Tentar entender a situação no Cazaquistão não simples: porque aquele não é propriamente um País “normal”.
Para já parece ter sido reestabelecida a calma após a tentativa de golpe, mas é uma calma aparente: os bastidores estão empenhados numa dura luta pelo poder e o País está a sofrer uma purga política. Apenas uma consequência do tentado golpe? Não parece. E talvez seja o caso de voltar a ver o que aconteceu, porque está a ganhar força a ideia duma peça provavelmente preparada com bastante antecedência, muito bem organizada e com uma coordenação militar que, ocupando simultaneamente estradas, ligações ferroviárias e o aeroporto internacional da capital, consegui cortar os abastecimentos às forças de segurança fieis ao agora ex-Presidente Nazarbayev.
Lembramos: enquanto o mundo assistia estupefacto, Nazarbayev (que governou o País de 1989 a 2019) era afastado do seu cargo de chefe do Conselho de Segurança Nacional, sendo substituído pelo Presidente Tokayev. Provavelmente Nazarbayev já não era capaz de liderar o País, que está a atravessar uma grave crise, e esta pode ter sido uma das razões para a sua remoção. Ao mesmo tempo, o clã de ex-Presidente já andava preocupado por causa da idade avançada e dos problemas de saúde que afligiam o homem.
Podemos assumir umas negociações para a passagem do poder entre Nazarbayev e Tokayev? Não sabemos. E nem interessa agora porque tudo chegou a um ponto crítico quando foi removido o subsídio do gás e os protestos materializaram-se de repente. Tal acontecimento foi aproveitado para criar um golpe por parte de militantes principalmente islamistas, que obviamente tiveram a ajuda dos serviços secretos do Cazaquistão. “Obviamente” porque alguns dias depois tudo indicava que os golpistas tinham tido o apoio dos círculos mais exclusivos do Cazaquistão: o chefe dos serviços secretos foi preso por traição e um dos seus generais suicidou-se.
Tudo feito? Nem por isso. Tokayev sabia que não podia confiar em ninguém e que os golpistas nas ruas tinham de ter apoio no aparelho de segurança do Cazaquistão. Este foi o momento em que abordou a CSTO com um pedido de envio de forças para a “manutenção da paz”. Quando a CSTO aceitou, as forças armadas da aliança desembarcaram no Cazaquistão e, em poucos dias, a calma regressou. Desde então, Tokayev tem estado ocupado a nomear um novo governo e a remodelar o aparelho de segurança.
De momento não há relatórios oficiais sobre como e se outros Países estiveram envolvidos no golpe; há apenas afirmações de carácter geral, nada de provas. Uma “ajudinha” ocidental? E por qual razão descartar a ideia? Mas, como já afirmado num artigo anterior, o Ocidente não tem no Cazaquistão (70% de islâmicos) forças suficientes para criar uma nova Ucrânia. Ao mesmo tempo, na maior parte dos casos as críticas foram dirigidas contra a intervenção da CSTO e as suas forças, quase ignorando os protagonistas internos. Também no Ocidente, todos estavam preocupados com uma ocupação permanente do Cazaquistão por parte da Rússia, mas os militares já estão a retirar-se completamente.
Os problema do Cazaquistão vêm de longe: o poder sempre foi gerido por clãs e famílias muito poderosas, apenas o topo mudou, a dinâmica parece permanecer a mesma. Mas vamos ver um resumo dos acontecimentos durante o último mês.
