Alemanha e crédito social: “cenários” e “visões”

A China está a ser criticada pela introdução dum sistema de “credito social” com recompensa para bons cidadãos e penalizações para os maus cidadãos. Um sistema, seja dito, que existe e que está a ser testado desde 2014 na cidade de Rongcheng (quase 700 mil habitantes), apesar de ainda não ter sido introduzido em todo o País.

Aquela de Pequim, todavia, é uma experiência que está a ser observada com interesse por outros Países que, sem chegar aos extremos chineses, parecem atraídos por esta solução.

Pegamos no caso da Alemanha e do seu estudo Zunkunft Von Wertvorstellungen der Menschen in Unserem Land (“Futuros Valores das Pessoas no Nosso País”), encomendado pelo Ministério Federal de Investigação e publicado no ano passado. A introdução é bastante curiosa:

Os resultados deste estudo não representam previsões ou respostas definitivas às perguntas do estudo. Em vez disso, no sentido de uma previsão estratégica, visam delinear um amplo espectro de possíveis futuros e vias de desenvolvimento e, ao fazê-lo, também estimula um discurso sobre o futuro. Assim, entre outras coisas, os resultados devem fornecer um quadro interpretativo para estudos e conclusões adicionais, ou seja, para a classificação, por exemplo, das tendências e dos contextos sócio-políticos, no processo de previsão trienal.

Nada de medidas factuais ou previsões: apenas “cenários”. No entanto, é estranho que num estudo do governo federal sejam apresentados cenários que nada têm a ver com democracia e liberdade. Porque a vigilância em massa e a educação forçada das pessoas não são compatíveis com a democracia e a liberdade. No entanto, a partir da página 123, é isso que encontramos.

Por exemplo, o cenário “O sistema de bónus” (Das Bonus-System, pág. 123):

E se …
… em vista de uma utilização bem sucedida do sistema de crédito social na China, outros Estados também discutirem a utilização de tal sistema?
… a Alemanha também pensar em como um sistema de pontos de bónus digitais poderia ser fundamentalmente compatível com uma ordem básica democrática livre, e finalmente introduzir um sistema desse tipo?
… o sistema de pontos desenvolver subsequentemente uma função de controlo e orientação de longo alcance numa sociedade cada vez mais heterogénea?
… as pessoas na Alemanha preferirem então tomar decisões importantes na vida com base numa recomendação algorítmica em vez de confiarem na sua própria avaliação ou nos conselhos dos seus amigos e família?

A última frase é significativa: trata-se de abandonar as funções do nosso cérebro (ou daqueles de familiares e amigos) para passar a confiar apenas no raciocínio proporcionado por uma máquina. E por quem gere a máquina, óbvio. Uma sociedade de indivíduos não-pensantes, totalmente entregues ao poder que escolhe as nossas vidas. Ainda bem que são apenas “cenários”…

A China? Pois, a China e o seu sistema de crédito social. O estudo descreve isso mesmo ao falar do “sistema digital de pontos” (Das digitale Punktesystem, sempre pág. 123):

Podem ser recolhidos pontos para determinados comportamentos no sistema estatal de pontos (por exemplo, trabalho voluntário, cuidados a familiares, doação de órgãos, provisão para idosos, comportamento no trânsito, pegada de CO2). Para além do reconhecimento social, a recolha de pontos traduz-se também em benefícios na vida quotidiana (por exemplo, tempos de espera reduzidos para determinados cursos de estudo).

Assim, o Estado e as instituições políticas podem alcançar certos objectivos através de incentivos para mudar o comportamento (por exemplo, controlo do mercado de trabalho e da educação) e também prever comportamentos futuros com maior precisão. Na democracia digital líquida, os cidadãos colocam questões na ordem do dia e votam em questões críticas. As empresas têm a oportunidade de bloquear no sistema de pontos e monetarizar dados com o consentimento prévio dos cidadãos (por exemplo, prémios de risco personalizados).

Realçamos: “em benefícios na vida quotidiana”, pois não se esqueçam que é sempre e só para o nosso bem, ora essa.

