“A doença é má para o doente, mas boa para o médico”

Em 1530, enquanto o resto da Europa lidava com a misteriosa “doença do suor” (cuja causa permanece desconhecida até hoje), na Suíça apareceu um surto de peste.

Não era o primeiro surto e nem teria sido o último no Velho Continente: afinal tratava-se da Peste Negra, a epidemia que apareceu em meados de 1300 e que durou mais de 300 anos, embora em vagas cada vez menores e mais circunscritas, deixando por trás um número de vítimas que rondou as 40 milhões de almas.

Em 1530 operava em Genebra François Bonivard (ou Bonnivard; 1493-1570), um nobre, eclesiástico e historiador, cuja vida teria mais tarde inspirado o poema “O Prisioneiro de Chillon” de Lord Byron

Em 1542 foi-lhe encomendada a compilação de uma história de Genebra, as Chroniqves de Genève, que em 1551 foi enviada a João Calvino para correcção. Obviamente, nas Chroniqves não falta o relato do surto de peste de 1530.

Como Bonivard conta na sua obra (volume II), quando a peste bubónica atingiu Genebra, tudo estava pronto. Tinha sido aberto um hospital para as vítimas, com médicos, paramédicos e enfermeiros. Os comerciantes contribuíam para a manutenção da estrutura e o magistrado da cidade concedia subsídios todos os meses. Os pacientes participavam com dinheiro e sempre que um deles morria sozinho, todos os bens iam para o hospital.

Cedo, todavia, a peste começou a extinguir-se e com ela diminuíram os subsídios que dependiam do número de doentes. O pessoal do hospital não demorou a entender que a peste era a mais importante fonte de receitas. Então os médicos organizaram-se.

No início limitavam-se a envenenar os doentes para aumentar as estatísticas da mortalidade, mas de pressa perceberam que as estatísticas não deveriam ser apenas sobre a mortalidade, mas sobre a mortalidade por causa da peste.

Assim, começaram a cortar as fervuras típicas da doença nos corpos dos mortos, a secar o conteúdo delas, a moê-lo até reduzi-lo a um pó que misturavam numa espécie de argamassa e que subministravam aos pacientes disfarçado de medicamento. Depois começaram a espalhar o pó nas roupas, nos lenços e nas ligaduras.

Mas, de alguma forma, a peste continuava a diminuir: aparentemente, as fervuras secas não estavam a funcionar.

Os médicos começaram a circular pela cidade para espalhar o pó bubónico nos puxadores das portas à noite, seleccionando as casas onde poderiam lucrar mais. Como descreveu uma testemunha ocular destes acontecimentos, “isto permaneceu escondido durante algum tempo, mas o diabo está mais preocupado em aumentar o número de pecados do que em escondê-los”.

Em suma, um dos médicos tornou-se tão impudente e preguiçoso que decidiu não vaguear pela cidade à noite, mas simplesmente atirar o pó por cima da multidão durante o dia. O cheiro foi notável e uma das pessoas presentes, uma rapariga que por sorte tinha saído recentemente daquele hospital, reconheceu-o. O médico foi amarrado e colocado nas mãos dos “artesãos” competentes, os quais tentaram descobrir o máximo de informação possível. Então o esquema ficou claro.

Os médicos responsáveis foram amarrados a postes em carros e conduzidos em redor da cidade. Em cada cruzamento, os carrascos usavam pinças quentes para arrancar pedaços da sua carne. Foram depois levados para a praça pública, decapitados e esquartejados, e as peças foram levadas para todos os distritos de Genebra.

A única excepção foi o filho do director do hospital, que não tinha participado na conspiração mas afirmou saber como obter o pó sem medo da contaminação para fazer poções. Foi simplesmente decapitado “para impedir a propagação do mal”.

 

Ipse dixit.

Nota: a frase do título é do filósofo grego Protágoras (490 a.C. – 415/411 a.C.)

3 Replies to ““A doença é má para o doente, mas boa para o médico””

  1. Que bela história, a humanidade precisava mesmo de outra “fraudemia”, os humanos, assim como os ratos e os vírus reproduzem-se de maneira rápida e eficaz, só que um deles está a matar o hospedeiro. O que se ha de fazer . . .

  2. Oi Max: naquele tempo o sistema era mais simples: os médicos decidiam. Já hoje…. (eles obedecem).

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