É um acaso

Um artigo que, aparentemente, fala de Italia. Escrito por Marco Travaglio, jornalista e Director do diário Il Fatto Quotidiano (publicação que em poucos anos conseguiu ganhar uma cada vez maior visibilidade nacional), abre uma janela acerca de como opera um homem da elite, neste caso Mario Draghi, actual altura Primeiro Ministro do meu País. Além disso, por enquanto Draghi é líder do governo italiano, amanhã…

Antes o artigo, depois algumas considerações.

Tá bom, é um acaso

de Marco Travaglio

Nasce um governo, chefiado por um ex-banqueiro que nunca foi votado ou indicado por ninguém. Tá bom, é um acaso.

Todos os partidos, sob a chantagem quirinal (do Presidente da Republica, ndt] “ou apoias este governo ou dissolvo-o e vamos votar”, votam a seu favor, excepto um. Tá bom, é um acaso.

O governo também tem todos os meios de comunicação social do seu lado, como nenhum outro desde o Duce. Tá bom, é um acaso.

Os representantes eleitos do povo recebem ministérios marginais, enquanto os biliões de PRNR [o nome da “bazuka” em Italia, ndt] são geridos por quatro dos leais não eleitos do Primeiro Ministro, mais um general em uniforme completa para as vacinas. Tá bom, é um acaso.

Os Conselhos de Ministros são também formalidades: os ministros carimbam regras escritas noutro local e apresentadas meia hora antes, ilegíveis para qualquer pessoa que não tenha frequentado cursos de leitura rápida. Tá bom, é um acaso.

Apesar da maioria búlgara, o governo vai de um decreto para outro e o parlamento curva-se, também porque quem se atreve a apresentar emendas tem-nas cortadas pelo voto de confiança. Tá bom, é um acaso.

Todos os desejos da Confindustria [a principal organização que representa as empresas italianas de produção e serviços, agrupando mais de 150.000 empresas, incluindo bancos, ndt] são lei: Pnrr mais agradável para os patrões, o desbloqueio dos despedimentos, o chumbo do salário mínimo e do cashback, a contra-reforma da justiça com improcedência para aqueles que a podem pagar, o chumbo das sanções para as empresas que deslocalizam, a transição anti-ecológica, a ponte sobre o Estreito: o único Verde permitido é o Passe (único no mundo) a funcionar. Tá bom, é um acaso.

Na reunião da Confindustria (Confederação da Indústria Italiana), o Primeiro Ministro foi recebido com uma ovação de pé e o Presidente Bonomi saudou-o como “o homem das necessidade como De Gasperi”, esperando que Ele “ficasse por muito tempo”. Tá bom, é um acaso.

A imprensa da confindustria (praticamente toda) repete que Ele “deve permanecer até 2023 e mesmo depois”, independentemente de quem ganhar as eleições. Tá bom, é um acaso.

Como o Chefe de Estado está prestes a caducar, o mantra é que Ele é o único candidato possível; mas como não há outro Primeiro Ministro senão Ele e os dois cargos não podem (ainda) ser combinados, Mattarella (o actual Presidente da Republica) tem de manter-Lhe o lugar quente durante alguns anos. Tá bom, é um acaso.

O presidente dos bispos, Cardeal Bassetti, tal como Pio XI fez com Mussolini, afirma que “a Providência colocou-o na posição em que se encontra”. Tá bom, é um acaso.

Assim que um líder se atreve a contraria-Lo, como Conte, Salvini ou Meloni, é imediatamente “massajado” por jornais e televisão. Tá bom, é um acaso.

Quando ataca os direitos ao trabalho e à greve com o Green Pass, a polícia escolta amorosamente um bando de fascistas ansiosos por atacar a CGIL [o sindicato, ndt], pelo que é mais fácil chamar qualquer um que desafie o governo de fascista e erguer monumentos equestres ao Primeiro Ministro Que Resiste. Tá bom, é um acaso.

Mas, entre um acaso e outro, estamos realmente certos de que os fascistas são apenas os de Forza Nuova?

O que pode interessar tudo isso a um Leitor português? Interessa, interessa…

Mario Draghi é um economista, académico, banqueiro e político, desde Fevereiro de 2021 Presidente do Conselho de Ministros da República Italiana.

Formado antes nos Jesuítas, depois na Universidade la Sapienza de Roma e especializado no Massachusetts Institute of Technology, foi professor universitário e, durante os anos ’90, foi Director-Geral do Ministério do Tesouro. Após uma passagem pela Goldman Sachs (Vice-Presidente e Director Geral para as estratégias europeias, de 2004 a 2005 membro do Conselho Executivo do banco), foi Director Executivo do Banco Mundial, Governador do Banco de Itália em 2005, Director Executivo no Banco Asiático de Desenvolvimento e, entre 2011 e 2019, serviu como Presidente do Banco Central Europeu.

