Memórias dum ex-Presidente

Francesco Cossiga morreu a 17 de Agosto de 2010 em Roma. Foi Ministro do Interior na altura do rapto do Primeiro Ministro Aldo Moro por parte das Brigate Rosse, foi por sua vez Primeiro-Ministro, Presidente do Senado e, finalmente, Presidente da República de 1985 a 1992.

Figura entre as mais importantes da Republica Italiana, enquanto Presidente do País ficou conhecido como picconatore (literalmente “picaretador”) numa fase em que decidiu entrar num conflito político com o objectivo de dar “uma tareia a este sistema”.

Em ocasião do 31 de Dezembro de 1991, deu aquele que foi o mais curto discurso de fim de ano dum Presidente da Republica:

Falar não dizendo, aliás, mantendo calando o que não deveria ficar calado, não estaria de acordo com a minha dignidade de homem livre, com o meu costume de frontalidade, com os meus deveres para com a Nação. E isto mesmo no final do meu mandato, que expira a 3 de Julho de 1992. Tal comportamento faria com que eu violasse o mandamento que me dei, seguindo o exemplo de um grande santo e estadista, e ao qual tentei permanecer humildemente fiel: favorecer sempre a própria legítima consciência, ser um bom servo da lei, e portanto da tradição, mas acima de tudo de Deus, isto é, da verdade. E por isso parece-me melhor manter o silêncio.

Longe de ser um santo (afinal militou a vida toda nas fileiras da Democrazia Cristiana, partido que governou ininterruptamente o País desde do final de Segunda Guerra Mundial até 1994), deixou atrás dele uma espécie de testamento espiritual na forma dum livro que recolhe as suas últimas confidências, Fotti il potere. Gli arcana della politica e della natura umana. (“Lixa o poder. Os arcanos da política e da natureza humana”), assinado pelo jornalista Andrea Cangini e publicado em 2010.

A seguir alguns excertos do livro.

Democracia

A democracia é na realidade uma aristocracia que se forma independentemente das eleições, mas que encontra a sua consagração nas eleições. Em suma, mesmo os regimes democráticos são, para todos os efeitos, regimes aristocráticos. […] Como se vê, directa ou indirectamente, o povo é sempre liderado por uma elite. E é melhor assim… O poder é um instrumento que não pertence ao povo, mas à elite.

Poder

Poder significa “ser capaz de”, e portanto ter a força. Porque, como disse o Presidente Mao, um homem muito sábio, “o poder está no cano da espingarda”. […] Nos estados modernos existem pelo menos seis tipos de poder, todos estruturados em forma de pirâmide e com uma elite ao leme: poder político, poder económico, poder judicial, poder dos media, poder religioso e o poder pouco ortodoxo, mas muito italiano, poder criminoso. O que agrada e seduz acerca do poder é a sua força. Um conceito que Benito Mussolini, com uma certa rudeza mas inquestionável eficácia, declinou da seguinte forma: “O povo é uma puta e vai com o homem que ganha”. Um ditador democrático é o que o povo quer.

Em Itália, durante muito tempo, o poder mais forte foi o poder industrial, Fiat, Italcementi e, claro, as grandes indústrias estatais, que eram uma expressão do poder político mas que por vezes determinavam as escolhas estratégicas fundamentais do poder político. Mas hoje a indústria está completamente nas mãos dos bancos e, apesar da recente crise financeira, os bancos são e continuarão a ser as novas potências fortes… os bancos controlam directa ou indirectamente todos os principais jornais italianos. Os banqueiros têm os seus centros de poder mais influentes no Council on Foreign Relations, no Grupo Bildeberg e na Trilateral.

Picconatore

Quando eu estava no Quirinale [a residência do Presidente da Republica italiano, ndt] chamavam-me il picconatore e pensavam que eu tinha enlouquecido. Apesar dos meus esforços, não tinham compreendido que o Muro de Berlim teria caído não sobre o Partido Comunista mas sobre a Democrazia Cristiana e o Partito Socialista. E isto pelo simples facto de que, uma vez desaparecido o comunismo internacional, já não seriam necessários. […]

Bem, na verdade, o que aconteceu a mim nunca aconteceu a ninguém. Fiquei completamente sozinho: abandonado pelo meu partido, os democratas-cristãos, e violentamente atacado pelo PCI [o então partido comunista, ndt] por evidente sugestão evidente de Andreotti [colega de partido de Cossiga, ndt]… Fiz a única coisa que pude fazer: enlouqueci. Tive de chamar a atenção, tive de fazer compreender a gravidade do momento, se não aos partidos, pelo menos à opinião pública.