O estudo descreve então um cenário em que tal sistema de pontos é introduzido na Alemanha no ano de 2030 e enumera as sondagens, no final da secção, sob o título “Sinais (no presente) para uma possível ocorrência do cenário” (Signale (in der Gegenwart) für ein mögliches Eintreten des Szenarios, pág. 125): segundo o estudo, cerca de 20% dos alemães seriam a favor da introdução de tal sistema. Vamos ler:

O psicólogo Gerd Gigerenzer adverte: “Se não fazemos nada, um dia uma empresa ou uma instituição estatal irá combinar as várias bases de dados num único crédito social”. […] A sondagem já mostra um certo nível de aceitação para o presente: um em cada seis Alemães está a favor de um sistema de crédito social como o que existe na China, com 25 % dos inquiridos a favor de uma recompensa pelo bom comportamento.

Em resposta à pergunta “O que teria de mudar no nosso país”? No inquérito 22% dos inquiridos declararam: “O Estado deve orientar mais fortemente o comportamento, por exemplo, através de incentivos”.

Pelo que: na Alemanha já pensam na hipótese dum sistema de crédito social. Nada de decisões e medidas, que fique claro: apenas “cenários”.

E já agora: por qual razão não eliminar as eleições também? A ideia é contida na Carta da Cidade Inteligente (Smart City Charta), escrita directamente pelo governo federal, com a qual são abraçados os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (Sustainable Development Goals na Agenda 2030).

Na página 43 do documento, com o título de “Visões dum planeta hiper-conectado” (Visionen eines hypervernetzten Planeten) podemos ler alguns pontos interessantes:

3. Sociedade pós-propriedade
Graças à informação sobre a partilha disponível bens e recursos disponíveis, faz menos sentido ser dono de qualquer coisa: talvez a propriedade privada seja de facto um luxo. Os dados podem complementar ou substituir o dinheiro como moeda.

4. Sociedade pós-mercado
Basicamente, os mercados são sistemas de informação que atribuem recursos. Como sistema de informação, porém, um mercado funciona de forma muito simples. Apenas nos diz que uma pessoa comprou isto ou aquilo, mas não sabemos porquê. No futuro, os sensores serão capazes de melhores os dados dos mercados.

6. Sociedade pós-voto
Uma vez que sabemos exactamente o que as pessoas fazem e querem, há menos necessidade de eleições, maioria ou votação. Dados comportamentais podem substituir a democracia com um sistema de feedback da sociedade.

A dúvida não é se tudo isso poderá acontecer, mas quem irá ganhar o concurso público pela gestão dos dados: será a Microsoft? Google? Facebook?

O quê? Ahhhh, sim, o Leitor tem toda a razão: estes não passam de “cenários” e “visões”… numa palavra: fantasias. Desculpem lá, podemos continuar a dormir descansados.

 

Ipse dixit.

4 Replies to “Alemanha e crédito social: “cenários” e “visões””

  1. É uma péssima ideia, Ivan.
    A IA é construida por Homens, logo é uma ferramenta de quem a constrói e nunca será independente.
    Se algum dia for independente da influência humana, o mais provável é chegar à conclusão que os humanos não tem utilidade para ela e até podem ser uma ameaça, logo, o melhor é os humanos desaparecerem.
    (nem sei porque tenho de explicar isto)

    Alfbber, excelente leitura.
    Tinha lido alguns aspectos por alto ao longo do tempo, mas nunca algo tão completo relativo ao assunto da 1ª guerra mundial.

  2. Muito boa reflexão Max.
    Testes e mais testes, isto é o que estão fazendo com os alemães (eles são os mais próximos de acatar a disciplina).
    Já estão em 25% favorável a total perda de liberdade? Então injeta-se mais vacina e mais caos na sociedade, mais imigração árabe e africana no meio da cultura alemã, muita, muita mas muito mais catástrofes esperadas pela variação climática, e esse percentual aumenta.
    E chega o momento em que a maioria da população requer para si e para os seus o garrote vil.
    Estarão contentes, então ? Se tiverem qualquer dúvida quanto ao acerto das providências, subam num edifício bem alto, e atirem-se. Quando se espatifarem no cão vão parar de liberar CO2 na natureza, e então merecer mais alguns pontos positivos no cartão de comportamento. Pena…pós morte.

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