Cronologia
- 2-4 de Janeiro: Há vários dias que as pessoas protestam nas ruas, zangadas com os preços elevados do gás;
- 5 de Janeiro2: pelo menos uma centena de manifestantes invadem o edifício municipal em Almaty e ocupam o gabinete do Presidente da Câmara. De acordo com a agência noticiosa russa Tass, os manifestantes também iniciaram um incêndio no interior do edifício. A polícia tentou, sem sucesso, parar a investida da multidão, mesmo usando granadas de atordoamento e gás lacrimogéneo;
- 5 de Janeiro: Na cidade ocidental de Aktobe, as forças de segurança também tiveram de intervir com canhões de água;
- 5 de Janeiro: o Presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokajev, anuncia na televisão que pretende agir da forma mais dura possível “para proteger a paz e a segurança dos cidadãos”. Depois de declarar o estado de emergência entre os dias 5 e 19 de Janeiro (e um recolher obrigatório nocturno) em Amalty e na região de Mangystau, ordena um apagão na internet a nível nacional.
- 6 de Janeiro: Os protestos aumentam com violência em Almaty. A polícia fala de 13 agentes mortos, alguns decapitados, e numerosas baixas civis. Os manifestantes assumiram o controlo do aeroporto, que já não é governado pelas autoridades. A TASS falou de edifícios governamentais cercados e sitiados por manifestantes. Dois hospitais foram também ocupados.
- 6 de Janeiro: a Organização do Tratado de Segurança Colectiva (CSTO). liderada pela Rússia e composta também por Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão e Tajiquistão, decidiu enviar um contingente de militares para restabelecer a paz no País em resposta a um apelo do Presidente Kassym-Jomart Tokayev;
- 6 de Janeiro: os paraquedistas russos chegam ao Cazaquistão;
- 6 de Janeiro: o governo repõe os limites dos preços dos combustíveis no nível anterior aos protestos: a medida terá validade de seis meses.
- 7 de Janeiro: o Cazaquistão enfrenta ataques de combatentes e terroristas bem armados e treinados, tanto locais como estrangeiros, que devem ser eliminados. Isto foi quanto declarado pelo Presidente Tokayev durante o seu discurso à nação.
- 7 de Janeiro: 4.404 pessoas foram presas até a data.
- 8 de Janeiro: as autoridades prendem por alta traição o antigo chefe de segurança Karim Masimov, um aliado próximo do ex-presidente Nazarbayev. O número dos detidos aumenta para 5.800.
- 9 de Janeiro: Segundo estimativas oficiais do Ministério da Saúde do Cazaquistão, 164 pessoas morreram desde o início dos protestos;
- 10 de Janeiro: a China anunciou estar pronta a reforçar a cooperação “policial e de segurança” com o vizinho Cazaquistão, com o objectivo de apoiar o País na luta contra as “forças externas”, acusadas pelas autoridades cazaques de estarem por detrás da “tentativa de golpe”.
- 13 de Janeiro: a situação torna-se novamente parcialmente estável após dezenas de mortes, centenas de feridos e milhares de detenções. Os russos começam a deixar o País.
- 19 de Janeiro: o Cazaquistão sofreu um ataque por “grupos terroristas bem treinados e coordenados”, mas a situação está agora sob controlo e o governo escolhido pelo Presidente Tokayev está a trabalhar “num novo contrato social para um novo Cazaquistão”. Isto foi dito pelo embaixador em Roma, Yerbolat Sembayev, durante uma reunião com a imprensa sobre a crise que atingiu o País.
- 19 de Janeiro: as forças de segurança do Cazaquistão bloquearam ruas e praças no centro de Almaty, na sequência de relatos de prováveis novas manifestações promovidas pela Escolha Democrática do Cazaquistão, um grupo da oposição.
Toqaev exigiu a implementação duma imagem de transparência e no Sábado deu instruções para que seja estabelecido o número das vítimas até hoje: de acordo com o número oficial, 225 pessoas morreram, incluindo 19 polícias e agentes de segurança.
Entretanto, há uma semana está em função o novo governo é chefiado por Alikhan Smailov, de 49 anos de idade, antigo Ministro das Finanças e já vice-de Askar Mamin, o Primeiro-Ministro que foi afastado a 5 de Janeiro. Mas a remodelação foi pesada: mudaram as pastas de Informação, Justiça, Saúde, Indústria, Economia, Cultura, Finanças e Energia.