Maçonaria

As pessoas não sabem que a P2 [loja maçónica italiana, constituída em 1877, tornada fora de lei durante o Fascismo, reconstituída após a Segunda Guerra Mundial, ndt] foi inventada pelos Estados Unidos, um país no qual a influência dos Illuminati é representada pelo simbolismo maçónico emblematicamente reproduzido nas notas de um Dólar, e no qual, dos 44 Presidentes que se sucederam na Casa Branca até aos dias de hoje, apenas três não eram maçons: dois deles (McKinley e Kennedy) foram mortos, enquanto o terceiro (Nixon) foi forçado a demitir-se.

NATO e EUA

Pergunta o autor: afinal há uma direcção secreta na NATO?

Sim, é claro, a direcção secreta sempre existiu e, obviamente, a Itália nunca fez parte dela. Incluía os Estados Unidos, o Reino Unido, a Alemanha Ocidental e, mesmo que não aderisse formalmente à estrutura integrada do Pacto Atlântico, a França. Deve dizer-se, no entanto, que se o projecto de que falava [o golpe de Estado, ndt] não teve lugar, foi precisamente porque os três principais aliados europeus dos Estados Unidos se opuseram… as grandes potências sempre fizeram e sempre farão estas coisas: a violência, os assassinatos e os golpes de Estado fazem parte integrante do jogo político.

Ainda Cangini: “A propósito, já passaram cerca de vinte anos e os golpes mais ou menos directamente atribuíveis aos americanos parecem ter saído de moda: porquê?”

Simplesmente porque os americanos já não têm a força. Aqueles que têm a força mudaram a sua estratégia e operam principalmente por meios para-económicos. Hoje em dia não há nada que não possa ser interceptado. Uma vez, há muitos anos atrás, visitei o laboratório científico de um grande serviço secreto estrangeiro e fiquei chocado. Depois dessa visita, proibi-me até de pensar em frente ao espelho: pelo que tinha visto, seriam capazes de interceptar até os meus pensamentos mais íntimos.

Terrorismo

Acerca do massacre da Piazza Fontana (atentado que, em 1969, de facto deu início aos Anos de Chumbo em Italia):

Creio que o massacre não foi exactamente obra da CIA, mas de algum agente particularmente imprudente dos serviços secretos americanos… Foi o período em que os americanos e os britânicos tinham chegado à conclusão de que Aldo Moro não era de confiança. A fim de evitar que os comunistas assumissem o governo, também estudaram a hipótese de um golpe de Estado e sabem por que razão o descartaram? Simplesmente porque compreenderam que uma boa metade das nossas forças armadas e forças policiais, excluindo os Carabinieri, estavam do lado dos comunistas.

O governo francês no início dos anos ’60 tinha resolvido brilhantemente o problema do terrorismo da OEA, a organização contrária à independência da Argélia decidida por De Gaulle. Nos anos ’70, Cossiga visitou em privado o Ministro do Interior francês, o Príncipe Poniatoswki, marido da proprietária do champanhe Veuve Clicquot, e perguntou-lhe como tinham resolvido o problema:

Ele sorriu e disse-me que para eles, tendo uma forte tradição de terrorismo de Estado, tinha sido fácil: “Tudo o que foi preciso foram alguns corpos a flutuar ao longo do Sena”, disse ele, tratando-me como se eu fosse um rapazinho. Em suma, eles mataram todos. A Alemanha livrou-se dos chefes da RAF, até então presos, incitando-os ao suicídio, quando não directamente “suicidados”… foi com um sorriso que o Ministro Federal do Interior falou-se dessa anómala série de enforcamentos na prisão.

Segurança

A segurança do poder baseia-se na insegurança dos cidadãos. As pessoas também se sentem inseguras porque os meios de comunicação, particularmente a televisão, alimentam sistematicamente os seus medos mais profundos. Geram ansiedade e, como é sabido, a política alimenta-se de ansiedade. A realidade conta para pouco. O que conta acima de tudo é a percepção da realidade.

Globalização

O meu amigo Toni Negri [filósofo, cientista político, activista, académico e político italiano, entre as décadas de 1960 e 1970, foi um dos principais teóricos do marxismo operário. Co-fundador e teórico militante das organizações extra-parlamentares de esquerda Potere Operaio e Autonomia Operaia, foi preso e julgado sob a acusação de ter participado em actos terroristas e insurreição armada. Foi, no entanto, absolvido destas acusações, apenas para ser condenado a 12 anos de prisão por associação subversiva, ndt], um homem muito culto, há algum tempo atrás pediu-me para encontrar-me e discutir as teorias que mais tarde iria recolher no seu belo livro L’impero. De acordo com Negri, a globalização varreu efectivamente o poder dos Estados e, consequentemente, o dos impérios. Por conseguinte, uma vez que não existe autoridade superior ou princípio regulador, a política já não é capaz de gerir a complexidade das coisas no mundo ou de suportar o peso de um conflito. Penso que Toni Negri tenha razão. Mas eu gostaria de acrescentar mais um elemento: o fim do nacionalismo. Tendemos frequentemente a esquecer que a democracia surgiu no quadro das nações e, por isso, faríamos bem a perguntar-nos que forma de democracia pode sobreviver à crise das nações e ao eclipse dos Estados. Não penso que seja uma coincidência que o período em que os Estados estão objectivamente em crise coincida com o período em que a Europa está desajeitadamente a tentar dar a si própria uma forma política.