É membro do Conselho de Estabilidade Financeira (do qual foi presidente entre 2006 e 2009), uma associação sem fins lucrativos cujo objectivo é o controlo do sistema financeiro global e que inclui todos os Países do G20 (representados pelos seus governos e bancos centrais), Espanha e a Comissão Europeia, bem como Arábia Saudita, Argentina, Brasil, China, Coreia do Sul, Índia, Indonésia, México, Rússia, África do Sul e Turquia; e é membro do Grupo dos Trinta.

Draghi tem um sonho, não declarado: tornar-se o novo guia da União Europeia. Após a reforma de Angela Merkel, com o Presidente francês Macron geneticamente impedido, Draghi percebeu que tem a ocasião para subir até o topo do Velho Continente. Mas há um senão: Draghi nunca foi político, sempre foi um técnico. Então a governação da Italia é o derradeiro teste e isso explica determinadas escolhas (veja-se a imposição do Green Pass para poder trabalhar) e, sobretudo, a complexa teia construída em volta do actual Primeiro Ministro: máximo consentimento político e mediático, uma oposição constantemente demonizada. A Draghi não interessa o que o cidadão pensa, Draghi quer que o cidadão obedeça para mostrar que ele pode liderar.

O problema para os outros europeus é que arriscam ver Draghi qual próximo líder do Velho Continente e a recente visita da Merkel em Italia (há uma semana) pareceu aos mais atentos como uma “transferência de soberania”.

O problema para todos é que Mario Draghi não está sozinho: nunca conseguiria construir a tal teia sem o apoio dum certo mundo económico-político que tem os todos meios para impor as suas escolhas. E nem podemos esquecer o papel da Igreja.

Pessoalmente nunca tinha visto uma parede mediática tão densa e compacta e, ao falar com pessoas que ainda residem em Italia, a sensação é comum. Encontrar um diário que discorde de Draghi é praticamente impossível e o artigo de Il Fatto Quotidiano foi uma surpresa, sinal de que, talvez, foi alcançado o limite e começa a haver uma tomada de consciência (por enquanto limitada à Travaglio, que até ontem tinha cuidadosamente evitado estes tons).

O problema para todos é que quando o aparato económico-político fixar um objectivo, avança como um Caterpillar, atropelando qualquer voz dissonante, contornando as frágeis normas democráticas, resumindo velhos fantasmas (o perigo “fascista” em Italia, por exemplo) para operações de manipulação social e construindo uma muralha na qual parece não haver brechas. Nisso pode contar com a preciosíssima cumplicidade daquele que uma vez era chamado de jornalismo e que hoje não passa dum megafone enfadonho.

Quantos outros “Mario Draghi” há lá fora?

Consequência

Entretanto eis a consequência prática: nas eleições comunais, que acabaram às 15:00 horas de hoje, a afluência nacional tem sido de 43.94%, com poucas localidades onde mais de metade dos votantes foi às urnas, a maioria das quais no Sul do País (onde não poucas vezes o eleitor vai votar por razões que vão além da questão política). Segundo os primeiros dados, em Roma a participação tem sido de 40.68%.

Há um fosso entre a classe política e os cidadãos. Tecnicamente não é um problema: é suficiente um único votante para que as eleições sejam validadas. É por esta razão que os diários, nestas horas, estão a festejar a “vitória” do centro-esquerda, o conjunto de partidos que apoiam o governo de Draghi e os candidatos locais por ele apoiados.

No entanto, a exultação serve para esconder o principal dos problemas: esta classe política representa menos de metade dos que poderiam votar. Em Roma, por exemplo, quase 60% dos eleitores nem quer saber dos candidatos. Difícil falar em “vitória” com dados assim. Mas esta é a Italia de Mario Draghi: o resto da Europa que se cuide.

 

Ipse dixit.

2 Replies to “É um acaso”

  1. Consigo ver perfeitamente o PS a apoiar um Draghi português.
    Já não consigo dizer o mesmo do PCP.
    Por isso, isso da “esquerda” tem muito que se lhe diga.
    A realidade Portuguesa, não é a Italiana nem a Soviética, nem a Cubana etc

    Faz-me lembrar “os verdes”, na Alemanha são o partido mais pró Nato no parlamento (bizzaria), já os Portugueses são anti Nato.

    Mas numa coisa concordamos, o caso do Draghi não diz respeito apenas à Itália, é também um problema europeu.

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