Site icon

O Dólar de platina (valor: 1 trilião!)

Na passada Terça-feira, a Secretária do Tesouro dos EUA Janet Yellen disse que não tinha qualquer intenção de cunhar uma moeda de platina no valor de 1 trilião de Dólares. Pena, pois teria dado uma bonita peça para coleção. Mas a ideia não era bem essa. A ideia era bem pior.

Em poucas palavras: no final deste mês os Estados Unidos irão exceder o limite legal do montante de dívida pendente que o governo federal pode deter. O limite máximo da dívida, em teoria, não pode crescer mais. No Senado, os Republicanos concordaram em conceder uma prorroga até Dezembro, mas isso não resolve e só adia o confronto dentro de alguns meses.

E é neste ponto que alguém pensou no Dólar de platina porque uma lei de 1997, em origem destinada a ajudar a Casa da Moeda para criar dinheiro destinado aos coleccionadores, dá ao Secretário do Tesouro o poder de cunhar moedas de platina de qualquer valor, por qualquer razão. Quando os comentadores descobriram esta lei durante as batalhas do limite máximo da dívida de 2011 e 2013, perceberam que esta poderia oferecer uma forma de contornar o limite legal que o Congresso coloca aos empréstimos contraídos pelo governo federal. Como?

Simples: em vez de emitir nova dívida, o Secretário do Tesouro poderia simplesmente financiar o governo através da cunhagem de moedas de platina. Em 2013, o antigo director da Casa da Moeda dos EUA, Philip Diehl, concordou que funcionaria e, ao longo dos anos, vozes influentes como o jornalista financeiro Joe Weisenthal e o colunista do New York Times Paul Krugman também promoveram a ideia.

A ideia é: quanto é que devemos? Um trilião de Dólares? E nós cunhamos um moeda que vale um trilião de Dólares e, na prática, já não temos dívida. Problema resolvido. Se a ideia parece estúpida (porque é estúpida), não vamos esquecer que estamos a falar dos EUA…

Pelo que, e dado que o tempo está a esgotar-se, alguém pegou no comentário publicado num blog e assinado por tal Beowulf (um advogado de Atlanta) e criou um “caso”: em breve a ideia alcançou a Secretaria do Tesouro.

Agora, quem escreve gosta da Modern Money Theory (MMT) de Warren Mosler e do relativo fiat money, ou seja, da ideia de que um Estado pode criar moedas a partir do nada sem que o dinheiro esteja ligado a um metal precioso (como acontecia antigamente). E, em teoria, a ideia da super-moeda de platina exumada nestes dias não assusta. Todavia…

Todavia, e em primeiro lugar, temos que realçar como a criação duma moeda de 1 triliões de Dólares não seja propriamente fiat money. A MMT é a base duma economia diferente, não pode ser apenas um penso de emergência que pode ser usado quando as coisas correrem mal.

Como sabemos, nos tempos passados, um Dólar era a representação dum igual valor em ouro guardado nos cofres do Estado (e o mesmo acontecia, em teoria, com as outras moedas todas, em qualquer País). Isso chamava-se de golden stantard. Depois, no começo dos anos ’70, os EUA abandonaram o golden standard e o dinheiro passou a ser a representação… de si mesmo, e nada mais. Hoje os EUA (e todos os outros Países) imprimem dinheiro sem se preocupar com a quantia de ouro guardado nos cofres.

É claro que o Dólar de platina não resolveria os problemas da dívida americana: além do valor simbólico (a platina é o metal mais precioso que exista) há o mais importante problema da credibilidade que, como é óbvio, não pode ser ultrapassado pelo real valor do metal empregue (um Dólar de platina teria um valor real de pouco superior aos 250 Dólares). A credibilidade, a confiança no dinheiro, é a base do fiat money: não sendo mais agarrado a um valor real conservado num cofre, o dinheiro tem importância só se é reconhecido como “valor” em si.

Para ser mais claro: uma nota de 5 Euros (mas com moedas dos restantes Países o discurso é igual) não vale 5 Euros, no sentido que A – não é a representação duma riqueza guardara algures e B – o valor do material utilizado na produção da nota (papel, filigrana, tintas) é risível. O valor da nota é dado pelo facto que todos nós, utilizadores, consideramos aquela nota como a representação física de 5 Euros.

No caso dos EUA, o Dólar de platina tem este “pequeno” problema: é um disparate, um truque, e todos sabem disso. Ninguém pagaria 1 trilião por entrar na posse daquela moeda, ninguém poderia reconhecer o absurdo valor nominal. E acho bem que o Tesouro tenha recusado a ideia porque verdadeiramente triste. Ter-se-iam apenas coberto de ridículo porque esta não é fiat money, é estupidez.

No entanto, é preciso admitir que esta ideia teve a força para chegar até o governo dos EUA. O que é muito preocupante.