Espero que fique claro para si que a organização política mais antidemocrática do mundo hoje em dia é a União Europeia. Posso assegurar-vos que se um Estado soberano se tivesse dotado de uma organização institucional como a UE, todos nós teríamos saído à rua com armas. Proscrever o Estado e diluir metodicamente a nação não é de forma alguma um bom serviço aos ideais democráticos de liberdade, igualdade e fraternidade em que todos afirmam ainda acreditar.

As verdadeiras guerras são agora travadas principalmente por meios económicos, e o principal instrumento ofensivo está nos fundos soberanos, ou seja, através de grandes investimentos internacionais feitos com fundos pertencentes a Estados, China e países petrolíferos. Se, absurdamente, estes Estados decidissem utilizar os seus fundos de acordo com um desenho geopolítico, estariam em posição de revolucionar o mapa do poder global. Não há defesa. Os fundos soberanos têm agora mais recursos do que todos os bancos centrais do mundo. […] E o que aconteceria se a China, que hoje apoia a economia americana, decidisse utilizar os 1.800 mil milhões de Dólares das suas reservas para algum projecto contrário à hegemonia americana? Estes fundos tornaram-se os “soberanos” do mundo, embora discretamente. O resto é feito pelas agências de notação e pelos especuladores, que são duas faces da mesma moeda.

É a força e não a lei que dá força ao mundo. A política está agora refém da economia… a globalização descontrolou-se porque já não é liderada pelos Estados, mas sim pelo grande capital, já não industrial, mas financeiro. É portanto essencialmente irresponsável, mas as escolhas que faz ainda têm um enorme peso político.

Em nome do mercado livre, os bancos são autorizados a fazer o que quiserem e até a especular sobre o fracasso dos Estados. As expectativas de prosperidade crescente são agora uma memória distante e a ideia de um mercado livre, com o Estado a deixar as coisas acontecerem, é assustadora. Assusta especialmente os mais fracos.

Conspirações

A história está cheia de conspirações e a conspiração é uma forma de política. As conspirações sempre fizeram parte do jogo político. Sempre aqueles que vêem conspirações em todo o lado são do tipo de organizar uma.

Ética e política

Em 1927, um jornalista escreveu que a Santa Sé estava a negociar os Pactos de Latrão com o governo fascista. Alarmados com a fuga de notícias, os funcionários da Secretaria de Estado correram para Pio XI perguntando o que deveriam fazer. “Negar tudo” disse o Papa sem hesitar um momento. As pessoas ficaram surpreendidas. “Mas Vossa Santidade”, responderam eles, “como podemos negar algo que sabemos que é verdade?”. A resposta foi emblemática: “Desde quando é que refutamos notícias falsas? Notícias falsas refutam-se a si próprias: são as notícias verdadeiras que devem ser negadas”. Mentir em nome do bem é portanto permitido a todos. Não apenas aos políticos.

Após o mandato presidencial, Cossiga deixou o Quirinale e retirou-se em Lugano, na Suíça. Durante um certo período, o ex-Presidente ficou espantado com o afecto que as pessoas nas ruas tinham por ele.

Gozava dos privilégios de um estatuto que há muito tinha desaparecido. Mas era uma ilusão. Eu já estava morto, só que as pessoas ainda não se tinham apercebido disso.

Cossiga tinha perdido o poder.

 

Ipse dixit.

One Reply to “Memórias dum ex-Presidente”

  1. Olá Max: esse Andrea Cangini poderia publicar a bíblia da resistência popular atual (não sei se passados 12 anos do livro ele se arrependeu ou foi suicidado)
    Suas definições do meu ponto de vista são fantásticas (ou são as tuas, a partir do livro?)
    De qualquer forma, há frases curtas para decorar:
    ” A segurança do poder baseia-se na insegurança dos cidadãos” Não há coisa mais contundente do que esta frase, refletindo o momento atual.
    “As conspirações sempre fizeram parte do jogo político” É por isso mesmo que o poder tenta nega-las, cobri-las com o manto do mau entendimento, da mentira. O tempo e a história provam que a conspiração de hoje foi a a realidade encoberta de ontem
    “Poder significa ser capaz de, e portanto ter a força”. Parece que ele esqueceu do poder dos militares, dos homens com as armas na mão e tendo como princípio a obediência cega aos comandantes. Mussolini parece não ter esquecido, e não somente ele.
    Cito só 3 ideias brilhantes e atualíssimas, mas é tudo citado e/ou resumido muito, muito bom.

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