram numa corrida para apresentar o pensamento dos melhores “especialistas” geopolíticos.

Poderíamos olhar para atrás e perguntar: mas se os “especialistas” erraram redondamente antes, porque os “especialistas” deveriam acertar agora? E pensar que em Portugal, há poucas semanas, tivemos um outro flagrante exemplo da obra destes “especialistas”, com os inquéritos e as previsões acerca dos resultados das eleições legislativas: uma Waterloo dos institutos de sondagens, uma derrota sem apelo (e nem foi a primeira, diga-se).

Mas nós continuamos para frente com imutada confiança, saltitando dum “especialista” para outro, sempre com a certeza de que alguém está aí para explicar o que se passa. Afinal é a função dele, estudou durante anos para isso, está informado: quem melhor do que o “especialista” pode dizer como estão as coisas?

Quanto mais observo estes “especialistas”, tanto mais tenho pena deles. E de nós, claro. O conhecimento perde a boa parte do seu potencial predictivo se não estiver enquadrado na realidade. E para enquadrar o conhecimento na realidade é necessária informação constantemente actualizada. Este é o problema: as fontes da informação actualizada dos “especialistas” demasiadas vezes são os órgãos de informação “oficiais”. Então temos cenas penosas nas quais o “especialista” convidado pelos órgãos de informação repete o que aprendeu com as notícias divulgadas pelos mesmos órgãos de informação. É um processo de auto-validação que rapidamente gera um universo paralelo, desligado dos factos mas que abre a porta para conclusões delirantes.

Por exemplo, pegamos num artigo de opinião que apareceu ontem no diário Público e assinado pela “especialista” Teresa de Sousa, bem conhecida aqui no burgo. Título: “Putin já perdeu”. Perdeu? E perdeu o quê? Se Teresa escreve que Putin já perdeu significa que Teresa sabia quais eram os objetivos do Presidente russo, pois só assim é possível afirmar que “Putin já perdeu”. Provavelmente Teresa tem informadores que operam ao mais alto nível em território russo, directamente no Kremlin ou no Estado Maior do Exército Vermelho: só assim é possível saber de fonte segura quais eram os objectivos iniciais do Presidente russo. Pelo que, parabéns a Teresa que evidentemente está bem mais informada do que as agências de espionagem ocidentais.

Mas admitimos por amor de discussão que Teresa não tenha os tais informadores “ao mais alto nível”. Então o cenário muda. Então Teresa não faz a mínima ideia de quais podem ser os verdadeiros objectivos de Putin. Então tudo o que Teresa fez foi ler o que passam as agências de imprensa ocidentais e apresentar a sua opinião baseada nas notícias publicadas pelo mesmo diário no qual ela escreve. Isso significa ser um “especialista”? São estas as pessoas que explicam ao cidadão como funciona o mundo?

No mesmo diário, no mesmo dia, eis outro “especialista”, David Pontes, que explica: “Moscovo já atacou”. Deve ser por isso que “já perdeu” como vimos antes.

Mesmo diário, dois dias antes: o “especialista” José Pedro Teixeira Fernandes pergunta: “Um bluff da Rússia?” Como assim? Não tinha já atacado e perdido?

Sempre no Público, dia de ontem, o “especialista” Francisco Mendes da Silva em “Putin no parlamento português” explica que “Há dois equívocos habituais sobre a crise na Ucrânia. O primeiro é o de que estamos na antecâmara de uma guerra, expectantes para ver se ela deflagra ou não”.

Pelo que, o diário Público no espaço de três dias conseguiu apresentar uma série de “especialistas” segundo os quais Putin já atacou, já perdeu, é um bluff, não há guerra nenhuma.

Obviamente a redacção do Público (e das outras testadas) teria jogo fácil em responder que isso demonstra de forma clara e maravilhosa a pluralidade da informação ocidental que concede espaço a todas as vozes. A democracia no seu melhor. Mas há um pequeno problema: os mesmos órgãos de comunicação foram incapazes de demonstrar-se tão “democráticos” em outras ocasiões. Nomeadamente no caso da “pandemia” de Covid, ao longo da qual censuraram ou ridicularizaram qualquer notícia que pudesse pôr em discussão a versão oficial.

Então a “pluralidade” parece esconder algo diferente: a incapacidade de ler a realidade e a falta duma visão. Que, não casualmente, são os mesmos sintomas evidenciados pela comunicação da Casa Branca com os seus repetidos anúncios de invasão. Paradoxalmente, os “especialistas” têm aqui um papel bastante preciso: criam uma cortina de fumo, uma situação escorregadia na qual qualquer resultado se torna possível, reforçando assim a imagem duma Rússia inconstante, quase infantilmente caprichosa, e justificando as indecisões americanas.

Nenhuma surpresa: é a comunicação social que sempre tivemos.

 

Ipse dixit.

Imagem: Clipart Library