Nazarbayev…
O novo governo foi nomeado por Toqaev e ratificado pelo parlamento no dia 11 de Janeiro. Este foi um dia-chave também porque o Presidente, sem desviar a atenção dos alegados “terroristas externos”, deu a entender que também existem inimigos internos, com explícitas referências a Nazarbayev: “Sob o antigo Presidente do País surgiram empresas muito lucrativas e uma camada de pessoas que são ricas até pelos padrões internacionais”, disse Toqayev: “o governo deve examinar estas empresas para definir a sua contribuição para o fundo para o povo do Cazaquistão”.
Sempre durante a semana passada, dois dos genros de Nazarbayev deixaram cargos em importantes empresas estatais: Kairat Sharipbaev, marido da filha mais velha Darigha Nazarbayeva, renunciou ao cargo de administrador da QazaqGaz; Dimash Dosanov, marido da mais nova Aliya Nazarbayeva, já não é administrador da KazTransOil (que, sozinha, trata de 56% do petróleo explorado no País) Em vez disso, uma empresa ligada à Aliya volta a estar sob controlo estatal.
Muitos membros do clã decidiram deixar o País. Entre eles está Bolat Nazarbayev, irmão do antigo Presidente, que terá entrado no Quirguizistão de carro na madrugada de 6 de Janeiro e depois embarcou num voo para o Dubai. Em geral, houve um tráfego invulgar de jactos privados dentro e fora do Cazaquistão durante os dias mais quentes da revolta, sugerindo que muitos notáveis perto de Nazarbayev tenham abandonado o País.
A figura de Nazarbayev sempre foi muito controversa, com um número crescente de acusações de corrupção e favoritismo. Islâmico, antes comunista depois amigo de Boris Teltsin, Gorbachev e Putin, segundo o The New Yorker, em 1999, Nazarbayev era o dono duma conta bancária suíça com 85.000.000 Dólares, dinheiro maioritariamente transferido a partir duma conta ligada a James Giffen, homem de negócio norte-americano que conseguiu “importar” para o interior da antiga URSS empresas como Nabisco, Chevron, Kodak ou Johnson & Johnson. Posteriormente, o jornal de oposição Respublika noticiou em 2002 que Nazarbayev era dono dum tesouro pessoal de 1.000.000.000 de Dólares, fruto de receitas petrolíferas: a carcaça decapitada de um cão foi deixada à porta dos escritórios do jornal com uma leitura de aviso: “Não haverá uma próxima vez”; a cabeça dum outro cão apareceu mais tarde à porta do apartamento da editora Irina Petrushova, com uma com a mesma ameaça.
Em Dezembro de 2020, foram identificados pelo menos 785 milhões de Dólares em compras imobiliárias por parte de membros da família da Nazarbaev ao longo de um período de 20 anos, entre as quais um punhado de propriedades nos Estados Unidos.
Como é que Nazarbayev conseguiu evitar problemas com a justiça durante este tempo todo? Corrupção, distribuições de favores e amizades “suspeitas” foram o corolário ao controle ditatorial do Cazaquistão por parte do ex-Presidente.
…e Toqayev
Com o presidente Toqayev o País está a mudar de página? Não propriamente. O actual Presidente da Republica não é uma cara nova: em 1999 tinha sido Nazarbayev a nomeá-lo Primeiro Ministro (até 2002), Secretário de Estado (2002-2003) depois foi Ministro dos Negócios Estrangeiros (2002-2007) e Presidente do Senado (2007-2011 e 2013-2019).
Pelo que, Toqayev conhece muito bem o poder, não desde hoje e não apenas aquele nacional, tendo servido também como Subsecretário-Geral, Director-Geral do Escritório das Nações Unidas em Genebra e Representante Pessoal do Secretário-Geral das Nações Unidas para a Conferência sobre Desarmamento.
Há até quem diga que Toqayev organizou o golpe mesmo para travar a rápida implementação de reformas democráticas.
Ipse dixit.