O sito de notícias e opiniões Vox (progressista) foi entrevistar Beowolf porque, evidentemente, nem se apercebem do ínfimo nível ao qual o tópico chegou. E Beowolf faz algumas considerações:

O que aconteceu é que, na Administração Obama, os opositores republicanos perceberam que podiam realmente planear uma crise, recusando-se a aumentar o limite máximo da dívida e depois usar a doutrina do choque para fazer passar as suas políticas desejadas (cortes nos gastos e, se possível, cortes nos impostos).

A questão é esta. Os Republicanos sabem que em princípio Dick Cheney estava certo: “os défices não importam, Reagan ensinou-nos isso”. É provável que não tenha sido Reagan a ensinar isto a Cheney, mas sim o melhor amigo dele no círculo do poder de Washington DC, Donald Rumsfeld.

E onde é que este Rumsfeld o aprendeu? Com Warren Mosler. [Mosler disse que surgiu com o MMT após uma discussão com Rumsfeld na sauna a vapor do Racquet Club de Chicago].

Assim, os Republicanos sabem que o défice e os receios da dívida são exagerados, mas os Democratas não sabem. Assim, vemos Carter, Clinton e Obama a limpar o orçamento e a permitir que Reagan, Bush e Trump entrem e reduzam os impostos. Os progressistas agora entraram em jogo, razão pela qual a moeda de um trilião de Dólares […] estão também a ser ampliados pela base democrata. Seja como for, é isso que penso que está a acontecer.

“Os défices não importam” disse Reagan. E tinha razão. Percebo que seja complicado “digerir” este conceito porque na nossa vida o pesadelo da dívida está a ser constantemente relembrado. Mas na MMT a dívida não tem peso (mas não pode ser infinita, sob pena de provocar outros problemas) e é este o segredo com os quais os terríveis Republicanos chantageiam os pobres Democratas.

Dúvida: mas por qual razão então os Democratas “não sabem”? Obviamente sabem e muito bem. Mas há dum lado uma formatação e do outro uma utilidade.

A formatação é dada pelas escolas de economia que são uma referência para a asa progressista do poder americano. E estas escolas olham com muita desconfiança para a MMT, ficando agarradas a teorias de tipo clássico (no entanto a Federal Reserve cria dinheiro a partir do nada há décadas e ninguém fica escandalizado com isso…).

A utilidade é dada pela força que o bicho-papão da dívida continua a ter sobre as massas. Pensamos a todos os discursos acerca da austeridade, por exemplo aqui na Europa; pensamos nas renuncias de direitos ou de instrumentos para melhorar os níveis de vida em nome do rigor orçamental; pensamos nas subidas dos impostos que somos obrigados a aceitar perante o perigo de ver aumentar o deficit; pensamos ao FMI com as suas milagrosas receitas de contenção orçamental que se dum lado provocam tantos prejuízos nos Países em Desenvolvimento e naqueles do Terceiro Mundo, do outro lado enriquecem as multinacionais. E estes são apenas alguns exemplos.

Aceitar a ideia de que “os défices não importam” significaria ter que reescrever as regras do jogo e, coisa mais importante, limitaria o imenso poder que o conto do “terrível deficit” proporciona.

Diz Beowolf:

A parte melhor foi receber um e-mail de Phil Diehl, o antigo director da Casa da Moeda que redigiu a lei das moedas de platina que o Congresso promulgou em 1997. Quando ele disse: “Sim, isto vai realmente funcionar” […].

E Phil Diehl é um Democrata. Como é que sabe do “segredo” republicano?

Prossegue a entrevista:

Voz: A Secretária do Tesouro Janet Yellen pareceu recentemente fechar a porta ao dizerzendo à CNBC: “Sou contra e penso que não devemos considerar seriamente a questão. É realmente um engenhoca. …Compromete a independência da Fed através da fusão da política monetária e fiscal”. Argumentou também que não conseguiria tranquilizar os mercados, criando assim alguns riscos semelhantes aos de uma violação do limite máximo da dívida. O que pensa dos seus comentários?

Beowolf: Ela é, no geral, muito boa no seu trabalho e é, por todos os motivos, uma boa pessoa, mas está errada sobre isto, não só sobre a lei mas também sobre a política.

Sim senhor, este é o nível. A dívida é enorme? E nós criamos do nada uma moeda com tantos zero assim as pessoas ficam descansadas. Quem não concordar com isso está errado.

Antes de concluir, voltamos mais uma vez à frase de Reagan, a tal “os défices não importam”. A falsidade da perspectiva segundo a qual a rigidez orçamental é um dogma económico indiscutível é certificada pela realidade dos factos. Apesar do Congresso dos EUA ter sido sempre obrigado a elevar a nível de endividamento, nada de catastrófico aconteceu no passado ou está a acontecer hoje. Espreitem os dados:

Exacto: a dívida dos EUA tem vindo a crescer continuamente desde 1940, sem que os EUA alguma vez entrassem em incumprimento e sem que qualquer credor se apresentasse para reclamar o seu dinheiro de volta.

Isto deveria fazer-nos reflectir sobre a “mentalidade única” a que estamos a ser forçados, pela política e pelos media.

 

Ipse dixit.